Sobre a construção do conhecimento nas Ciências Sociais
Zygmunt Bauman (2011), na introdução de sua obra "Aprendendo a Pensar com a Sociologia", coloca em discussão a questão da divisão entre os diferentes corpos do conhecimento humano, particularmente as ciências cuja preocupação em comum está voltada para o mundo criado pelos homens, aquele decorrente de suas ações sociais. Em que afinal se distinguem esses saberes e como surgiu a idéia de que as ações humanas podem ser divididas em categorias? A resposta mais imediata, do senso comum, seria que essa separação simplesmente reflete as divisões já existentes dos distintos universos de investigação.
As ciências têm sido assim classificadas no decorrer da história, com o decorrente surgimento de especialistas para cada área do saber; contudo, tais divisões não fazem sentido do ponto de vista das experiências cotidianas e inclusive perdem sua obviedade ao serem examinados os pressupostos que as sustentam: não existe divisão “natural” do mundo humano, apenas uma divisão de trabalho entre seus estudiosos. “O que conhecemos, portanto, não seria o mundo em si, mas o que estamos fazendo em termos de como nossas práticas são conformadas por uma imagem daquele mundo. Trata-se de um modelo construído com os blocos derivados das relações entre linguagem e experiência” (BAUMAN, 2011, p.14).
As práticas das diferentes disciplinas sociais também são similares, buscando coletar fatos relevantes, procurando garantir sua validade e confiabilidade e confirmar as proposições estabelecidas sobre estes fatos através de evidências empíricas. Desta forma, resta como traço distintivo o tipo de questão que motiva cada campo e determina os pontos de vista (perspectivas cognitivas) pelos quais as ações humanas são observadas, pesquisadas, descritas e explicadas pelos diversos tipos de cientistas. A Sociologia, em particular, “se distingue por observar as ações humanas como elementos de figurações mais amplas; ou seja, uma montagem não aleatória de atores reunidos em rede de dependência mútua” (BAUMAN, 2011, p.16). O objeto ou questão central da Sociologia, que a define como ramo relativamente autônomo das Ciências Sociais é, assim, “como os tipos de relações sociais e de sociedades em que vivemos têm a ver com as imagens que formamos uns dos outros, de nós mesmos e de nosso conhecimento, ações e consequências?”.
Sociólogos procuram manter distância de seus objetos de estudo, tratando as experiências sociais como se fossem objetos exteriores; porém é impossível um desligamento completo, já que compartilham o mesmo mundo e história com os demais seres humanos. Esse entrelaçamento com o objeto, contudo, para Bauman pode ao mesmo tempo constituir uma vantagem para o trabalho, pois sociólogos “possuem uma visão interna e externa das experiências que tentam entender” (BAUMAN, 2011, p.20).
A sociologia está, portanto, também relacionada intimamente ao senso comum, através de fronteiras bastante flexíveis e permeáveis. As ações humanas e interações que fazem parte de seu campo de interesses, diferentemente das ciências da natureza – as quais não precisam “competir” com o senso comum carente de tais perspectivas, já foram nomeadas e analisadas pelos próprios atores; constituindo, assim, objetos de conhecimento do senso comum, cujo poder é justamente o não questionamento de seus preceitos e de sua autoconfirmação na prática, repousando na rotina que o conforma e por ele é conformada.
A principal diferença é que a Sociologia está subordinada às regras rigorosas e ao discurso responsável que tornam possível a credibilidade da ciência, distinguindo as afirmações que podem ser corroboradas por evidências, mantendo abertura para “fiscalização” e a capacidade de relacionamento com afirmações distintas. Comparando experiências humanas prospectadas a partir da multiplicidade de mundos existentes, a Sociologia amplia horizontes, desvelando a complexa rede de conexões que as envolve, e as ligações íntimas entre biografias individuais e os processos sociais mais amplos.
Quando repetidos com frequencia, fatos tendem a se tornar familiares, e o que é familiar costuma ser considerado autoexplicativo. “Aprender a pensar com a Sociologia é uma forma de compreender o mundo dos homens que também abre a possibilidade de pensá-lo de diferentes maneiras” (BAUMAN, 2011, p.17), com questionamentos que podem transformar o evidente em enigma, desfamiliarizando o familiar.
Outro importante autor que discorreu sobre as questões epistemológicas das Ciências Sociais foi Bourdieu (2004), particularmente na obra A Profissão de Sociólogo. Para Bourdieu, assim como para Bauman (2011), manter constante vigilância epistemológica é um imperativo para as ciências do homem, já que a separação entre senso comum e discurso científico é muito imprecisa nesta área. Porém os dois autores divergem quanto à utilidade da familiaridade do sociólogo com o universo social compartilhado: para Bourdieu, esta proporciona a ilusão do saber imediato e constitui “o obstáculo epistemológico por excelência, porque produz continuamente concepções ou sistematizações fictícias ao mesmo tempo que as condições de sua credibilidade” (BOURDIEU, PASSERON & CHAMBOREDON, 2004, p.23). Enquanto para os cientistas da natureza a oposição é nítida entre o laboratório e a vida cotidiana, para os sociais é grande a dificuldade em estabelecer uma separação entre percepção e ciência, complicada ainda pela ausência de herança teórica que lhes permita recusar radicalmente a linguagem corrente e as noções comuns.
O autor propõe, assim, uma “ruptura” com essas pré-noções, abstenção das opiniões previamente formadas e das noções do senso comum. Para tanto sugere as seguintes técnicas: crítica lógica das noções, comprovação estatística de falsas evidências, contestação decisória e metódica das aparências, e inclusive o questionamento das teorias tradicionais visando progresso teórico. O ato da invenção, que conduz à solução de problemas, deve, portanto, ser capaz de quebrar as relações aparentes e familiares, permitindo a emergência de novos sistemas de relações entre os elementos; e não apenas transpor, de forma irrelevante, os gestos espontâneos das práticas ingênuas.
Bauman (2011) menciona imagens e representações em suas discussões sobre o fazer sociológico, enquanto Bourdieu parece recusá-las, privilegiando, com seu “princípio da não-consciência”, as relações objetivas nas quais os indivíduos estão inseridos, em lugar das representações que estes fazem de suas relações sociais.
Bourdieu concorda com Ferdinand de Saussure quanto à criação do objeto de estudo pelo próprio ponto de vista aplicado, rompendo, assim, com o “realismo ingênuo” e considerando que uma ciência não poderia ser definida por qualquer campo do real que lhe pertencesse; e também com Max Weber, quanto à delimitação existente entre os diversos campos científicos: não seriam as relações reais entre as coisas que a constituem, mas as relações conceituais entre os problemas. Para Bourdieu, nada se opõe mais às evidências do senso comum que a distinção entre o objeto “real” pré-construído pela percepção e o objeto da ciência, um sistema de relações propositalmente construídas.
Podemos concluir que as discussões epistemológicas são sempre importantes para qualquer ciência, e independente da concepção filosófica de objeto ou da linha teórica adotada, o diálogo imparcial entre senso comum, percepção do “real”, dados empíricos, construções e confirmações teóricas etc. nunca deveria ser abandonado; tampouco privilegiadas preferências pessoais e do status quo acadêmico, frequentemente políticas, interessadas, tendenciosas, relativas e incompletas, pelo simples fato de serem humanas.
Referências
BAUMAN, Z.; TIM, M. Aprendendo a Pensar com a Sociologia. Rio de janeiro, Zahar, 2011 (cap. 1, pp.11-30).
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.; CHAMBOREDON, J. O Ofício de Sociólogo. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 2004 (cap1, pp.23-38 e cap2, pp.48-64).
(Métodos e Técnicas de Pesquisa I, FFLCH, 2015)