Suicídio como questão de Honra
INTRODUÇÃO
Estátuas e cofres e paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender. (Renato Russo, Pais e Filhos)
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender. (Renato Russo, Pais e Filhos)
O suicídio sempre foi um tema delicado, a ponto de certas religiões impedirem o sepultamento de um suicida no cemitério de sua própria comunidade, como um pecador a ser esquecido. Culpa e desolação para os vivos, que seguem no silêncio das palavras nunca ditas. Vazio... Naturalmente preenchido por muitas emoções e porquês.
O ato pode ser cometido em função de patologias, questões psicológicas, circunstanciais e sociais, ou mesmo como fruto de uma decisão premeditada e consciente, caso de um famoso casal, Paul Lafargue e Laura Marx, os quais suicidaram-se juntos em 1911, deixando num papel a seguinte explicação:
Estando são de corpo e espírito, deixo a vida antes que a velhice imperdoável me arrebate, um após outro, os prazeres e as alegrias da existência e que me despoje também das forças físicas e intelectuais; antes que paralise a minha energia, que quebre a minha vontade e que me converta numa carga para mim e para os demais. Há anos que prometi a mim mesmo não ultrapassar os setenta; por isso, escolho este momento para me despedir da vida, preparando para a execução da minha decisão uma injeção hipodérmica com ácido cianídrico. Morro com a alegria suprema de ter a certeza que, num futuro próximo, triunfará a causa pela qual lutei, durante 45 anos. Viva o comunismo! Viva o socialismo internacional! (Alvarez, 2012)
Uma rápida busca pela internet revela as últimas estatísticas da Organização Mundial da Saúde sobre o suicídio, reunindo dados de 104 países: cerca de um milhão de pessoas por ano, número que supera o das vítimas de guerras e homicídios. Dados assustadores, com certeza. Afinal, como diria o escritor Albert Camus, a vida vale ou não a pena ser vivida?
Questionamentos pessoais e estatísticas a parte, qualquer teoria sobre o assunto deveria sempre considerar os fatores culturais envolvidos: “Para uma análise do problema do suicídio devemos levar em conta qual a inserção social deste ato na comunidade da qual o indivíduo faz parte, porque os valores são completamente diferentes nas diversas culturas e entre o Oriente e o Ocidente” (Kovács, 1992, p.170). O Japão, por exemplo, é um país que atualmente apresenta um índice crescente de suicídios, principalmente ligados à questão da honra, como é o caso dos jovens que fracassam na escola, sendo então considerados indignos. Ou seja, como em qualquer pesquisa na área de humanas, há que se tomar cuidado para não incorrer em generalizações das categorias de análise referentes à nossa própria cultura. O comentário abaixo encontra-se no blog de um brasileiro residente no Japão:
É difícil para nós entendermos o que se passa na cabeça de alguém que se mata, mas a cultura tem um papel muito grande neste tipo de pensamento aqui no Japão, a competição acirrada de uma sociedade que não perdoa a falha, a cobrança de se entrar em uma boa escola, em uma faculdade conceituada, de se encontrar emprego em uma grande empresa, as pessoas são massacradas pelas cobranças da sociedade, e a solução no final, é simplesmente morrer. (No Japão, 2009)
O conteúdo a seguir refere-se a esta modalidade de suicídio, como questão de honra, bastante incomum em nosso contexto ocidental urbano.
O SUICÍDIO NO JAPÃO
Seppuku, o ritual
Seppuku ou Harakiri é um dos aspectos do código de honra do samurai, o Bushido: consiste no dever do samurai de suicidar-se em determinadas situações, ou quando julgar ter perdido sua honra. A expressão significa literalmente “corte estomacal”. O relato mais antigo que se tem notícia data do século XI, época em que poderosas famílias lutavam entre si pela supremacia no Japão feudal; mas o costume do suicídio nos campos de batalha, evitando a captura pelas forças inimigas, certamente é muito mais antigo (Galende, 2013).
O suicídio ritual tinha um forte simbolismo para o povo japonês, como demonstração de coragem, honra, lealdade e dignidade, embora eventualmente fosse também cometido por punição ou castigo. Mas foi somente após a introdução do Budismo no Japão, com seus conceitos de transitoriedade da vida, que o desenvolvimento deste tipo de rito tornou-se possível. O seppuku era considerado um privilégio do samurai ou da nobreza; todavia, era comum que os inimigos derrotados também fossem obrigados a cometê-lo, o que era considerado uma graça, proporcionando a manutenção de sua honra (Galende, 2013).
O rito de suicídio era executado de maneira formal em seu procedimento. Era comum ter espectadores. O suicida usava um kimono todo branco e, antes do ato final, era esperado dele que escrevesse seu poema de morte (...). Após o corte do abdome (...) este deveria inclinar o pescoço para baixo indicando ao kaishakunin, atrás dele, que procedesse com o último passo, cortar a cabeça com um único golpe. Seu papel era dar fim ao grande sofrimento e dor do suicida. (Galende, 2013)
Dentre os diversos motivos para a prática do seppuku estão os seguintes: punição; forma de extrema lealdade a um Senhor ou marido falecido; expressão de ultimato em relação à discordância com um Senhor; evitar a vergonha de ser capturado pelo inimigo no campo de batalha (Galende, 2013).
O suicida banhava-se, de forma a purificar o seu corpo e a sua alma e dirigia-se ao local de execução, onde se sentava à maneira oriental (seiza). Pegava então sua espada curta (wakizashi), ou um punhal afiado e posicionava a arma no lado esquerdo do abdôme, cortando a região central do corpo e terminava por puxar a lâmina para cima. Era importante o corte ser no abdômen, pois era considerado o centro do corpo, das emoções e do espírito pelo povo japonês. Assim, o samurai estaria literalmente cortando a sua “alma”. Ao acreditarem que essa estava limpa diante de sua honra, mostrava-se sua dignidade. A morte por evisceração era lenta e dolorosa, e podia levar horas. Apesar disso, o samurai devia mostrar absoluto controle de si mesmo, não podendo dar sinais de dor ou medo. (Galende, 2013)
Tornou-se até mesmo um costume entre as famílias de samurais ensinar aos filhos homens o modo exato de praticar este ritual. Mas nos casos extremos, como durante as guerras, sem tempo para os preparos, um samurai podia suicidar-se apenas inserindo a espada na barriga (Galende, 2013).
O seppuku não era uma prática exclusivamente masculina, já que algumas mulheres também podiam tornar-se samurai, com obrigações e conceitos de honra equivalentes; sendo o ritual realizado a fim de manter a dignidade, como prova de fidelidade ou para acompanhar seu Senhor ou marido na morte. Contudo, ao contrário dos homens, as mulheres não poderiam cometer o seppuku sem a prévia permissão de seu Senhor (Galende, 2013).
Outra diferença está na forma litúrgica do rito. Enquanto o homem abria o abdome para mostrar a dignidade e honra de sua alma, a mulher introduzia a lâmina de uma tanto (faca) na garganta ou no coração. Alguns afirmam que isso poderia ser feito também com o adorno de cabelo (palitos adornados utilizados para prender o cabelo). Diz-se também que a mulher, antes de cometer o seppuku, mantinha suas pernas unidas, amarrando os tornozelos um ao outro, para evitar que na queda se abrissem, expondo suas partes íntimas. (Galende, 2013)
Sobre a cultura de suicídio no Japão
O Hara-kiri era privilégio das classes superiores, mas o Shinjyuu, forma de suicídio cometida entre pessoas íntimas, amantes ou familiares, era mais comum entre os plebeus. O ato de suicídio japonês em geral é associado a um significado de valor ou vingança, à salvação do nome ou fama da pessoa ou família (Ueno, 2005).
A análise do suicídio é certamente muito importante para a compreensão da cultura japonesa; de acordo com a antropóloga Ruth Benedict, este povo não tem uma bússola interior forte, tampouco o sentimento cristão da culpa, possuindo grande inclinação para salvar o nome ou a honra da nação através do suicídio. Em relação ao gênero, as estatísticas revelam que os homens se suicidam mais do que as mulheres, talvez devido aos seus diferentes papéis e expectativas sociais (Ueno, 2005).
O Japão fazia propaganda do suicídio, de certa forma encorajando seus membros a cometer atos suicidas, ao implantar vocabulários relacionados ao salvamento da fama para impedir uma possível rebelião contra o governo. A figura do Kamikaze foi idealizada para glorificar a guerra. É importante lembrarmos que, antes de a Toyota, a Mitsubishi, e outras companhias japonesas serem criadas e transformadas em representantes do poderio e capacidade japoneses, entre outros fenômenos que atestavam a nossa “macheza” estava a nossa capacidade de cometer o suicídio. Assim, o suicida funcionava como uma “bala humana” usada contra o inimigo, não somente metaforicamente, mas no sentido literal da palavra. (Ueno, 2005)
Antes da expansão da Internet, era incomum que pessoas com as mesmas idéias suicidas lograssem reunir-se. Atualmente, porém, existem até páginas online sobre esse assunto, nas quais pode-se observar o surgimento de uma espécie de cultura de suicídio em grupo, enfatizando a cessação do sofrimento, do medo e do isolamento. Uma cultura onde o suicídio parece mais aceitável quando praticado junto com outras pessoas e de uma forma indolor (Ueno, 2005).
O Japão parece estar desenvolvendo um vocabulário de motivos associado ao suicídio, levando pessoas a acreditar que não têm outra escolha senão a morte, último recurso para livrar-se dos problemas. Os bons motivos para viver parecem não estar sendo suficientemente valorizados nesta era de globalização onde o valor econômico é superestimado, classificando os indivíduos como vencedores ou perdedores. O aumento do suicídio revela-se, assim, inseparável da recessão econômica e dos déficits do sistema da previdência social no país (Ueno, 2005).
Tendo em vista as características dessa cultura, pode-se questionar se os atos Kamikazes e o Harakiri deveriam de fato ser considerados suicídios, já que representam um dever para quem os comete; e o mesmo poderia ser dito sobre a atual situação do suicídio no Japão, cuja responsabilidade certamente pertence à sociedade como um todo (Ueno, 2005).
É preciso amar as pessoa
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há. (Renato Russo, Pais e Filhos)
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há. (Renato Russo, Pais e Filhos)
(Texto escrito durante a disciplina Psicologia da Morte; 2013).
Referências
Alvarez, G. P. (2012). A Morte Escolhida de Paul Lafargue e Laura Marx (A. J. André,
trad.). Esquerda.Net. Recuperado em 21/06/2013 de
Galende, J. L. S. (2013). Seppuku, o lado extremo da honra. Sociedade brasileira de
Bugei. Recuperado em 21/06/2013 de
Kovács, M. J. (1992). Comportamentos autodestrutivos e o suicídio. In Morte e
Desenvolvimento Humano (cap.10; pp.165-187). São Paulo: Casa do Psicólogo.
No Japão (2009). O valor da vida. Recuperado em 21/06/2013 de
Ueno, K. (2005). O suicídio é o maior produto de exportação do Japão? (E. P. Bueno,
trad.). Revista Espaço Acadêmico. Nº44. Jan 2005. Recuperado em 21/06/2013 dehttp://www.espacoacademico.com.br/044/44eueno.htm