Sobre o estabelecimento e desconstrução da autoridade etnográfica




Sobre o estabelecimento e desconstrução da autoridade etnográfica

A Antropologia tem passado por inúmeras transformações e mudanças de paradigma desde seus primórdios, no século XIX, quando o status do etnógrafo como intérprete privilegiado das mais distintas culturas ainda não estava oficialmente garantido; inclusive em relação a seus “concorrentes” – men in the spot, administradores, comerciantes e missionários cujo domínio da língua e a penetração nos costumes locais, quase uma iniciação, certamente eram superiores comparativamente aos acadêmicos que também faziam uso destes conhecimentos (CLIFFORD, 1988).
Era a época de Frazer e Tylor, e as teorias mais em voga ainda eram evolucionistas, procurando elaborar generalizações através da comparação dos dados disponíveis sobre a diversidade humana no decorrer da História. Buscava-se a origem das instituições, rituais, costumes e hábitos de pensamento moderno pela contraposição dos diversos estágios de desenvolvimento da sociedade humana (MARCUS & FISCHER, 1986).
Uma transição crítica em direção a outros paradigmas deu-se apenas a partir do século XX, em parte devido à profissionalização das Ciências Sociais e a criação de disciplinas universitárias especializadas, principalmente nos Estados Unidos. Neste contexto, surgiu uma nova metodologia de pesquisa, que chegou a ser considerada revolucionária: a etnografia. Sua principal inovação consistiu em integrar os processos, antes separados, de coleta de dados em campo, realizada por não acadêmicos, e os de teorização e análise, a cargo dos antropólogos de gabinete. Bronislaw Malinowski foi o responsável pela inauguração desse método, descrito em seu livro Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) e pelo início da estruturação da autoridade etnográfica, aliada inclusive à posterior disseminação de uma desconfiança generalizada em relação aos informantes e suas interpretações “interessadas”.
Começava, assim, a desvanecer-se o ambicioso projeto positivista de uma ciência geral do homem, em seu lugar emergindo as visões funcionalistas e de relativismo cultural da Antropologia moderna. A cultura era então pensada como um conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos, passíveis, portanto, de observação, registro e explicação por parte do pesquisador treinado. Enquanto isso, a nova abordagem de campo oficial, sem pressupostos evolutivos para coleta de dados, levava gradualmente ao estabelecimento da autoridade etnográfica do especialista, antropólogo formado na academia; ciente agora do relativismo cultural e informado por modernas linhas teóricas e técnicas analíticas, as quais inclusive o habilitariam – à parte “dons” pessoais de observação, a captar rapidamente o cerne das mais exóticas culturas utilizando a figura da sinédoque em seus recortes, independente de seu domínio da língua ou duração da estadia em campo.  A metodologia etnográfica, entretanto trazia em seu bojo também um grande potencial de crítica à própria cultura ocidental e, paradoxalmente, também a si mesma (CLIFFORD, 1988; MARCUS & FISCHER, 1986).

Antropologia Interpretativa e as críticas à Estrutura

Transformações radicais ocorreram durante as décadas de 60/70, inclusive na Antropologia, cada vez mais plural. Victor Turner, antropólogo britânico, e Clifford Geertz, norte americano, estão dentre os autores que ofereceram novas perspectivas para a disciplina, de cunho simbólico e interpretativo, respectivamente; transferindo, assim, o foco de interesse das estruturas e ações sociais para o campo simbólico das mentalidades e dos significados (MARCUS & FISCHER, 1986).
Foram significativas suas contribuições nessa fase de mudança de paradigmas. Ambos, inclusive acrescentando, cada um a sua maneira, diversas críticas à concepção tradicional de estrutura. Turner (1966) ficou particularmente conhecido por seus estudos sobre rituais e pelos conceitos de drama social e communitas, que envolvem as noções de liminaridade, estrutura e anti-estrutura; esta última representando um momento liminar criativo, referente a rituais de passagem, isolamento utópico, contestação, revolução etc. Processos ocorrendo entre grupos de “iguais”, como se circunstancialmente desaparecessem nomes, regras e hierarquias; movimentações nos interstícios das formas arbitrárias representantes da estrutura social vigente, vislumbradas apenas de relance nestas lacunas de espaço-tempo. Turner de certa forma coloca tais vivências de liminaridade como forças motrizes com potencial para engendrar mudanças nas estruturas existentes, compreendidas por ele como processos ou efeitos da dinâmica social.
Clifford Geertz (1973) estabeleceu a noção de descrição etnográfica densa, que inclui a observação dos significados e sentidos atribuídos pelos atores a seus gestos e ações. Sua crítica à estrutura passa pelo fato de que para o autor, significados são negociados na vida cotidiana, não havendo algo oculto ou transcendente a ser decifrado pelo etnólogo. Metaforicamente, para fazer um acordo comercial ou tocar um instrumento são necessários certos hábitos e saberes, porém nenhum destes “é” fazer o pacto ou tocar o instrumento; Geertz afirma, assim, que a cultura é pública porque o significado o é. Estar apto fisicamente ou saber como piscar, não é suficiente para realizar esta ação num dado contexto social particular, ou seja, não necessariamente significa de fato piscar.
Pode-se, enfim, afirmar que a Antropologia Interpretativa, com sua visão de cultura como hierarquia de significados e conjunto de textos, ressaltando a criatividade poética existente em qualquer representação coletiva, foi de fundamental importância para os processos de estranhamento da autoridade etnográfica. Uma das principais questões colocadas por essa linha foi a da distância entre o material coletado e o trabalho de escrita, mediado inclusive por convenções e retóricas literárias (CLIFFORD, 1988).

No palco das discussões

O contexto teórico das ciências sociais nos anos 60/70, facilitou a emergência de inúmeras e importantes discussões sobre as aspirações primárias da etnografia, de alcançar o ponto de vista nativo e compreender a influência das construções culturais da realidade na ação social. Tais questionamentos, todavia foram além, estendendo-se ao processo comunicativo através do qual o pesquisador de campo obtém conhecimento sobre os sistemas de significação cultural de seus sujeitos; à forma particular pela qual redige seus textos etnográficos e à representação da alteridade. Apesar de institucionalizada, a validade da compreensão etnográfica atualmente passou, portanto, a depender das discussões referentes ao próprio processo de investigação (MARCUS & FISCHER, 1986); inclusive considerando o fato de que um pesquisador dificilmente é neutro, em função de suas idiossincrasias e ambições de confirmação das convicções teóricas, selecionando e formatando dados disponíveis com este fim, de forma consciente ou não (CLIFFORD, 1988).
Embora não seja mais considerada uma técnica revolucionária – mas parte de uma transição e reelaboração contínua da Antropologia (MARCUS & FISCHER, 1986), a etnografia continua sendo um método notavelmente sensível. A observação participante leva o pesquisador a experimentar física e mentalmente as dificuldades da tradução intercultural, por vezes inclusive desarranjando suas expectativas pessoais e culturais. Quanto à posterior redação de textos, contudo, a etnografia – original e ambígua combinação de validade científica e heróica experiência pessoal subjetiva – pode na verdade ser vista como novo “estilo literário”, compreensão que por si só traz diversas implicações para a prática (CLIFFORD, 1988).
Além dessas discussões sobre o método, outras contingências intensificaram o debate sobre o fator humano envolvido na produção de conhecimento: a desintegração e redistribuição do poder colonial após 1950 e a crise de consciência da Antropologia quanto a seu status liberal no contexto imperialista; a reversão do olhar europeu, motivada pelas lutas antirracistas; a expansão da comunicação e da influência intercultural, permitindo que as pessoas interpretem a si mesmas e ao outro constantemente, afetando também a posição de supremacia do ocidente como único provedor de conhecimento antropológico; e finalmente, o contexto contemporâneo de muitas línguas e vozes, dificultando a concepção de culturas independentes e delimitadas. Ou seja, além das dificuldades relativas ao pesquisador e seu objeto – não mais considerados independentes, tornou-se clara a impossibilidade de garantir a veracidade das representações ou imagens complexas de um povo em relação a outro, pois estas são elaboradas a partir de relações históricas de dominação e diálogo (CLIFFORD, 1988). Poderíamos acrescentar que tal debate seria inevitável em algum momento da história, pois suas raízes estão profundamente fincadas na própria origem, sentido e significado iniciais da Antropologia, disciplina ocidental e construída num contexto positivista e colonialista.

A complexidade da experiência e sua tradução textual

Segundo Clifford (1988), desde seus primórdios a escrita etnográfica tem encenado uma série de artifícios literários e estratégias específicas de autoridade, produtores de verdades tão variáveis quanto a diversidade de autores na área; observação que o levou a emitir sérios questionamentos sobre este estilo de produção literária, tendo em vista que a tradução da experiência em forma textual torna-se um processo complicado ainda pelo envolvimento das múltiplas subjetividades e fatores políticos que estão acima do controle do escritor. Como uma experiência intrinsecamente incontrolável pode transformar-se num relato escrito legítimo? De que maneira um encontro intercultural sobredeterminado, inevitavelmente atravessado por propósitos pessoais e relações de poder, pode ser sintetizado por um autor individual como uma versão adequada de um mundo radicalmente distinto do seu?
A situação de um estranho ingressando numa cultura sugere a imagem de uma iniciação, a partir da qual emergiria mais tarde, de maneiras não especificadas, um texto representacional. A observação participante poderia, assim, ser utilizada como uma fórmula para o “contínuo vaivém entre o interior e o exterior dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos específicos através da empatia; de outro, dá um passo atrás, para situar estes significados em contextos mais amplos” (CLIFFORD, 1988, p.34).  Para o autor, quando invocadas num texto, empatia, experiência – a autoridade etnográfica fornecida pelo “estar lá”, sensibilidade etc. cheiram à mistificação; e essa fórmula de observação participante se torna paradoxal e enganosa quando compreendida literalmente, embora ao mesmo tempo possa ser seriamente considerada, caso seja reformulada em termos hermenêuticos, como uma dialética entre a experiência e a interpretação.
A questão autoral, na verdade multivocal, e a qualidade de não reciprocidade da interpretação etnográfica também constituem tópicos fundamentais no palco das discussões sobre o tema, enfatizando a etnografia como uma negociação construtiva envolvendo sujeitos conscientes e políticamente significativos, em lugar da visão de experiência e interpretação de uma outra realidade circunscrita.
Em sua obra, Clifford (1988) também analisa, dentre outras, as produções textuais dos autores anteriormente citados, Victor Turner e Clifford Geertz, sob o ponto de vista do estilo etnográfico e produção de autoridade etnográfica. Geertz, em suas interpretações pessoais, não compartilhadas ou coletivas, dos costumes nativos; Turner, como transitando entre a exposição monofônica e polifônica em seus escritos, ao incluir nativos como colaboradores em suas discussões, embora nem sempre nominalmente, tampouco representando seu povo via diferentes vozes.
Assim como os positivistas e os modernos, os paradigmas de experiência e interpretação parecem, assim, estar cedendo lugar a outros, mais discursivos, baseados em diálogo e polifonia; a cultura significando agora principalmente um diálogo em aberto, entre subculturas, membros e não membros, e sempre em mutação, assim como a língua falada de um povo, com seus dialetos, gírias e jargões profissionais (CLIFFORD, 1988).

(Antropologia IV, 2014, FFLCH - USP)


Referências

CLIFFORD, James. 1988. The predicament of culture. Cambridge, Harvard University Press. (Trad. Port. J. Clifford. A experiência etnográfica. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2008).

GEERTZ, Clifford. 1973. The interpretation of cultures. Nova York, Basic Books. (Trad. Port. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 2008).

MARCUS, George & FISCHER, Michael. 1986. Anthropology as cultural critique. Chicago, Chicago University Press. (Trad. Esp. La antropologia como critica cultural. Amorrortu, 2004).

TURNER, Victor. 1966. The ritual process. Ithaca, Cornell University Press. (Trad. Port. O processo ritual, Petrópolis, Vozes, 1974).