Ética, Violência, Liberdade
Ética e violência (Chauí, 2000)
Não há consenso universal sobre o que é violência, seu conteúdo variando segundo os tempos e lugares. Alguns aspectos, contudo, podem ser compreendidos da mesma maneira em diferentes culturas, formando, assim, um fundo comum contra o qual valores éticos são construídos. Em nossa cultura, a violência é compreendida como uma coação física ou psíquica que impõe ações contrárias aos interesses e desejos do outro, podendo causar danos profundos e irreparáveis; circunscrita por tudo o que a sociedade define como mal, crime ou vício, contra os quais erguem-se como barreiras éticas o bem e a virtude. Acompanhando a história das idéias éticas, pode-se constatar a centralidade da questão da violência e dos meios para controlá-la; sendo os valores éticos instituídos como padrões de comportamento social que buscam garantir a conservação do grupo e integridade de seus membros.
Embora universal do ponto de vista da sociedade que a institui, a ética é sempre sensível às condições históricas e culturais da ação moral, visto que se realiza como uma relação intersubjetiva e social, adaptando-se às novas exigências contextuais. Considerando a humanidade dos humanos como relacionada ao fato de serem racionais e dotados de vontade livre, nossa cultura nos define como sujeitos do conhecimento e da ação, o que implica em localizar a violência justamente naquilo que reduz um sujeito à condição de objeto. Valores éticos podem, portanto, ser compreendidos como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, a ética sendo normativa pela imposição de limites aos permanentes riscos da violência.
Para que exista conduta ética é necessário o agente consciente, cuja consciência moral é capaz de discriminar entre certo ou errado e avaliar ações e condutas, agindo em conformidade com os valores morais e responsabilizando-se por seus atos e consequências. A consciência moral manifesta-se fundamentalmente na capacidade para deliberar diante das múltiplas alternativas disponíveis, refletindo e escolhendo antes de partir para qualquer ação. A vontade representa esse poder deliberativo e decisório do agente moral, que o exerce apenas quando pode ser livre, não submetido à vontade do outro, tampouco aos seus próprios instintos e paixões.
É importante observar que a presença de uma moral instituída para todos não implica necessariamente na existência explícita de uma ética entendida como filosofia moral, voltada para a discussão e interpretação de tais valores. Fatos e valores estão sujeitos à confusão enquanto são ignoradas as razões pelas quais certos aspectos de uma cultura tornaram-se mais ou menos valorizados no decorrer de sua história. Comportamentos e sentimentos são modelados pelo contexto, e os indivíduos são educados para respeitar e reproduzir o conjunto dos valores vigentes, como deveres e obrigações a cumprir. Desta forma, tais valores aparentam existir por si e em si, como naturais e atemporais, presentes desde o nascimento do indivíduo e acarretando punições por sua transgressão.
Dirigindo-se aos atenienses, Sócrates questionava o sentido dos costumes e quais disposições de caráter levariam alguém a respeitá-los ou não. A ética ou filosofia moral tem sua origem justamente nestes questionamentos socráticos, por definirem o campo onde se estabelecem os valores e as obrigações morais, alcançando seu ponto de partida: a consciência do agente moral. Para Aristóteles, a ética é um saber prático referente à práxis, onde o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis.
Mal-estar contemporâneo (Silva, 2012)
O conceito de “mal-estar da liberdade” está vinculado às dificuldades práticas e teóricas existentes desde a Antiguidade Clássica. Para Aristóteles, o “saber fazer” ético diferencia-se do conhecimento “exato” das ciências da natureza, devido à incompreensão sobre como operamos as escolhas adequadas para uma existência moral. Esta dificuldade permaneceu no decorrer da História, seja durante o Iluminismo ou no contexto da moral cristã. Mesmo considerando a presença de um Deus legislador absoluto, a experiência ética no cotidiano ainda encontra problemas para o estabelecimento de relações entre o infinito e a ação singular, ou aplicação de princípios gerais ao particular.
Já no século XX, J. P. Sartre desenvolveu o Existencialismo, privilegiando o indivíduo frente aos conceitos demasiadamente amplos da filosofia tradicional e afirmando sua liberdade primordial através da inexistência de uma essência prévia que o defina. Sartre considerava a existência como um processo ininterrupto de construção da identidade, atribuindo ao homem uma liberdade radical que a cada ação inventa o valor das coisas. Sem as “tábuas de valores” constitutivas da liberdade através da aceitação ou negativa às regras pré estabelecidas; liberdade enraizada numa instância normativa, essência metafísica que precederia as ações, direcionada à obtenção da felicidade através deste exercício racional moderado das escolhas. A condição de liberdade radical de Sartre poderia, assim, significar um fluir espontâneo, entretanto representa justamente a dificuldade de ser livre, a insegurança perante as escolhas, uma experiência de liberdade na verdade vinculada à solidão e ao desamparo.
A única escolha do ser humano “condenado a ser livre”, é a de não ser livre. Como seres históricos, essa liberdade radical choca-se ainda com todas as adversidades encontradas no decorrer da vida e com a questão do passado que nos determina. Tudo isso constitui um paradoxo, causa de profundo mal-estar. A ética contemporânea, pós-moderna, pode estar relacionada a esses fatores, a uma recusa da liberdade como estratagema; deixando-se determinar pelo outro e pelos acontecimentos, evitando assumir a responsabilidade pelas escolhas, preenchendo o vazio e a necessidade de uma identidade que não somos capazes de alcançar. Vivemos uma identificação abstrata com o que nos é imposto ou oferecido nas situações objetivas, que certamente não passa pelo filtro da liberdade, trazendo repercussões existenciais, psicológicas e políticas; sujeitos à massificação, globalização e introjeção de valores, continuamente bombardeados pela falsa felicidade dos múltiplos modos de vida disponíveis no mercado da existência.
(Texto escrito durante a disciplina Ética Profissional em Psicologia; 2013).
Referências
Silva, F. L. (2012). A ética pós-moderna. Série: O diagnóstico de Zygmunt Bauman