Ensaio sobre a Dádiva (Mauss) - resumo parcial
Resumo: Mauss, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia, vol.2. São Paulo, EDUSP, 1974. (Introdução, Cap. I e Conclusão).
Marcel Mauss introduz a obra afirmando seu grande interesse pelo sistema de direito contratual e de prestações econômicas entre os subgrupos das sociedades ditas primitivas; um conjunto de fenômenos sociais totais pelos quais se exprimem todos os tipos de instituições, religiosas, jurídicas e morais. Dentre essa complexidade, considerou apenas um traço, o caráter voluntário, aparentemente livre e gratuito, todavia imposto e interessado, dessas prestações; cuja forma assumida é habitualmente a de presente generoso, mesmo quando os gestos que acompanham a transação revelam apenas formalismo e ficção. “Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua?” (p.42).
Estes questionamentos levaram o autor a novos problemas, concernentes às formas permanentes da moral contratual (direito real ligado ao pessoal) e às que presidem as trocas (noção de interesse individual); com o estabelecimento da dupla meta de alcançar conclusões sobre a natureza das transações nas sociedades que nos cercam ou precederam, e sobre a moral e economia que nelas operam.
Nas sociedades “primitivas” ou arcaicas, os fenômenos de troca e contrato não são destituídos de mercado econômico como se pensava, apenas seu regime é diferente. Nelas pode ser visto o mercado antes da instituição dos mercadores e de sua invenção, a moeda, além da moral e economia vigente nas transações anteriores às formas modernas de contrato e venda e da moeda de título determinado. Para Mauss, essa moral e economia ainda funcionam de maneira constante e subjacente em nossas sociedades, constituindo a base sobre a qual estas foram erigidas, possibilitando a inferência de algumas conclusões morais sobre as crises em nosso direito e economia.
O autor utilizou um método de comparação precisa, com restrições: inicialmente estudando o tema em áreas determinadas (Polinésia, Melanésia e noroeste americano) e a seguir escolhendo locais que permitiam acesso à “consciência” das sociedades através da documentação e trabalho filológico disponíveis. Cada estudo procurou descrever apenas um sistema na íntegra, renunciando ao tipo de comparação constante no qual tudo se confunde, fazendo com que as instituições percam sua cor local.
Mauss ressalta que nunca foi constatada a existência de sociedades com algum tipo de “economia natural”, simples trocas de bens, produtos ou riquezas entre indivíduos. São sempre as coletividades que se obrigam mutuamente, trocando e contratando; pessoas morais, famílias, clãs, tribos, enfrentando-se em grupos ou por intermédio de seus chefes. “Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis ou imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente” (p.45).
As prestações e contra-prestações são feitas principalmente de forma voluntária, através de presentes, embora no fundo sejam obrigatórias. Mauss as denominou de sistema de prestações totais, sendo seu tipo mais puro a aliança entre duas frátrias (caso de tribos australianas e norte americanas) em que tudo é complementar - ritos, casamentos, sucessão dos bens, postos militares ou sacerdotais etc. - e supõe a colaboração das duas metades da tribo.
Nessas regiões (norte e noroeste americano, Melanésia e Papuásia, por exemplo) existe ainda outra forma mais rara, embora típica, dessas prestações totais, o Potlatch, palavra que significa alimentar, consumir; são tribos ricas, as quais passam o inverno em constante festa, banquetes, feiras e mercados, que ao mesmo tempo representam uma assembléia solene. Os princípios de rivalidade e antagonismo dominam todas as práticas, prestações totais do tipo agonístico, visando assegurar hierarquias que beneficiarão os clãs: batalhas onde chefes e nobres se enfrentam e morrem, e a destruição de riquezas para eclipsar chefes rivais associados.
Os tipos mais elementares de prestação total são mais comuns, todavia podem ser encontrados ainda outros tipos, intermediários relativamente aos agonísticos, além de exemplos de rivalização através de presentes (no antigo mundo indo-europeu, por exemplo).
Capítulo 1: Prestação total, bens uterinos contra bens masculinos (Samoa)
Durante muito tempo, pensou-se que não havia Potlatch na Polinésia. As sociedades nas quais as intituições mais se aproximavam dele não pareciam ultrapassar o sistema de prestações totais de contratos perpétuos entre os clãs; estando ausentes os elementos de rivalidade, destruição e combate, bastante comuns na Melanésia.
O sistema de presentes contratuais em Samoa, contudo estende-se muito além do casamento, acompanhando também os nascimentos, enfermidades, puberdade, ritos funerários, comércio etc.; além disto, dois elementos essenciais do Potlatch foram claramente atestados: o da honra, do prestígio, do mana conferido pela riqueza, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder justamente o mana e a autoridade (por sua vez, também talismã e fonte de riqueza).
Na Polinésia, “oloa” são os bens móveis, em sua maior parte os instrumentos do marido; e “taonga” são os “bens uterinos”, imóveis e permanentes, como as esteiras de casamento, decorações e talismãs que entram numa nova família através da mulher (filhos, inclusive). A noção conota ainda a “propriedade propriamente dita, tudo aquilo que torna alguém rico, poderoso e influente, tudo aquilo que pode ser trocado, objeto de compensação” (p.52): são as “propriedades talismã”, tesouros, brasões, ídolos sagrados, tradições, cultos, rituais mágicos etc.
Os taonga estão fortemente ligados à pessoa, ao clã e ao solo, constituindo o veículo de seu mana, força mágica, religiosa e espiritual; contendo em si esta força e capazes de destruir o indivíduo que os recebe caso a obrigação de retribuir não seja observada. “Hau” significa vento e alma, em muitos casos alma das coisas inanimadas e vegetais, enquanto a palavra mana é mais utilizada para homens e espíritos: “Os taonga e todas as propriedades rigorosamente ditas pessoais têm um hau, um poder espiritual. Você me dá uma delas, eu a dou a um terceiro; este a retribui com uma outra porque é impelido pelo hau de meu presente; e, quanto a mim, sou obrigado a dar-lhe esta coisa, pois é preciso que eu lhe devolva aquilo que, na verdade, é o produto do hau de seu taonga” (p.54).
Temos aqui a idéia chave do direito Maori: o que, no presente recebido e trocado, cria uma obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte, mesmo abandonada pelo doador ainda possui algo dele; por meio dela este tem uma ascendência sobre o beneficiário, assim como o proprietário a tem sobre o ladrão. O taonga é animado pelo hau de sua floresta e território, perseguindo todos os seus detentores até que estes retribuam com seus próprios taonga. Essa é a natureza do vínculo jurídico criado pela transmissão de bens: presentear é dar algo de si, da essência espiritual, fato que torna necessária a retribuição pelo perigo que representa conservar uma coisa não inerte; os bens móveis ou imóveis produzindo uma ascendência mágica e religiosa sobre o indivíduo.
Para compreender a instituição de prestação total e de potlatch há que se analisar todos os seus aspectos, não só a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas também a de dá-los e a de recebê-los. Um clã, grupo doméstico, caravana ou hóspede não têm a liberdade de não solicitar hospitalidade, não receber presentes ou não comerciar; recusar-se a dar, convidar e receber equivale a declarar guerra, dispensando aliança e comunhão. Há, assim, uma mistura de vínculos espirituais entre as coisas e os indivíduos, troca constante de uma matéria espiritual que compreende coisas e homens.
Um quarto tema desempenha um papel importante nessa economia e moral dos presentes. Nas sociedades do nordeste siberiano e entre os esquimó do oeste do Alasca, o Potlatch produz efeito não apenas sobre os homens que rivalizam em generosidade durante as trocas de presentes; mas também sobre os deuses - verdadeiros proprietários dos bens do mundo, os espíritos dos mortos, as coisas, a natureza e os animais, incitando-os a serem generosos e gerando, assim, uma abundância de riquezas.
Conclusão
Uma parte considerável de nossa moral continua nessa mesma atmosfera de dádiva, obrigação e liberdade misturadas; nem tudo é classificado exclusivamente como compra e venda, as coisas ainda possuem um valor sentimental. “A dádiva não retribuída ainda inferioriza aquele que a aceitou (...). A caridade fere ainda aquele que a aceita e todo o esforço de nossa moral tende a suprimir a patronagem inconsciente e injusta do rico ‘caridoso’” (p.163); o convite deve ser retribuído, assim como a gentileza, e ainda existem costumes que visam separar o vendedor da coisa vendida.
“O sistema que nos propusemos a chamar de prestações totais de clã a clã, aquele no qual indivíduos e grupos trocam tudo entre si, constitui o mais antigo sistema de economia e de direito que podemos constatar e conceber. Ele forma o fundo do qual destacou-se a moral da dádiva-troca” (p.169). Dádivas não são livres nem realmente desinteressadas, na maioria já são contra prestações que visam não apenas o pagamento de serviços e coisas, mas também a manutenção de alianças proveitosas. Nas sociedades de potlatch, é a hierarquia que se estabelece a partir dessas dádivas. Aceitar sem retribuir é subordinar-se, tornar-se cliente ou servidor. Contudo, se algum motivo equivalente anima os chefes desses diferentes povos, este não é a razão fria e utilitária do capitalista; o entesouramento existe, mas para ser gasto e para “obrigar”. Trocam-se objetos de luxo ou coisas imediatamente consumíveis e também existe a retribuição com juros, mas não como compensação e sim para humilhar o doador.
(FFLCH, Antropologia I, 2015)