Cultura como um todo coerente (Boas, Benedict, Mead)




A visão de cultura como um todo coerente foi desenvolvida por Franz Boas, considerado fundador da moderna Antropologia Cultural americana, e por suas alunas, Ruth Benedict e Margaret Mead, durante as primeiras décadas do século passado.
O autor estabeleceu a necessidade do estudo singular de cada cultura em seus próprios termos – evitando o etnocentrismo – e contestou as teorias evolucionistas em voga, a visão da história cultural como um processo universal e linear; opondo-se, portanto, inclusive às ideologias racistas que consideravam a etnia branca como superior e desvinculando os fenômenos culturais do estrito determinismo biológico e ambiental. Gilberto Freire, autor de Casa Grande e Senzala (1933), inspirado pelas idéias de Boas, passou a discordar desse determinismo e também das doutrinas de branqueamento existentes na época no Brasil, as quais visavam uma “raça melhorada” no futuro.
Para Boas (2004), a História da Cultura não é, assim, determinada por algum tipo de necessidade psicológica universal capaz de produzir uma evolução uniforme em todo o globo; tampouco são muito relevantes as possíveis variações biológicas humanas, já que grupos pertencentes a uma mesma etnia podem, todavia revelar-se muito diferentes culturalmente, inclusive em sua expressão de emoções. Cada grupo cultural desenvolve sua história peculiar, sensível, porém às influências exteriores, sociais e ambientais; ocorrendo tanto processos graduais de diferenciação, quanto de aproximação entre centros culturais vizinhos. O mesmo meio ambiente pode influenciar a cultura de maneiras diversas, de acordo com os bens culturais dos povos que o ocupam; sendo a cultura considerada pelo autor como uma totalidade em seu conjunto de manifestações, a alteração de um aspecto inevitavelmente afetando os demais. Estrutura social, economia, arte, religião, moral etc. são, portanto, expressões culturais inter-relacionadas e integradas, embora seu grau de integração não seja constante; não devendo ser analisadas como unidades independentes e sem influência mútua, caso de alguns estudos difusionistas. Ou seja, para Boas, nenhuma feição cultural é compreensível quando separada do conjunto do qual faz parte.
Embora entendesse as culturas como totalidades integradas, o autor não as considerava estáticas, tampouco redutíveis a qualquer conjunto de leis gerais capazes de explicar sua história e estrutura; para ele, as formas culturais encontram-se num estado de fluxo constante, sujeitas a modificações fundamentais envolvendo inclusive as relações entre o indivíduo e a sociedade, que influencia suas ações e ao mesmo tempo é afetada por elas.
Ruth Benedict (1934), aluna de Boas, enfatizou em seus estudos o aspecto da cultura como regulamento de personalidade, descrevendo detalhadamente os rituais, crenças e peculiaridades de diversas culturas, a fim de evidenciar sua “personalidade”; a qual teria grande influência na formação das personalidades individuais, selecionando algumas características dentre o leque de potencialidades humanas, como formas adequadas de conduta. A história de cada pessoa seria, assim, principalmente uma acomodação aos padrões tradicionalmente transmitidos entre gerações; os costumes do meio moldando sua conduta e experiência dos fatos desde o nascimento.
No início da obra “O Crisântemo e a Espada” (1946/1972), Benedict relata o desafio que lhe foi conferido pelo governo norte americano, durante a Segunda Guerra Mundial, de compreender à distância a natureza dos japoneses, inimigos cuja maneira de pensar e agir era extremadamente diferente, não parecendo sequer respeitar as habituais convenções de guerra ocidentais. Através de todas as fontes de pesquisa disponíveis e coerentemente com suas concepções teóricas sobre cultura – de que os aspectos mais isolados de conduta ainda possuem alguma relação sistemática entre si, a autora procurou descobrir “o que faz o Japão uma nação de japoneses” (Benedict, 1946/1972, p.19); analisando os comportamentos e comunicações deste povo em sua vida diária, presumindo a existência de condicionamentos comuns nos diversos setores da vida japonesa e considerando que a maneira como um homem pensa ou sente está de alguma forma relacionada à sua experiência. 
Benedict afirmava ainda, que é sempre necessária alguma coerência na cultura, pois caso esta conserve um setor da vida segregado do sistema de valores durante muito tempo – por exemplo, com um conjunto contrario de valores, um grupo cultural pode terminar exposto à ineficiência e ao caos. Haveria, assim, certo conformismo e investimento em motivações e fundamentos lógicos em comum, fazendo com que a conduta econômica, disposições familiares, ritos religiosos e objetivos políticos se engrenem entre si. Em determinada área podem ocorrer mudanças mais rapidamente do que em outra, a qual passa a sofrer grande tensão, proveniente da própria demanda de consistência cultural. “Os dogmas religiosos, as práticas econômicas e a política não se mantém represados em pequenos reservatórios estanques, porém transbordam sobre suas supostas fronteiras, misturando inevitavelmente suas águas, umas com as outras” (Benedict, 1972/1946, p.18).
Continuando suas pesquisas nessa linha de relativismo cultural, Boas interessou-se também pelo estudo da adolescência em outros povos, tendo em vista que no ocidente esta é considerada uma fase inevitavelmente conturbada devido a causas biológicas, inclusive com uma tendência a generalizar esta característica como universal. Sua aluna Margaret Mead realizou, então, estudos etnográficos com um grupo de jovens em Samoa, posteriormente publicado como “Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa”; observando que nesta cultura a passagem da infância à adolescência representava uma transição suave e deduzindo que, portanto, os distúrbios psicológicos observáveis entre os jovens americanos não seriam devidos à sua fisiologia, mas à própria civilização dita ocidental.
Mead estava interessada na maneira pela qual um indivíduo recebe a cultura, através de quais mecanismos esta o “treina” e as implicações para a formação de aspectos dominantes de sua personalidade. Conviveu ainda com três grupos distintos na Nova Guiné (1935/1979), e suas observações expandiram a noção de influência cultural para a personalidade referente a cada sexo – também conectada à biologia no ocidente, constatando que nestas culturas as personalidades "aprovadas" socialmente para cada sexo eram muito diferentes da nossa visão habitual de feminino e masculino.
Entre os Arapesh e os Mundugumor, por exemplo, sequer existe contraste entre os sexos: na primeira etnia, tanto homens quanto mulheres apresentam personalidades dóceis e suscetíveis; enquanto na segunda, estas são violentas e agressivas. Já na terceira etnia, os Tchambuli, Mead percebeu uma inversão das atitudes sexuais relativamente à sua própria cultura, sendo a mulher o parceiro dirigente, dominador, e o homem, a pessoa menos responsável e emocionalmente mais dependente. A autora atribuiu tais variações às diferenças de condicionamento oferecidas por cada cultura, principalmente ativas durante a primeira infância, sugerindo que as diferenças de personalidade, padronizadas entre os sexos, constituem apenas criações culturais às quais cada geração é condicionada a se conformar. Quanto aos eventuais indivíduos desajustados em seu papel psicossocial, estes representariam, na verdade, a própria evidência de que existe mais de um conjunto de valores culturais possíveis.
Ainda sobre esta escola antropológica, denominada também de “Cultura e Personalidade”, conforme mencionado anteriormente, o autor Gilberto Freyre declarou ter alterado sua visão de cultura e raça – intimamente relacionadas nas teorias evolucionistas, após a leitura das obras de Franz Boas. Atualmente há sérias controvérsias sobre sua obra Casa Grande e Senzala (Benzaquen, 1994) e sobre a coerência de suas afirmações pessoais; contudo, Freyre menciona em sua obra que a partir de tais estudos aprendeu a fundamental diferença entre os conceitos de raça e cultura, reconsiderando o valor do negro e do mulato – desvalorizados pelo evolucionismo, além de recuperar as contribuições das culturas negras e indígenas, que se somaram àquelas dos portugueses para a formação de nossa nacionalidade. A “personalidade” de nossa cultura seria, assim, o resultado de uma mestiçagem sincrética, processo pelo qual propriedades singulares de cada povo não seriam dissolvidas em uma nova figura com perfil próprio. Esta mestiçagem seria – respeitando as idéias de Boas – também reproduzida nos mais diversos níveis de conduta do povo brasileiro, revelando inclusive uma série de ambiguidades e antagonismos.


(Antropologia II, 2014, FFLCH - USP)



Referências

ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: Editora 34, 1994.

BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada: padrões da cultura japonesa. São Paulo: Perspectiva, 1972 [1946].

BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. Lisboa: Ed. Livros do Brasil [1934].

BOAS, Franz. In: Franz Boas: Antropologia Cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª Edição. São Paulo: Global, 2003 [1933].

MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento em três sociedades primitivas. São Paulo: Perspectiva, 1979 [1935].