Resumo: Abertura (O Cru e o Cozido, Lévi-Strauss)




Resumo (orientado pelo roteiro de questões da disciplina Antropologia III, FFLCH, 2014): Lévi-Strauss, C. (2004/1964). Abertura. In O cru e o cozido: Mitológicas I (pp. 19-42). São Paulo: Cosac Naify.


Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. (...) Talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de certo modo, os mitos se pensam entre si. (...) Como os mitos se fundam, eles próprios, em códigos de segunda ordem (...), este livro forneceria o esboço de um código de terceira ordem, destinado a garantir a tradutibilidade recíproca de vários mitos. Por essa razão, não é equivocado considerá-lo como um mito: de certo modo, o mito da mitologia. (p.31)

O excerto acima resume em sua profundidade o espírito da monumental obra de Claude Lévi-Strauss, Mitológicas. O autor inicia sua “Abertura” com a hipótese de que certas categorias empíricas, como os pares de oposições [característicos do espírito humano] cru e cozido, fresco e podre etc., definíveis com precisão pela observação etnográfica de uma cultura qualquer, poderiam ser utilizadas como ferramentas conceituais para isolar e encadear noções abstratas em formato de proposições. O procedimento inicial adotado será, então, o estudo em nível concreto das etnografias de populações suficientemente próximas pelo habitat, história e cultura; uma preocupação metodológica importante, a qual, todavia não restringirá as investigações posteriores, ampliadas para sociedades mais distantes, visando demonstrar a existência de uma “lógica das qualidades sensíveis”, evidenciando suas leis.
O ponto de partida dessa empreitada é a cultura Bororo do Brasil Central, através da análise de um mito local, escolhido como referência não por ser o mais arcaico ou completo dentre os disponíveis, mas pela aparente riqueza e fecundidade, além de possuir características atípicas [elementos de culturas vizinhas] favoráveis para o desenvolvimento do trabalho. Para Lévi-Strauss, um mito é resultante de algum tipo de transformação de outros mitos, provenientes da mesma sociedade, das vizinhas, ou mesmo de sociedades mais afastadas que apresentem ligações reais de ordem histórica ou geográfica com as anteriores; portanto, qualquer representante do grupo de transformações poderia ter sido eleito mito de referência. O autor procura demonstrar essas afirmações no decorrer do texto, expandindo gradualmente o leque dos mitos escolhidos, sempre situados em seus contextos etnográficos, todavia sem restrições quanto a limites territoriais ou classificações (mitos cosmológicos, sazonais, divinos etc.); consideradas enquadramentos artificiais com base em características externas isoladas arbitrariamente, alheias à própria natureza do mito.
As regras utilizadas por Lévi-Strauss em suas análises são as mesmas já estabelecidas em trabalhos anteriores, configurando inicialmente o grupo de transformações das sequências do próprio mito e elucidando as relações de isomorfismo entre sequências extraídas de outros mitos da mesma população. Deste procedimento resultam os “esquemas condutores” [mitemas], os quais podem ser visualizados como pontos ordenados num eixo. Cada ponto recebe a seguir novos eixos na vertical, resultantes do mesmo tipo de operação anterior, realizada agora com mitos de populações vizinhas que apresentem certas analogias com os primeiros. Para este trabalho, o autor não descarta contos, lendas, tradições e ritos das populações estudadas, aproveitando quaisquer manifestações culturais úteis para completar ou esclarecer algum mito, evitando decidir precipitadamente o que é mítico ou não.
Este processo multidimensional, capaz de produzir transformações, simplificar ou enriquecer os esquemas condutores iniciais, será ainda ampliado com a inclusão de sequências provenientes de populações mais remotas; revelando, afinal, a existência de uma ordem sob o caos, conforme são preenchidas lacunas e estabelecidas conexões entre os fragmentos. Tal organização estrutural pode ser observada na “região central” deste objeto complexo composto por matéria mítica “dissolvida pela análise”, enquanto “em sua periferia reinam ainda a incerteza e a confusão” (p.21). Os princípios de organização da matéria mítica já estão contidos no mito de referência, contudo não é possível evitar essa incerteza da “periferia” devido à impossibilidade prática de um conhecimento etnográfico e mitológico exaustivo de qualquer população. Um objeto ideal com estrutura estável e bem determinada é uma etapa final que jamais será atingida, inclusive por lidarmos com uma realidade sempre “à mercê dos golpes de um passado que a arruína e de um futuro que a modifica” (p.21), tornando inevitável

que o ponto de chegada se imponha por si só (...) quando um certo estado da empresa mostrar que seu objeto ideal adquiriu forma e consistência suficientes para que algumas de suas propriedades latentes, e sobretudo sua existência enquanto objeto, sejam absolutamente inquestionáveis. Assim como o microscópio (...) só podemos escolher entre vários graus de aumento: cada um deles torna visível um nível de organização, cuja verdade é apenas relativa, e exclui, enquanto adotado, a percepção dos outros níveis. (pp.21-22)

Os mitos são intermináveis e seus desdobramentos temáticos também, podendo sempre ser reagrupados por alguma afinidade inesperada. Sua unidade é, portanto, apenas “tendencial e projetiva, ela nunca reflete um estado ou um momento do mito” (p.24). Um atributo fundamental do pensamento mítico é a divergência das sequências e dos temas, mas ao contrário de uma fonte de luz irradiando em todas as direções, a estrutura original do mito não pode ser localizada, já que seus “raios” provem “de algures”, permanecendo “paralelos ao longo de todo o trajeto” (p.24). Desta forma, o trabalho de interpretação não pode almejar uma unidade real, todavia fornecendo uma forma sintética para o mito, evitando que este se “dissolva na confusão dos contrários (...). Assim, este livro sobre os mitos é, a seu modo, um mito. Supondo-se que possua uma unidade, esta só aparecerá aquém e além do texto. Na melhor das hipóteses, será estabelecida no espírito do leitor”. (p.24)
Lévi-Strauss menciona algumas críticas ao seu trabalho por parte de etnógrafos e historiadores, relacionadas às fontes etnográficas deixadas de lado apesar de acessíveis, e a questões históricas referentes às conexões feitas entre mitos de populações não vizinhas, muitas vezes extrapolando as fronteiras do conhecimento histórico.
Como na prática foi realizada uma triagem das fontes e suprimidos motivos de suas variantes, a acusação dos etnólogos seria a de moldagem do objeto de acordo com os objetivos da demonstração. “Conclui-se que, para ousar abordar sua comparação, teria sido preciso vasculhar efetivamente a totalidade dos mitos conhecidos da América tropical?” (p.25). Além disso, de acordo com as hipóteses do autor, acrescentar informações mais recentes não anularia as antigas, mesmo em caso de contradição; embora certamente os novos dados possam inspirar alterações nas interpretações anteriores. Outro ponto importante é que o conjunto dos mitos é da ordem do discurso, portanto não estático para populações ainda existentes; e o objetivo de Lévi-Strauss é justamente elucidar sua “sintaxe”, que “não espera que uma série teoricamente ilimitada de eventos tenha sido registrada para se manifestar, pois ela consiste no corpo de regras que preside sua geração” (p.26).
Quanto às críticas de historiadores, o autor sugere que sua demonstração de que mitos de populações distantes formam objetivamente um grupo poderia ser vista como um objeto interessante para a pesquisa histórica; embora seja pouco plausível a possibilidade de “reduzir tal sistema de afinidades lógicas à enumeração de uma infinidade de empréstimos, sucessivos ou simultâneos, que populações contemporâneas ou antigas teriam feito umas às outras, através de distâncias e lapsos de tempo às vezes tão consideráveis” (p.27).
Outra crítica ao autor seria a de “formalismo e idealismo”, um desvio das “verdadeiras tarefas” da etnografia como o estudo das sociedades concretas e suas relações. Lévi-Strauss admite que os resultados de suas reduções de dados etnográficos arbitrários a uma ordem e dos inventários de imperativos mentais, obtidos em trabalhos anteriores relacionados a usos e costumes (como as relações de parentesco), de fato poderiam ser apenas os ecos das exigências sociais no espírito humano, nada garantindo seu status de imperativos internos. Há, entretanto, uma grande diferença no presente estudo, já que a mitologia não possui função prática evidente, tampouco está vinculada diretamente à realidade objetiva. Desta forma, demonstrar que a aparente arbitrariedade dos mitos encobre regras que operam em nível mais profundo, sugere

que o espírito, (...) liberado da obrigação de compor-se com os objetos, fica de certo modo reduzido a imitar-se a si mesmo como objeto; e que, não sendo as leis de suas operações nesse caso fundamentalmente diferentes daquelas que ele revela na outra função, o espírito evidencia assim sua natureza de coisa entre as coisas. (...) se o espírito humano se mostra determinado até mesmo em seus mitos, então a fortiori deve sê-lo em toda parte. (p.29)

Transcender a oposição entre o sensível e o inteligível, colocando-se imediatamente no nível dos signos para atingir “um plano em que as propriedades lógicas se manifestem como atributo das coisas tão diretamente quanto os sabores ou os perfumes” (p.33), foi a proposta do autor ao mencionar no início a importância dos pares de oposições definíveis pela observação etnográfica. Signos se expressam uns através dos outros e suas combinações são capazes de traduzir toda a diversidade da experiência sensível, oferecendo informações - sobre algo que difere deles - que variam de acordo com sua ordenação ou escolha. A noção de signo permite “colocar as qualidades secundárias a serviço da verdade” (p.33) no plano inteligível, e não apenas no sensível, possibilitando, assim, conclusões mais universais sobre o pensamento [em linguística estrutural signo é uma “entidade psíquica”, relação de significação entre significado e significante, ou imagem acústica].
Lévi-Strauss continua sua introdução apresentando a música como exemplo para esta sua busca de uma “via intermediária entre o exercício do pensamento lógico e a percepção estética” (p.33); comparação não apenas genérica. Paixão pessoal desde a infância, inspirou-o a escrever sua própria obra no formato de uma “sinfonia” de mitos: “a comparação com a sonata, a sinfonia, a cantata, o prelúdio, a fuga etc., permitia verificar facilmente que em música tinham sido colocados problemas de construção análogos aos que a análise dos mitos levantara, e para os quais a música já tinha inventado soluções” (p.34).
Existiria, assim, uma afinidade profunda entre a música e os mitos, sua análise sendo comparável a de uma grande partitura; segundo o autor, consequência lógica da descoberta atribuída por ele a Richard Wagner, “pai da análise estrutural dos mitos”, de que a estrutura destes se revela através das partituras musicais. Dentre suas características em comum estaria o fato de que ambas as linguagens transcendem o plano da linguagem articulada, possuindo também uma relação peculiar com o tempo. A música relaciona-se com tempo fisiológico (diacrônico) do ouvinte, do qual transmuta, porém, “o segmento que foi consagrado a escutá-la numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma” (p.35). Os mitos, por sua vez, são constituídos tanto pelos acontecimentos (supostamente) históricos quanto por uma estrutura mais permanente.
Mitologia e música operam a partir de um “duplo contínuo”, externo e interno. O primeiro referente à série ilimitada de acontecimentos de onde a sociedade extrai eventos pertinentes para elaborar seus mitos, e à dos sons físicos que a cultura utiliza para criar escalas musicais. O segundo relacionado ao tempo psicofisiológico, às capacidades e ritmos cerebrais e orgânicos, e aos aspectos neuropsíquicos como duração da narração, recorrência dos temas etc., que estimulam o espírito do ouvinte a percorrer todo o campo que se desdobra diante de si. Ambas são capazes de “suprimir” o tempo, constituindo linguagens – um “ajustamento contrapontístico de dois níveis de articulação” (p.41) - que operam, portanto, através de duas grades, uma fisiológica ou natural e outra cultural. Este tipo de analogia, entretanto, não poderia ser feito da mesma maneira com a pintura, que em sua expressão pode prescindir da dimensão temporal, além de utilizar como ferramenta as cores, pré-existentes na natureza, ao contrário dos signos linguísticos e dos sons musicais, cuja origem é cultural desde o princípio (apenas os ruídos existem naturalmente).
Para a música e mitologia não há um “núcleo” determinável da obra, ambas comparáveis a objetos virtuais, com aproximações conscientes das verdades inconscientes acontecendo através de partituras e mitos. O “desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte (...) que se vê significado pela mensagem do primeiro (...). O mito e a obra musical aparecem, assim, como regentes de orquestra cujos ouvintes são os silenciosos executores” (p.37).