Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional
Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional
Water in Angola: the unsustainable weakness of the institutional system.
Álvaro Pereira
p. 63-85
Resumos
O artigo enquadra-se numa linha de estudos que privilegia o ambiente como domínio de investigação em ciências sociais e resulta de uma pesquisa que procurou conhecer o papel do sistema institucional na governação da água em Angola. O país exibe elevadas taxas de crescimento económico a par de uma muito precária distribuição de água potável. Este défice questiona a capacidade de resposta institucional para satisfazer as necessidades básicas de consumo de água das populações e para suster a proliferação descontrolada dum sector informal ligado à venda da água. Note-se que esta situação repercute-se nos indicadores de desenvolvimento e na persistência de graves problemas de saúde pública. A abordagem privilegiada alicerça-se numa matriz que discute os desafios que se colocam à apropriação e ao uso dos recursos naturais renováveis, num contexto marcado por apelos à adopção de políticas que atendam aos princípios do “desenvolvimento sustentável” e da gestão integrada dos recursos hídricos.Uma discussão sobre esta temática não pode escamotear o contexto hidro-geográfico e geopolítico de âmbito regional, corporizado na Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC). Angola é um dos países com mais reservas hídricas numa região com graves problemas de escassez. Este facto coloca desafios particulares ao sistema institucional e confere-lhe centralidade na resolução de dificuldades e tensões.
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Notas da redacção
Recebido a: 24/Maio/2011
Enviado para avaliação: 18/Agosto/2011
Recepção da apreciação: 3 e 10/Outubro/2011
Aceite para publicação: 15/Outubro/2011
Enviado para avaliação: 18/Agosto/2011
Recepção da apreciação: 3 e 10/Outubro/2011
Aceite para publicação: 15/Outubro/2011
Texto integral
Nota prévia
1O tema Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional é subsidiário de uma pesquisa1 sobre a governação da água em Angola, tendo como pano de fundo a relação entre populações, territórios e recursos hídricos, enquanto recursos naturais renováveis. O trabalho desenvolvido enquadrou-se, ainda, no Plano de Investigação Programada (2005-2008), do Núcleo de Ecologia Social (NESO) do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC).
2A necessidade de aprofundamento das relações entre os países da lusofonia constitui um vector que pode assumir uma dimensão estratégica. Tenha-se em conta que os países que pertencem à Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) estão envolvidos em processos de integração regional que, podendo constituir ameaças à sua componente lusófona, encerram também consideráveis oportunidades para a sua afirmação.
3Neste contexto a interrogação que se pode colocar é a de saber que atitude esta Comunidade deve assumir neste quadro geopolítico e muito particularmente as suas instituições com capacidade de influência técnico-científica, política e social. A criação e consolidação redes técnico-científicas poderia desempenhar um importante papel no apoio à governação dos países da CPLP, em particular os que enfrentam os desafios mais prementes de desenvolvimento.
1. Introdução
4O presente artigo discute o papel do sistema institucional face ao paradoxo corporizado na abundância de recursos hídricos e nas dificuldades de acesso a água potável, que a generalidade da população angolana tem experimentado.
5Procura-se demonstrar que os problemas de planeamento e de gestão, que o caso da água em Angola revela, são transversais aos problemas de governação em geral e resultam, em grande parte, de um habitus que atravessa diferentes domínios da vida cultural, económica-social e política do país.
6O acesso à água por parte dos mais vulneráveis e a gestão dos rios transfronteiriços são identificados no Relatório do Desenvolvimento Humano 2006 2, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), como dois dos problemas mais sensíveis que o Mundo enfrenta. Por paradoxal que possa parecer tais problemas residem, sobretudo, nas instituições e nas políticas e não tanto nas reservas hídricas existentes. Acresce que nos países em desenvolvimento o acesso a água potável é particularmente determinado pelos vincados problemas de desigualdade social que esses países enfrentam.
7A política e o sistema institucional emergem, pois, como instrumentos decisivos para superar ou perpetuar este tipo de problemas. Angola tem enfrentado os dois desafios atrás enunciados, a par de uma multiplicidade de problemas de acesso a água potável.
8A discussão sobre o papel do sistema institucional na governação da água em Angola não pode ignorar o contexto regional (a África Austral), com tradução institucional e territorial na Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral 3. Este processo de integração regional tem sido gerador de dinâmicas regionais, com reflexos nos princípios orientadores da gestão dos recursos hídricos.
9Neste quadro, a existência de instituições com competências técnico-administrativas reconhecidas é da maior importância negocial, mas esta importância decorre ainda da sua acção no plano interno, enquanto mediadores entre os recursos hídricos e os utilizadores. De facto, as instituições tendem a constituir-se como instâncias redutoras da incerteza face à necessidade de garantir quotidianamente acesso aos recursos, mesmo pressupondo-se que nenhum sistema institucional constitui, por si, solução total para a multiplicidade de problemas que a gestão dos recursos hídricos suscita.
10As exigências de governação em Angola não escapam a quadros mentais estruturantes da vida colectiva, nomeadamente: (i) persistência de mecanismos informais/valores “tradicionais”; (ii) urgência da construção e consolidação do Estado-Nação; e (iii) emergência dos processos de integração regional.
11A persistência dos mecanismos informais tende a ser transversal à sociedade e à economia e reflecte-se na dificuldade das leis se afirmarem como instrumentos de regulação da vida em sociedade, em detrimento de formas mais arreigadas, expeditas e arbitrárias de exercício do poder.
12Discutir a urgência de construção e consolidação do Estado remete para a convicção de que reside aí boa parte das respostas aos problemas subjacentes aos mecanismos informais atrás referidos. Note-se que crescem aspirações e exigências de melhoria de qualidade de vida (saúde, segurança alimentar, higiene) por parte da população em geral. As respostas a estas aspirações decorrem, em grande parte, da capacidade do Estado (e dos respectivos aparelhos burocrático-administrativos) em promover a infra-estruturação generalizada de serviços básicos (água, energia e vias de comunicação) e em garantir o funcionamento, com padrões mínimos de qualidade, de equipamentos e de serviços nos sectores da saúde, educação e justiça.
13Só que a consolidação do Estado, por via da sua capacitação institucional, confronta-se com um quadro persistente de valores e constrangimentos que favorecem os mecanismos informais. Esta situação encerra contradições e configura movimentos político-culturais dissonantes, que não poderão deixar de interferir no campo da governação. Com efeito, a acção política enquanto via de consolidação e de estruturação de um modelo de sociedade é seriamente dificultada num terreno tão permeável a acções que, no limite, se anulam reciprocamente.
14A referência ao processo de integração regional inscreve-se na ordem política e económica dominante, como tendência generalizada de resposta aos fenómenos da globalização. Este movimento contraria, pelo menos do ponto de vista doutrinal e porventura cultural, a aposta na consolidação do Estado e agita questões sensíveis relativas à sua soberania. Paradoxalmente é em relação aos recursos hídricos, de que os rios transfronteiriços constituem um excelente exemplo, que uma governação cooperante à escala regional faz bastante sentido, apesar dos sentimentos nacionalistas que a água suscita.
15A necessidade de cooperação entre Estados, unidos por rios transfronteiriços, e a promoção da sua gestão conjunta não pode, ainda, no actual contexto regional, deixar de ser objecto de análise pelas implicações, entre outras, no complexo de segurança da África Austral [Turton & Ashton 2004]. Uma análise desta natureza deverá ter em conta as condições de aplicação das doutrinas de soberania, em relação aos recursos hídricos, subscritas nos acordos internacionais, de âmbito regional e global. A adesão aos princípios contidos nesses acordos é, em princípio, preventiva de acções unilaterais assentes nas relações de poder, mas a bondade dos princípios depende da sua materialização e das possibilidades de acompanhamento.
16A análise das estruturas responsáveis pela governação da água e de um modo geral do sistema institucional com competências no planeamento e na gestão dos recursos hídricos, bem como a sua adequação aos problemas específicos, permite conhecer a atitude política face aos mesmos. Como lembra Nunes Correia4, as estruturas institucionais existentes constituem, elas próprias, um elemento decisivo na forma como os problemas são formulados e na abordagem para a sua resolução, ao condicionarem a definição de critérios a partir dos quais se avalia uma política.
2. Recursos naturais renováveis: valores, modos de apropriação e papel dos sistemas institucionais
17A noção de recurso natural pressupõe capacidade e meios de exploração/extracção de uma reserva (matéria-prima) passível de utilização por parte da sociedade. Neste contexto os sistemas sócio-técnicos assumem um papel essencial, não só contribuindo para a exploração de determinadas elementos da natureza, mas também criando artefactos que necessitam desses recursos ou desenvolvendo campos para a sua aplicação.
18Os recursos naturais podem ser classificados em duas grandes categorias: esgotáveis ou renováveis, mediante determinadas condições de uso. Estes pressupostos impõem uma racionalidade intuitiva na sua utilização? E uma hipotética racionalidade está associada às possibilidades de renovação?
19A renovação dos recursos naturais decorre da capacidade dos ecossistemas gerarem reservas que substituam as consumidas pela acção humana e animal e na retroacção que assegura os próprios ecossistemas. Um processo dinâmico desta natureza dificulta a avaliação dos recursos naturais renováveis em termos de “stocks”, uma vez que a sua renovação está sujeita a uma variabilidade (natural e antrópica), decorrente em grande medida da interacção entre a componente biofísica dos ecossistemas e destes com os sistemas sociais. Daí que Raison [1986: 297] lembre que “os recursos, quanto à sua natureza, à sua quantidade, ao seu valor, apresentam-se sempre como factos sociais. A sua existência objectiva, a sua presença em quantidade não determinam o seu consumo, que depende em primeiro lugar da utilidade que lhes é reconhecida pela sociedade que os possui”.
20A governação dos recursos naturais renováveis não pode, pois, deixar de incorporar esta relação entre sistemas naturais e sistemas socioculturais, que condiciona os usos desses recursos, bem como o modo e a legitimidade da sua apropriação5. A discussão em torno dos usos ou da apropriação dos recursos naturais renováveis, neste trabalho, tem como foco os recursos hídricos.
21A escassez ou o esgotamento de recursos hídricos, em algumas regiões, emerge como um dado consensual, apesar da incerteza do conhecimento e dos limites das previsões. Face a este potencial estado de necessidade, a tendência dominante inclina-se para a apologia de processos decisórios e modalidades de apropriação que tenham em consideração a previsível limitação deste recurso. Essa tendência é traduzida por políticas ambientais de perfil antecipatório-preventivo que incorpore o longo prazo.
22Adiar, até ao limite do possível, a alteração de hábitos e de práticas cristalizadas afigura-se como uma hipótese plausível no quadro do funcionamento das sociedades. Quase só em estado de necessidade se promove a mudança e, por vezes, os suportes técnico-científicos que a sustenta. Esta tendência pode ser lida à luz da lei do menor esforço que, como lembra Raison [1986], tende no imediato a privilegiar o menor esforço na satisfação de necessidades, mesmo que isso signifique aceitar um regime de livre acesso aos recursos, logo a uma maior probabilidade para o seu desperdício e escassez no futuro.
23Para este autor, a concentração populacional nas cidades fez despertar a necessidade de alterar práticas de apropriação (uso) da água, bem como desenvolver técnicas para o seu armazenamento e distribuição. Os movimentos migratórios em direcção às cidades, ou o estado de necessidade dele resultante, podem, assim, ter estado na origem de limitações de acesso à água e talvez tenham conduzido à adopção das primeiras medidas de uso eficiente dos recursos hídricos.
24Os usos da água encerram, de facto, diversos paradoxos. Enquanto recurso natural vital poderia desencadear uma racionalidade intuitiva na sua utilização. Tal porém nem sempre ou raramente acontece. Das múltiplas hipóteses passíveis de formulação para explicar estes comportamentos, destacaremos duas: por um lado, quem dele usufrui, como inerente à normalidade social, não interioriza que esse hábito é privilégio de uma minoria da população mundial e, por outro lado, a ideia de um recurso natural que se renova suscita passividade. Mas o que os dados disponíveis demonstram é que à escala do planeta a água doce é um bem muito escasso, representa apenas 2,5% do total da água existente [ONU 2003] e as possibilidades de renovação não são uma inevitabilidade natural.
25A discussão sobre a apropriação dos recursos hídricos é tributária de noções que procuram compreender a relação entre as comunidades humanas e os recursos naturais renováveis, enquanto bens comuns. Essa relação pressupõe atitudes e comportamentos assentes em valores (de aproximação, afastamento, domínio, respeito), aqui designados por representações da natureza [Godard 2002].
26Assim, as modalidades de apropriação dos recursos remetem para conflitos de interesses, que devem ser entendidos como estando enraizados no confronto entre diferentes representações da natureza que coexistem nas sociedades. Estas representações forçam legitimidades próprias sobre a natureza, que podem derivar para situações de conflito nos usos dos recursos naturais. Cada representação/legitimação (mercantil, industrial, cívica, doméstica, de protecção da natureza, entre outras) justifica o uso desse bem comum, evocando princípios que o legitimam, passíveis de serem convocados para arbitrar eventuais disputas ou fundamentar o seu acesso [Godard 2002]. Os usos dos recursos, como já vimos, emanam e são sustentados por diferentes, e por vezes contraditórios, princípios de legitimidade. Os modos de apropriação dos recursos naturais percorrem um leque que pode tocar dois extremos: da privatização absoluta ao livre acesso. De facto, as modalidades de apropriação e os tipos de propriedade dos recursos naturais não são inócuos, nem do ponto de vista social nem numa óptica ambiental. Enquanto a privatização absoluta é geradora de fortes desigualdades no acesso aos recursos naturais, o livre acesso pode instaurar uma dinâmica de delapidação e sobre-exploração desses recursos.
27O que está em causa, em última instância, são as opções políticas privilegiadas na afectação dos recursos e a necessidade de se encontrar pontos de equilíbrio (e compromissos) que mitiguem os potenciais conflitos de interesses entre diferentes representações/legitimações.
28Cabe aos sistemas institucionais assegurar esse equilíbrio, promovendo a aplicação de um quadro legal e monitorizando a sua adequabilidade às dinâmicas políticas, económico-sociais, ambientais e ao desenvolvimento técnico-científico. Na ausência de um compromisso que configure um princípio de legitimidade mobilizável para arbitrar conflitos de interesses, coloca-se a questão das acções sem justificação legítima, assentes nas relações de poder. Nestas acções não se excluem os arranjos pontuais e contingentes e o recurso à força e à violência. Este é, aliás, o quadro com que se confrontam os países com sistemas institucionais frágeis e com pouca tradição na governação dos recursos naturais.
29As instituições assumem neste quadro uma importante função de regulação, mas o seu papel acaba por ter um âmbito mais lato de natureza operacional e também simbólica, enquanto instrumentos sociais de redução das incertezas6. As instituições podem, de facto, ser vistas como garantes da disponibilidade diária de água potável, do tratamento da água suja (acautelando os seus impactos humanos e ambientais) e emergindo como instância mediadora em situações extremas (cheias, secas). A efectiva assunção destes pressupostos está dependente do nível e do tipo de estruturação das sociedades. Como se sabe esta função social atribuída às instituições é mais dificilmente assegurada pelos países ditos em desenvolvimento, mercê da vulnerabilidade, e por vezes juventude, dos seus aparelhos burocrático-administrativos. Sendo estas estruturas institucionais vitais à formação e consolidação dos Estados, a discussão sobre os modelos institucionais a erigir, perpetuar ou inovar é, nestes países, porventura mais premente.
30Uma das grandes dificuldades de governação dos recursos reside na obtenção de arranjos institucionais que corporizem a unidade de acção de multi-actores e a participação activa do público. De facto, fazer com que o público se entenda como titular de um bem comum é uma tarefa muito exigente, nomeadamente em contextos urbanos de forte desvantagem económica e social. Esta conquista é crucial uma vez que as instituições pouco conseguem sem que os actores individuais ajam num sentido colectivo. Se os actores sociais não se percebem e não se comportam como titulares patrimoniais de um bem comum existe uma forte probabilidade de se aproximarem de uma lógica de economia de pilhagem e de uma relação predadora com os recursos, mobilizando-os unicamente em função das necessidades imediatas.
31Em síntese, pode considerar-se que a governação dos recursos hídricos deve ser perspectivada como resultante da interacção de três pólos: condicionantes bio-físico-químicas inerentes à sua renovação; papel desempenhado pelas instituições; e tipo de gestão adoptado (em parte decorrente das orientações políticas e do papel que o sistema institucional conseguir desempenhar).
3. Discussões sobre desenvolvimento à gestão dos recursos hídricos
32A água potável é um bem de difícil acesso para a maioria da população do Planeta e potencialmente escassa para todos. Esta constatação torna imperioso que se generalizem preocupações e acções de planeamento e de gestão dos recursos hídricos que tenham em atenção aquele dado.
33As acções e as prioridades de governação defrontam, contudo, constrangimentos de índole estrutural e conjuntural, como sejam: o nível de disponibilidade dos recursos hídricos; os quadros mentais, culturais, sócio-políticos, económicos e ambientais; as variáveis de governação inscritas na ordem geopolítica e económica dominantes e, ainda, as teias ideológicas e administrativas. O modo como este conjunto de dimensões se expressa na arena política acaba por reflectir a matriz de desenvolvimento privilegiado e condicionar os modelos de governação.
34No momento de aferir o nível de desenvolvimento de uma sociedade, as dificuldades de acesso à água são incontornáveis. Estas dificuldades podem ser objectivadas pelo grau de condicionamento que representa para a vida das pessoas e colectividades e pelos recursos despendidos, em esforço, de tempo e de dinheiro, para obter a água necessária à sobrevivência e à vida em sociedade.
35Note-se que os quadros de vida associados às dificuldades de acesso à água registam, regra geral, tendências em que se assiste a fortes crescimentos demográficos das populações mais pobres e a crescimentos exponenciais dos consumos de água das populações mais ricas [Raison 1986]. O Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 2006, alerta para os riscos destas tendências, que encontram a sua maior expressão nos já referidos países em desenvolvimento.
36A situação que se vive lança um desafio à acção política, na definição de objectivos e de prioridades a prosseguir. O PNUD toma posição nesta discussão ao preconizar estratégias nacionais fortes na promoção do acesso universal à água e saneamento, por entender que se trata de uma opção política “tão fundamental para o desenvolvimento humano e prosperidade nacional como a política económica e o comércio internacional” [PNUD 2006: 6]. O problema reside no desprezo político e sobretudo orçamental (geralmente representando menos de 0,5% do PIB dos países em desenvolvimento) a que este problema central é votado.
37A opção por determinado tipo de medidas e as prioridades de investimento reconduzem a discussão sobre as lógicas de desenvolvimento a privilegiar. Um dos marcos deste debate dá-se com a publicação do chamado Relatório Brundtland 7 e a noção de “desenvolvimento sustentável” a ele associado. Em termos algo esquemáticos pode dizer-se que as elites políticas das sociedades ocidentais foram sacudidas com o impacto deste relatório e com o tipo de desenvolvimento preconizado. Foi um ponto de partida para a multiplicação de avisos sobre o modo irracional como os recursos naturais estavam (e em certa medida continuam a estar) a ser usados e esgotados.
38O simbolismo desta preocupação foi e é assinalado pela inundação em quase todas as arenas técnico-científicas, ambientais, sociais e políticas de proclamações sobre a necessidade de se abraçar um “desenvolvimento sustentável” 8 ou “durável” – hoje um conceito amplamente discutido, mas paradoxalmente aprisionado por todo o tipo de senso comum e carente de operacionalização, em função dos contextos territoriais e organizacionais em que é mobilizado. Deve, contudo, reconhecer-se que estas preocupações e avisos fizeram um caminho técnico-científico, social e político e, apesar de todas as polémicas, o saldo pode ser considerado positivo. Sobretudo se tivermos em conta a crescente tomada de consciência social face às contingências climáticas e ao agravamento dos desequilíbrios ambientais.
39Em termos muito abreviados, o “desenvolvimento sustentável” procura incutir uma preocupação de preservação ambiental a longo prazo, que assegure a existência de recursos indispensáveis à manutenção dos ecossistemas. Esta manutenção é tida como condição necessária para garantir a permanência da vida humana, fauna e flora, tal como a conhecemos hoje. Uma preocupação de legar um património ambiental às próximas gerações, permitindo o seu usufruto. Este princípio central é complementado por dois outros, de natureza moral/filosófica e de cariz económico: não só garantir um acesso socialmente justo aos recursos naturais, mas também valorizar uma apropriação economicamente eficiente. O modus operandi para atingir estes objectivos tende a ser de complexidade crescente e mobiliza diversos saberes das ciências da natureza, da economia, do direito e de outras ciências sociais.
40O ponto de vista que acabamos de enunciar confronta-se com uma espécie de segunda vaga de consciência ambiental, matizada pela necessidade de não comprometer particularismos culturais ou a “sociodiversidade”. Entende-se que esta perspectiva garante envolvimentos sociais mais facilmente comprometidos com a preservação ambiental. Está-se em presença de uma perspectiva que alguns autores designam por “desenvolvimento viável” [Weber 2002]. Defende-se, em síntese, que a “sociodiversidade” tem um valor idêntico à biodiversidade, o que significa pugnar por uma gestão dos meios naturais que não ignore a “manutenção da viabilidade dos modos de vida” [Weber 2002: 122]. Privilegia-se uma relação de cumplicidade com os ecossistemas (mitigando a agressão, mas não negando as suas variabilidades intrínsecas). Daí o entendimento que a defesa de soluções óptimas, em termos ambientais, deve dar lugar a estratégias adaptativas assentes numa gestão das interacções entre sistemas naturais e sistemas sociais.
41Trata-se de defender uma lógica de desenvolvimento que considere importante assegurar as diversidades biológicas e culturais. Esta assunção pressupõe que se olhe os territórios, os recursos e as populações enquanto “ecossociosistemas”, entendidos como unidades formadas num contexto ecológico e humano, dotadas de organização social com consistência, decorrente do envolvimento e do desenvolvimento de uma relação de pertença comum [Ollagnon 2002]. Dito de outra forma: a transposição de preocupações ambientais e de desenvolvimento não pode ignorar os contextos culturais e locais. Sachs defende múltiplas vias de acesso à modernidade e a necessidade de se traduzir o “desenvolvimento sustentável numa pluralidade de soluções locais, adaptadas a cada ecossistema, a cada cultura e, inclusive, soluções sistémicas de âmbito local” [Sachs 2002: 475]. Há, pois, um debate em curso, que procura libertar campos aprisionados em perspectivas de matriz ecocêntrica ou antropocêntrica.
42A prossecução de uma política da água que contribua para um desenvolvimento que incorpore as dimensões ambientais, socioculturais e económicas que temos vindo a equacionar remete para a necessidade de se discernir sobre modalidades de gestão. A noção de gestão ligada ao meio ambiente surge recorrentemente num duplo sentido: historicamente é associada à acção correctiva que visa reparar à posteriori os impactes resultantes dos processos produtivos, mas tende a ser perspectivada com um sentido mais amplo, ou seja, intervir a montante desses processos, sobretudo se tiverem impactes ambientais. Esta acepção revela a necessidade de uma visão estratégica de longo prazo quando se equacionam opções de desenvolvimento e costuma ser designada por gestão integrada.
43A gestão dos recursos hídricos partilha destes pressupostos. Assenta, ainda, na assunção de três princípios básicos9 associados à boa gestão: o princípio ecológico (marcado por preocupações ambientais à escala das bacias hidrográficas), o princípio institucional (fortemente inspirado nos pressupostos da subsidiariedade) e o princípio económico (ancorado nas leis do mercado) [ONU 2006].
44A tradução operacional destes princípios remete para uma multiplicidade de parâmetros, de entre os quais se podem destacar: (i) adopção de políticas de perfil antecipatório-preventivo que incorpore o longo prazo; (ii) promoção do diálogo pericial, que contemple as diferentes origens dos recursos hídricos e os processos técnicos e de gestão inerentes à sua utilização; e (iii) incentivo à articulação inter-sectorial associada a diferentes usos da água.
45Este esforço de diálogo e de articulação é difícil de alcançar e não está isento de riscos. Uma precaução prévia a observar remete para o estatuto dos actores envolvidos, que pode contemplar a investigação científica, a gestão técnico-comercial e a decisão política sobre os recursos hídricos. Estes actores são portadores, regra geral, de “pressupostos implícitos e silenciosos” [Ollagnon 2002: 175], que dificilmente se alteram.
46A atitude em relação aos parâmetros referidos e às dimensões subjacentes, bem como a capacidade de os concretizar, permitem aferir a natureza da governação dos recursos hídricos e, de certo modo, o modelo de desenvolvimento privilegiado.
47A consolidação de uma gestão integrada dos recursos hídricos representa um novo paradigma de governação da água e constitui uma resposta à “complexidade dos problemas em jogo e as múltiplas relações da água com os vários sectores económicos e com as diversas disciplinas científicas” [Cunha 2004: 10].
48Uma opção que decorre desse novo paradigma de governação da água aponta para as potencialidades da bacia hidrográfica, enquanto unidade espacial de planeamento e de gestão de recursos hídricos. Lasserre e Descroix [2003] sistematizam a discussão em torno da gestão integrada das bacias hidrográficas, assinalando um conjunto de aspectos que passam pela: (i) importância do conhecimento pericial da bacia, mas que não se reduza à fronteira dos meios técnicos e científicos; (ii) assunção de que a água não está apenas ao serviço do homem, mas também dos ecossistemas e (iii) ênfase à mediação político-jurídica, em particular no caso das bacias internacionais. A tónica desta abordagem assenta naquilo que os referidos autores designam por pilares da gestão integrada de recursos hídricos: conhecimento, parceria e participação pública.
49As bacias hidrográficas consubstanciam a relação imbricada entre água e territórios e assumem particular delicadeza nas bacias hidrográficas internacionais, mas também nos Estados federados ou simplesmente territórios vastos percorridos por um mesmo rio. A mediação jurídica e política assume, nestas circunstâncias, uma importante missão, sobretudo em contextos e épocas de escassez. A tradução dessa mediação está inscrita nas diferentes doutrinas de jurisdição de rios internacionais e na capacidade de se fazer cumprir os acordos de regulação inspirados nelas. Essas doutrinas assentam em princípios de direito internacional que rege a jurisdição dos rios internacionais, a saber: soberania territorial absoluta, integridade territorial absoluta, soberania e integridade territorial limitada e utilização optimizada dos recursos hídricos [Cunha 2003].
50A gestão dos recursos hídricos envolve, ainda, outras discussões, nomeadamente as polarizadas em torno da dicotomia administração pública versus mercado. No contexto dos países ditos em desenvolvimento, o sector público é frequentemente associado à ineficácia, desresponsabilização e injustiça [ONU 2006], trazendo a discussão ao terreno e não apenas no plano dos princípios. A consagração de um direito de acesso à água potável esbarra com a incapacidade operacional de o garantir. O sector privado emerge, por vezes, como resposta possível às insuficiências que, de um modo geral, o sector público tem revelado nos países em desenvolvimento. Este tipo de resposta levanta, contudo, diversos problemas de natureza política, sociocultural, económica e ambiental. Um dos mais discutidos remete para o facto de soluções desta natureza favoreceram a tendência para as entidades gestoras (privadas) internalizarem os benefícios e a externalizarem os custos, para a administração pública. Outra discussão centra-se na legitimidade de se procurar garantir e disciplinar a utilização dos recursos hídricos pela via económica.
51A superação desta dicotomia pressupõe opções de natureza política, em busca de tipos de gestão, adaptáveis aos contextos a que se destinam e que respeitem os princípios atrás referidos, associados à boa gestão. Em todo o caso, a discussão em torno das vantagens e desvantagens das modalidades de gestão e, sobretudo, a reprovação ética e política da gestão privada em contextos onde impera a pobreza acaba por ser bastante artificial. Com efeito, como se lembra no Relatório do Desenvolvimento Humano de 2006, “no mundo real as famílias pobres já estão a funcionar em mercados privados de água altamente comercializados, mercados que fornecem água (muitas vezes de má qualidade) a preços excepcionalmente elevados” [ONU 2006: 83].
4. Angola no contexto hidro-geográfico da África Austral
52A Hidrografia da África Austral é marcada pela partilha de diversas bacias hidrográficas. Angola, por exemplo, partilha cinco das grandes Bacias da região: Congo, Zambeze, Cunene, Cubango/Okavango e Cuvelai. Este dado, resultante da existência de rios transfronteiriços, obriga à cooperação entre Estados vizinhos, podendo suscitar melindres entre esses Estados, sobretudo em situações de escassez. No caso de África e na região em apreço, esta situação é bastante evidente e acentuada por vicissitudes históricas, que conduziram à marcação arbitrária das linhas de fronteira e estão na origem dos actuais Estados10.
53Diversos países da região enfrentam contingências climáticas e hidrológicas muito adversas. De facto, as perspectivas hídricas exigem atenção e medidas. O panorama que se antecipa para esses países, aponta para um situação vulnerável em que se encontram. Vários países aparecem já em stress hídrico ou com escassez crónica, tornando imperiosa a cooperação com países vizinhos, nomeadamente com Angola.
54As carências de água e os diferendos que estas potenciam podem assumir dimensões extremas, como foi o caso da primeira intervenção militar 11 da África do Sul em Angola e da subsequente ocupação de território junto à fronteira, para garantir o fornecimento de água a áreas do norte da Namíbia12, a partir do Calueque.
55Este exemplo ilustra a delicadeza de que se reveste a questão hídrica no contexto da África Austral, devendo ser objecto de atenção permanente. Note-se que as disponibilidades hídricas no conjunto da SADC têm vindo a registar uma evolução negativa. Em 1995, os 1784,8 km3 de recursos hídricos anuais renováveis serviam teoricamente 175,8 milhões de pessoas e em 2025 terão de chegar para uma população projectada de 327,5 milhões [SADC et al, 2002].
56O panorama é, contudo, bastante heterogéneo no interior da região. Um dos países que enfrenta a situação mais extrema é a África do Sul13 que, fruto do seu desenvolvimento socioeconómico e do padrão de vida da sua população, apresenta elevados níveis de consumo de água, mas apenas assegura, internamente, cerca de 10% dos recursos hídricos que consome [Ferreira & Guimarães 2003]. Esta situação hídrica é de grande relevância geopolítica, uma vez que encerra uma vulnerabilidade séria do país mais pujante da região, do ponto de vista económico, técnico e científico e com considerável poderio militar. O que fará a potência regional se a situação hídrica se agravar? E como se comportarão os vizinhos que dispõem de maior potencial hídrico?
57Este quadro hídrico, político e geográfico, evidenciado como o “complexo hidropolítico” da região, deve ser perspectivado como peça central no “complexo de segurança da África Austral” [Turton & Ashton 2004: 61]. Deve ainda ter-se em conta, no aprofundamento desta discussão, os pressupostos associados à noção de “água virtual”14 no planeamento e na gestão dos recursos hídricos, sobretudo em países ou regiões em que a escassez se faz sentir de modo intenso.
58No contexto regional, Angola surge aparentemente folgada em matéria de reservas hídricas, embora com assimetrias no seu interior. Segundo dados disponibilizados pela SADC e Direcção Nacional das Águas, o país dispõe da terceira maior disponibilidade de água doce renovável anual da região, a seguir ao Congo e a Moçambique.
59Os dados disponíveis revelam, contudo, um forte crescimento demográfico15, apesar da alta e persistente taxa de mortalidade infantil e de uma baixa esperança de vida à nascença. Esta evolução demográfica exercerá pressão sobre os recursos hídricos, contribuindo para uma baixa da disponibilidade hídrica per capita. Segundo dados da FAO de 2000 [Ferreira & Guimarães 2003], o volume de água por pessoa/ano passará de 15.888 m3 em 2000 para 9.335 m3 em 2025, no pressuposto de uma população de cerca de 22 milhões de habitantes. Se atendermos que há projecções demográficas, nomeadamente da ONU, que apontam para uma população nessa data a rondar os 26 milhões, conclui-se que o constrangimento hídrico poderá ainda ser maior.
60Mas outro dado relevante remete para o facto de Angola ter registado um dos mais baixos padrões de consumo de água da região, como demonstravam os cerca de 30 litros de água que um habitante usava em média por dia, no período 1982-2002 [ONU 2006]. Esta situação, apesar das insuficiências, tem vindo a ser alterada com o melhoramento das infra-estruturas de distribuição e de abastecimento de água.
61Deve ainda ter-se em consideração a presumível pressão sobre os recursos hídricos que o anúncio de projectos de “desenvolvimento” agrícola, com vastas áreas de irrigação, fazem supor. A gestão dos recursos hídricos é pois indissociável do modelo de desenvolvimento preconizado.
62O processo de integração regional da SADC tem impacto potencial na gestão dos recursos hídricos. A SADC prossegue metas que a aproximam das organizações intergovernamentais regionais de integração económica: promover o comércio inter-fronteiriço e a livre circulação de bens e serviços. Em todo o caso, “o debate relativo à integração tem um alcance mais geral do que a simples solução de problemas económicos dos países africanos” [Torres 1999: 77], como sejam as questões de transparência política e de boa governação.
63Este trabalho privilegiou o papel que esta comunidade tem assumido na gestão dos recursos hídricos no contexto regional. Procura-se discutir a mais-valia da integração regional na gestão dos recursos hídricos, apesar das incertezas que marcam este processo de integração. O facto de emergir um quadro institucional multilateral, onde se pode dirimir querelas antigas e actuais, constitui um dado novo que importa explorar. Os documentos constituintes da SADC revelam consciência deste problema e referem explicitamente a necessidade de “utilizar de forma sustentável os recursos naturais e de promover uma protecção eficiente do ambiente natural” [Lima & Mendes 2000: 238].
64Como se disse, os países que integram a SADC partilham diversas bacias hidrográficas, donde ser necessário dispor de instrumentos legais de regulação e de estruturas técnico-científicas e administrativas, capazes de dirimir diferentes perspectivas e interesses em disputa. A tomada de consciência desta necessidade de cooperação fez o seu caminho em direcção a uma política de gestão partilhada das bacias hidrográficas internacionais, que culminou com a assinatura, em 1995, do Protocolo relativo aos Cursos de Água Partilhados da SADC. Um acordo que praticamente não foi aplicado, havendo vários Estados que nem sequer o assinaram, como foi o caso de Angola [Ferreira & Guimarães 2003]. O Protocolo foi revisto em 2000, tendo entrado em vigor em 2003, para se adequar à “Convenção das Nações Unidas sobre a Lei de Usos Não-Navegáveis dos Cursos de Água Internacionais”16, reforçando os direitos dos países a jusante e enfatizando a importância das necessidades ambientais. Esta revisão gerou a adesão generalizada dos Estados membros da SADC.
65A operacionalização do Protocolo dependia da execução do Plano Regional de Acção Estratégica para o Desenvolvimento e Gestão Integrada dos Recursos da Água, previsto para vigorar no período 2005-2010, mas o atraso na sua preparação comprometeu este objectivo. O referido Plano visava, entre outros aspectos: prevenir potenciais conflitos e promover a harmonização das legislações nacionais com o Protocolo; recolher e monitorizar dados sobre os recursos hídricos; desenvolver infra-estruturas que aumentam a segurança hídrica, alimentar e energética; fortalecer a capacitação institucional e as estruturas de gestão ao nível das bacias hidrográficas [ONU 2006].
66O que está pois em causa é aferir a viabilidade de uma gestão integrada de recursos hídricos à escala regional, nomeadamente conhecendo a ressonância das orientações da SADC na definição e na execução da gestão dos recursos hídricos nos diferentes Estados que a integram. Embora não o possamos desenvolver no âmbito deste artigo, devemos fazer notar que a gestão dos recursos hídricos, na região, tem um forte impacto nos graves problemas energéticos com que diferentes Estados da região se defrontam17 [SADC Today 2005].
5. A lei de águas e o programa de desenvolvimento do sector
67No plano formal, Angola deu um importante passo com a publicação da Lei de Águas18, que revogou todos os regulamentos e disposições contrárias à nova lei, designadamente diversas disposições do Código Civil e a Lei de Águas do Ultramar19. A Lei aplica-se às águas interiores (superficiais e subterrâneas) e contém oitenta artigos distribuídos por seis capítulos: I) Disposições gerais; II) Princípios gerais de gestão de águas; III) Utilização geral da água; IV) Protecção das águas; V) Infracções e VI) Disposições finais e transitórias; a que se junta um anexo com definições dos conceitos utilizados.
68Um dos aspectos estruturantes desta lei está consagrado no artigo quinto - as águas enquanto recurso natural são propriedade do Estado e constituem parte do domínio público hídrico, sendo um direito “inalienável e imprescritível”. O alcance político e social deste princípio ganha contornos mais precisos no capítulo referente à “utilização geral da água”, nomeadamente com a “classificação de usos” (artigo 22º) em comuns e privativos. Os primeiros são gratuitos e livres quando “visam satisfazer necessidades domésticas, pessoais e familiares…, incluindo abeberamento e rega”, desde que não sejam para fins comerciais (artigo 23º). Os usos privativos só podem ser utilizados mediante licença ou concessão (artigo 24º) e são sempre preteridos quando põem em causa usos comuns, uma vez que “o abastecimento de água à população, para consumo humano e satisfação das necessidades sanitárias, tem prioridade sobre os demais usos privativos” (artigo 33º). O mesmo artigo estipula que conflitos decorrentes de falta de água para satisfazer objectivos distintos serão ponderados em função da “rentabilidade socioeconómica e impacto ambiental dos respectivos usos”. À instituição responsável pela gestão dos recursos hídricos, ao nível de bacia, compete estabelecer as prioridades de uso.
69Os princípios gerais de gestão constituem uma parte fundamental de um edifício jurídico que visa enquadrar uma opção política em matéria de recursos hídricos, uma vez que são estes princípios que permitirão alcançar os objectivos traçados. A lei consagra o princípio da gestão integrada e adopta a bacia hidrográfica como unidade geográfica de recursos hídricos. A participação dos utilizadores, a obrigatoriedade da coordenação intersectorial expressa na necessidade de assegurar a “compatibilização da política da gestão da água com a política geral do ordenamento do território e política ambiental” (artigo 9º) e o respeito por obrigações resultantes de compromissos internacionais são tidos como pressupostos fundamentais do tipo de gestão preconizado para os recursos hídricos.
70Dos breves considerandos feitos em torno da presente lei depreende-se a necessidade de assegurar a participação pública na gestão da água. Com efeito, esta participação está prevista e explicita a responsabilidade do Estado em estimulá-la, quer através das associações de utilizadores (artigo 17º), quer por via de mecanismos de auscultação do público (artigo 36º).
71Em 2004, dois anos após a publicação da Lei de Águas, foi aprovado um Programa de Desenvolvimento do Sector das Águas20 em que se destacam um Plano de Acção de Curto Prazo e um Plano de Acção Estratégico do Sector das Águas para o Período 2004-2016. Este documento resumia constrangimentos, metas, acções a desenvolver, intervenientes e prazos e custos em relação ao abastecimento de água e saneamento e à gestão dos recursos hídricos. Definia, também, “objectivos globais” e “estratégicos”21 para cada um desses sectores e apresentava um plano de investimentos de curto prazo (2004-2007) e um plano indicativo de médio e longo prazo (2007-2016), abrangendo todas as províncias do país.
72Do conjunto de constrangimentos apresentados relativamente ao abastecimento de água, ressaltavam os baixíssimos níveis de consumo diário, a incipiente cobertura das redes existentes e o não funcionamento das estações de tratamento. Reconhecia-se ainda que, nas áreas periurbanas, esse consumo médio podia não ultrapassar os 5 litros por habitante e por dia.
73As “acções a desenvolver” para atingir as “metas” a que o plano se propõe, visando superar tão grave situação, consubstanciavam-se num conjunto de programas de reabilitação e expansão das redes de abastecimento e de “pontos de água”. Esse esforço seria complementado com um “programa de controlo de qualidade e vigilância sanitária em todas as províncias”. As metas atrás referidas ambicionavam assegurar, até 2016, uma cobertura do território que abrangesse cerca de 70% da população, consumos médios diários à volta de 70 a 100 litros por habitante nas áreas urbanas, e de 15 a 30 litros nas áreas periurbanas e rurais. Procurar-se-ia, assim, cumprir os padrões de qualidade propostos pela Organização Mundial de Saúde.
74O tratamento das águas residuais foi descrito no plano em apreço como padecendo de fortes “constrangimentos”, de que se destacavam: a muito deficiente rede de esgotos, “constituindo um grave perigo para a saúde pública”; a baixa cobertura da referida rede, “parcial em algumas cidades”, e a quase inexistência de depuração de águas residuais.
75Não pode deixar de ser objecto de apreciação a simultaneidade prevista das acções a desenvolver, dentro de dois horizontes temporais: o curto (2004-2007) e o longo prazo (2007-2016). Note-se que as acções anunciadas cobriam todas as capitais provinciais e estendiam-se a outros municípios. Estes dados lançaram dúvidas quanto à exequibilidade do referido programa e ao estatuto a atribuir ao documento em apreço. Em todo o caso o próprio programa apresentava objectivos quantificados, o que permitirá aferir o seu nível de concretização.
76O sector tem no entanto assistido ao anúncio de diversos investimentos e programas, na tentativa de melhorar a muito deficiente situação existente. Em Junho de 2007 foi anunciado um “Programa Água para Todos”, que visava aumentar a oferta de água tratada aos municípios e comunas e previa “ a reabilitação e expansão de poços de água, de cisternas de colecta e armazenagem, de instalações de saneamento e água potável às escolas, hospitais, centros e postos de saúde” [Jornal de Angola 2007/06/28]22.
77Apesar destes anúncios poderem ser enquadrados no “Programa de Desenvolvimento do Sector das Águas”, não resulta claro que estejam subordinados à orientação que um instrumento estruturante daquela natureza deveria desempenhar.
6. Problemas no acesso à água
78O problema do acesso à água era bastante bem evidenciado com o consumo médio diário e por pessoa registado em Angola, no período 1982-2002. Os dados do PNUD, como já referido, assinalavam cerca de 30 litros. Outras fontes23chamavam à atenção para situações mais críticas, em zonas rurais e periurbanas, em que esses valores baixavam para 5 litros. Apesar de por si só estes dados serem muito reveladores, ocultam outros problemas, nomeadamente a desigualdade de acesso, o preço e o peso nos orçamentos familiares e, ainda, a qualidade da água.
79Uma parte muito considerável do abastecimento de água à população fazia-se recorrendo a chafarizes, à compra de água na rua e distribuída por carros cisterna24. Note-se que estes estratagemas têm constituído o principal modo de largas camadas da população suprirem a incapacidade da incipiente e degradada rede pública de abastecimento de água, mas sem garantias de controlo da qualidade das fontes de captação, das condições de acondicionamento e da sua distribuição.
80A venda a retalho nas ruas de Luanda, e noutras localidades, em bidons e em pequenos e transparentes sacos de plástico, ilustrava a precariedade de acesso à água para consumo. Era, aliás, um aspecto reconhecido no Programa de Desenvolvimento do Sector das Águas, referindo o documento a necessidade dessa actividade “ser regulada com urgência, permitindo que a iniciativa privada neste negócio seja desenvolvida dentro de um quadro regulador e convenientemente organizado”.
81De facto, a actividade paralela de venda da água alimentava bastantes rumores, que se prendiam com o enquadramento dos detentores deste mercado, que assume diferentes níveis de estruturação: da lógica empresarial à venda informal para subsistência. Muitos destes intermediários compravam ou obtinham água proveniente dos prestadores públicos, constituindo a única via de abastecimento em alguns bairros. Se alguma desta actividade parecia não suscitar reservas, outra era encarada como sendo pouco clara, afectando ainda mais o deficiente abastecimento por via da rede pública de distribuição.
82Outra situação que agravava o problema da água (e da saúde pública) em Luanda resultava da grande quantidade de ligações clandestinas. Esta pratica permitia uma actividade paralela de venda de água, mas também era consequência do crescimento descontrolado de aglomerações habitacionais em diversos locais, sem condições mínimas, mas recorrendo a todos os estratagemas para aceder à água.
83Num quadro de grande carência de água, não podia deixar de suscitar perplexidade uma das actividades laborais mais visíveis da cidade: a lavagem diária de carros. Com efeito, centenas de “moços” dedicavam-se todas as manhãs a lavar, com grande esmero, automóveis de todo o tipo que entupiam Luanda.
84O estratagema doméstico para ter água corrente em casa ajuda a compreender o esforço que envolve o acesso à água. Uma parte significativa da população recorre diariamente a moto-bombas, utilizando energia produzida por geradores a diesel. O recurso a este expediente, sobretudo em determinadas horas, substituía-se à rede pública de electricidade, uma vez que esta não conseguia responder às necessidades. Embora este modus operandi faça parte da normalidade social, não deixa de constituir uma fonte significativa de poluição (sonora e atmosférica) e causar impactos na saúde pública, como atestava o crescente registo de doenças respiratórias.
85Um caldo cultural, socioeconómico e político, como aquele que temos vindo a descrever, dificulta acções que visem a promoção de usos sustentáveis dos recursos hídricos e o envolvimento do público em prol desse objectivo. Este precisa de sentir que há uma aposta clara na distribuição equitativa da água e no cuidado com a sua qualidade, assumindo as instituições um papel de liderança nessa aposta.
7. Conclusão: a insustentável fraqueza do sistema institucional
86A criação e o funcionamento de um sistema institucional (quadro normativo, regulamentar, estruturas de gestão e de monitorização), torna-se vital para assegurar as opções políticas e de gestão preconizadas para os recursos hídricos. Deste modo, é necessário perceber até que ponto esse sistema tem capacidade pericial e administrativa para assegurar ou monitorizar os diagnósticos sobre a quantidade e qualidade desses recursos, as diferentes racionalidades de uso, a distribuição da água e, ainda, os compromissos assumidos, nomeadamente os de âmbito internacional.
87No contexto internacional, nomeadamente no seio da SADC, está na ordem do dia a cooperação entre Estados com bacias hidrográficas partilhadas, em particular a institucionalização de mecanismos para a resolução de diferendos25. A integração regional em curso pode, assim, retirar muitas das discussões do plano bilateral e colocá-las num patamar multilateral, embora subsista a dúvida de tal possibilidade, não só pelas urgências de curto prazo em que muitos Estados estão mergulhados, mas também por uma história avessa à diluição de fronteiras.
88Esta necessidade de cooperação aconselha a assunção clara de uma doutrina de soberania em relação aos recursos hídricos, para não se enveredar por arranjos pontuais contingentes que podem degenerar em acções assentes nas relações de poder e de força. Muitas das dificuldades inerentes a processos deste tipo remontam a contingências histórico-políticas que estiveram na origem dos actuais países, mas seria falacioso inscrevê-las apenas como heranças coloniais. A sacralização das linhas de fronteira é disso exemplo, apesar de inúmeras indefinições territoriais e dúvidas jurídicas [Amaral 1981].
89Angola, ao exibir elevadas taxas de crescimento económico, tem desencadeado apressadas análises que iludem a complexidade da sociedade angolana e os bloqueios que a acompanha. Este dado de desempenho económico não pode ser desligado de outros indicadores, sob pena de se enviesar a leitura cultural, socioeconómica e política do país. Convém lembrar que as dificuldades de acesso a água potável enfrentada por uma sociedade e o condicionamento que representa para a saúde e vida pessoal, social e económica constituem poderosos indicadores sobre o nível de desenvolvimento dessa sociedade. E o acesso à água potável em Angola ainda é, apesar do enorme potencial hídrico, muito precário.
90Os dados do relatório do PNUD de 2006, dedicado à crise mundial da água, revelavam uma situação deficitária de Angola, abaixo do limiar mínimo aceitável recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Apesar da desactualização desses dados é consensual que o problema persiste, mesmo que possamos admitir melhorias atendendo aos investimentos em curso, ou anunciados, mas cujos impactes ainda não se fazem sentir de modo significativo. Acresce que os problemas de acesso à água não se esgotam nos quantitativos disponíveis, mas também na qualidade e no preço. A informação disponível, ainda que de difícil objectivação, aponta para muitas insuficiências na qualidade e nos preços elevados para muitos, sobretudo as franjas mais vulneráveis da população, dos que precisam de recorrer ao mercado informal (e privado) da água. Esta situação tem fortes repercussões nos indicadores de desenvolvimento do país.
91A cobertura de saneamento básico rondava, segundo a fonte atrás referida, os 30% da população e, como se sabe, a “água suja é a segunda maior causa de mortes de crianças em todo o mundo” [ONU 2006: v]. Talvez por isso, em cada mil crianças que nasceram em Angola em 2005, morreram 133 [African 2006], constituindo uma das mais elevadas taxas de mortalidade infantil do Mundo26. Múltiplos factores contribuem para esta situação e o caso da guerra civil, com que Angola conviveu de modo contínuo nas três últimas décadas do século passado, é apenas a causa mais visível.
92Este conjunto de indicadores lançam um desafio à acção política, na definição de objectivos e prioridades a prosseguir, inscrevendo a governação da água como dimensão nuclear na promoção de um desenvolvimento prudente. A tomada de decisões em prol de uma gestão integrada dos recursos hídricos, que promova e defina uma estratégia de uso eficiente da água, não pode ignorar a realidade socioeconómica, política e institucional com que o país se confronta. Mercê de diversas contingências históricas, decorrentes dos processos de colonização, de descolonização e de formação do Estado, Angola enfrenta grande carência de infra-estruturas e de equipamentos. É particularmente notória essa insuficiência no abastecimento de água e no saneamento básico. A par desta carência, assiste-se a uma forte e desequilibrada concentração de populações27 e dos correlativos fenómenos de desordem urbanística nos principais centros urbanos, dificultando uma assunção colectiva de promoção e uso de bens púbicos.
93As dificuldades de acesso à água podem ser medidas a partir do esforço despendido em recursos (de tempo e financeiros) para a obter e do grau de condicionamento (pessoal, social e económico) que a natureza do seu acesso provoca. O que resultou dessa análise foi o grande esforço de recursos para se dispor de água e o alto condicionamento que tal situação gera, a que se associa um baixo nível de confiança nos mecanismos institucionais de gestão da água.
94Um marco importante para a governação da água em Angola foi a publicação, em 2002, da lei da água; contudo este dado novo não desencadeou uma expectável dinâmica de governação. Aos argumentos de ordem cultural e política, juntam-se outros de natureza operacional. A sua não regulamentação, que se arrasta ao longo dos anos, bem como a não criação de estruturas técnico-administrativas e a ausência de instrumentos de planeamento e de gestão previstos nessa lei, ilustra a sua irrelevância cultural, política e socioeconómica na gestão dos recursos hídricos28.
95As considerações que têm vindo a ser expostas apontam para a possibilidade de se equacionar o problema da água em Angola a partir de um conjunto de oportunidades e de riscos29. Tal formulação visa contribuir para a discussão sobre a sua governação e incentivo a uma praxis sistemática de pesquisa neste domínio.
96Uma vez que os “riscos” referenciados decorrem da vulnerabilidade do sistema institucional e da pouca tradição na gestão integrada dos recursos hídricos, importa reflectir e estudar sobre as modalidades de capacitação institucional. Não basta anunciar ou dotar alguns departamentos de meios financeiros, sem cuidar de questionar as suas disfunções. Um exercício desta natureza exigirá um conhecimento aprofundado do funcionamento desses departamentos e do tipo de relação estabelecida com as populações e das expectativas destas. Erigir estruturas técnico-administrativas pressupõe que se repense as suas configurações, diagnosticando bloqueios e equacionando tipos de gestão que melhor se adeqúem aos objectivos que prosseguem.
97As vulnerabilidades do país não podem ser desligadas de uma história recente muito marcada por um prolongado conflito militar. Em todo o caso as idiossincrasias de Angola não decorrem apenas desse facto histórico, devem também ser perscrutadas num ethos cultural e político que se foi moldando, reflectido nas dinâmicas socioeconómicas e nos quadros mentais que hoje conformam o país. Ressaltamos três dessas marcas identificadoras: urgência na construção do Estado social, persistência de mecanismos informais/tradicionais e início de um processo de integração regional que emerge como uma contingência algo prematura.
98Por necessidade de construção do Estado social, leia-se a reclamação por instituições que contribuam para a satisfação de padrões de vida associados, em regra, a sociedades que têm inscrito a garantia de igualdade de direitos individuais, o acesso a equipamentos e serviços sociais (justiça, saúde e educação) e a possibilidade de usufruir níveis aceitáveis de conforto e de bens de consumo. Esta exigência esbarra, contudo, no desprezo social a que estão votadas as instituições estatais. Tal desprezo decorre em parte de um estigma de ineficácia que lhes é associado, mas muito ancorado numa predisposição, ou habituação, de valorização ou de aceitação tácita, de um modus operandi informal e de instrumentalização das instituições.
99Estes dois pólos (exigência de instituições e desprezo ou descrédito das mesmas) alimentam uma tensão que tem favorecido a persistência de mecanismos informais/tradicionais, dificultando a afirmação das instituições no papel que lhes é exigido enquanto instrumentos de acção do Estado. Trata-se de terreno fértil para permanências, a que famílias e empresas dificilmente podem escapar.
100O ethos atrás referido e a incongruência que transporta encerram um risco de desestruturação social. Este risco pode ser camuflado, no curto prazo, por uma dinâmica de crescimento económico, típica de situações de pós-guerra e assente na conjuntura, mas não deixará de ter reflexos na coesão social e económica da sociedade.
101Assistir-se-á, certamente, a uma tensão entre permanências e rompimentos. O resultado desta tensão passará, antes de mais, pelas prioridades e pelo tipo da acção governativa30, em particular nos domínios da educação, do ambiente e da organização do território. Passará, também, pela disponibilidade de aperfeiçoamento do Estado de direito, onde a efectiva autonomia do poder judicial joga um papel decisivo.
102O que torna o caso da água em Angola interessante e porventura paradigmático, do ponto de vista metodológico é antes de mais o facto de o país dispor de uma situação privilegiada em matéria de recursos hídricos no contexto regional e, apesar dessa relativa abundância, não assegurar as necessidades básicas da população. Este paradoxo só pode ser explicado pelas incongruências do ethos que molda o país, gerador de disfunções na sua governação. A interrogação que ressalta, por fim, é a de saber que (re)configurações institucionais podem contribuir para assegurar uma gestão integrada e sustentável dos recursos hídricos que garanta, à generalidade da população, o acesso a água potável.
103Deve notar-se que trabalhar em prol destes objectivos não se afigura compatível com a importação acrítica de modelos formatados para outros contextos. Pelo contrário, apela à inovação e a processos adaptativos que suportem soluções de governação inventivas, assentes numa cultura de proximidade que inaugure uma relação de confiança entre instituições e a população – talvez o maior desafio que se coloca à governação da água em Angola.
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Notas
1 A pesquisa realizou-se no âmbito de um Mestrado em Gestão e Políticas Ambientais (2008), na Secção Autónoma de Ciências Sociais, Jurídicas e Políticas da Universidade de Aveiro (Portugal). A argumentação aqui apresentada constitui uma síntese do trabalho publicado pelo autor, no LNEC, com o título “A Governação da Água em Angola: riscos e oportunidades”.
2 Designado “ A água para lá da escassez; poder, pobreza e a crise mundial a água” e onde se discutem múltiplos problemas da governação da água. O Relatório parte do pressuposto que “ao longo da História, o progresso humano tem dependido do acesso à água potável e da capacidade das sociedades controlarem o potencial da água enquanto recurso produtivo” [ONU 2006: v].
3 Mais conhecida pelo acrónimo em língua inglesa, SADC (Southern African Development Community).
4 Prefácio à edição portuguesa de B. Barraqué (dir.) 1996. Políticas da Água na Europa, Lisboa: Instituto Piaget.
5 De que se ressalta como traços dominantes o facto de os valores culturais revelarem forte inércia e de as representações sociais sobre os recursos naturais registarem alterações lentas, ao invés da sua utilização, que denota crescimentos rápidos [Vieira & Weber 2002].
6 Um papel de monitorização dos usos, avaliando nomeadamente se esses usos garantem a preservação inter-geracional dos recursos, pode constituir um importante factor de sustentabilidade.
7 Comissão Mundial Sobre o Meio Ambiente. 1987. Our Common Future, Nova Iorque: Oxford University Press.
8 Popularizado pela fórmula “desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração actual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras satisfazer as suas” [Weber 2002: 122].
9 Estabelecidos na Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente, realizada em Dublin, em Janeiro de 1992.
10 O caso da Faixa de Caprivi é paradigmático. A Alemanha, enquanto potência administrante do Sudoeste Africano Alemão, evocou o interesse estratégico em dispor de um corredor de acesso directo ao Rio Zambeze, chegando em 1890 a acordo com a Inglaterra. Esse acordo consagrou a jurisdição de uma faixa de terreno, hoje território namibiano, encravada entre Angola e o Botswana [Amaral 1981]. A Faixa de Caprivi tornou-se uma peça de grande importância estratégica. Teve um papel central no desenrolar da guerra civil que assolou Angola, após a independência, e hoje constitui um trunfo negocial da Namíbia, em matéria de recursos hídricos. Tenha-se em conta que é graças a esse arranjo colonial que o Rio Cubango/Okavango atravessa território namibiano, com todas as consequências ambientais, administrativas e políticas daí decorrentes..
11 Uma intervenção que se deu poucos meses antes da independência de Angola, proclamada em Novembro de 1975, mas já com uma guerra civil a alastrar-se [Meissner 2003].
12 Então Sudoeste Africano, sob administração da África do Sul.
13 A que se juntam o Zimbabwe, o Malawi, o Lesotho e a Tanzânia.
14 A noção de “água virtual” procura equacionar a interacção complexa entre água, alimentação (segurança alimentar) e trocas comerciais [WWC 2004, Earle 2001].
15 Como denota a estimativa da taxa de crescimento anual da população (2,8% de 2005 a 2015) e da taxa de fertilidade total (6,8 nascimentos por mulher, entre 2000 a 2005) [ONU 2006].
16 A 1ª versão do Protocolo baseava-se nas Regras de Helsínquia, que pendem para o princípio da soberania territorial de um Estado com um curso de água. O protocolo revisto põe o enfoque “nos cursos de água e não nos Estados com cursos de água e apela para o estabelecimento de comissões de bacia” [SADC Today 2005: 3].
17 A madeira constitui a principal fonte de energia para vastas camadas da população e isso significa uma séria ameaça à estrutura verde com graves consequências na erosão dos solos em vastas regiões de África e no recuo das próprias reservas hídricas. 15. Como denota a estimativa da taxa de crescimento anual da população (2,8% de 2005 a 2015) e da taxa de fertilidade total (6,8 nascimentos por mulher, entre 2000 a 2005) [ONU 2006].
18 Lei da Assembleia Nacional nº 6/02, de 21 de Junho.
19 Que estava em vigor desde 1946.
20 Ao abrigo da Resolução do Conselho de Ministros nº 10/04, de 11 de Junho.
21 Para o abastecimento de agua e saneamento: “alcançar as metas estabelecidas pela Cimeira do Milénio das Nações Unidas e a Cimeira sobre o desenvolvimento sustentável que prevê reduzir para metade, até 2015, a percentagem de população não servida”; na gestão dos recursos hídricos: “alcançar as metas estabelecidas pela Cimeira do Milénio das Nações Unidas (Nova Iorque, 2000) que prevê a adopção generalizada do modelo de gestão integrada dos recursos hídricos, até ao ano de 2015”.
22 O objectivo prosseguido remetia para uma cobertura de 80% do território em 2012 [JA 2007/10/23].
23 “Caracterização do Sector das Águas em Angola”, publicada com a Resolução do Conselho de Ministros nº 10/04, de 11de Junho.
24 A informação sobre o acesso à água reflecte a situação relativa ao período em que decorreu a pesquisa (2006-08). Em todo o caso os dados e os relatos disponíveis indicam que o acesso a água potável continua a ser muito crítico. Por isso situações como a de uma moradora da Samba persistem: utilizava dois bidons de 20 litros, duas vezes por dia, para satisfazer a necessidade de um agregado de seis pessoas, perfazendo um consumo diário de 80 litros, que correspondia a um gasto mensal que variava entre 10 a 20% do seu rendimento mensal. Isto sem contar com os “mimos” da água fresca engarrafada para os filhos…”é o que mais gostam!”. Tratava-se de um consumo de água correspondente a um uso médio diário, por pessoa, que não ultrapassava 14 litros, muito abaixo dos 40 litros definidos como o limiar mínimo aceitável, segundo os parâmetros da Organização Mundial de Saúde (OMS).
25 A experiência de gestão conjunta de bacias hidrográficas internacionais, no seio da SADC, era muito incipiente. Angola, por exemplo, apenas participava, com a Namíbia e o Botswana, na Comissão Internacional de Bacia do Rio Cubango/Okavango (OKACOM). O Botswana, por exemplo, tem denotado preocupação com a possibilidade de captação de água, neste Rio, por parte da Namíbia (a partir da Faixa de Caprivi), por ameaçar um ecossistema de grande valor ambiental e económico – o Delta do Okavango.
26 Os dados publicados pela OMS (2009) e de outras organizações internacionais mostram, neste domínio, a persistência de indicadores muito desfavoráveis para Angola.
27 O relatório do PNUD de 2006 estimava para 2005 uma população urbana que correspondia a 53,3% do total da população de Angola e lembrava que em 1975 esse valor era de 19,1%.
28 É certeira a chamada de atenção de Leestemaker [2001], quando refere que um alto idealismo legal e um fraco poder de o fazer aplicar cria uma realidade sem regras e sem protecção, que afecta sobretudo os pequenos e novos utilizadores da água e, ainda, o ambiente.
29 Oportunidades: nível de reservas hídricas no contexto regional; publicação de uma lei da água; princípios orientadores de planeamento e de gestão de âmbito regional (SADC); know how em centros de pesquisa de países vizinhos e da CPLP; aprovação de um plano estratégico para o sector; disponibilidade de investimento em infra-estruturas de abastecimento de água e de saneamento e ritmo acelerado no crescimento do PIB. Riscos: permanência de um sistema institucional frágil (não regulamentação da lei da água, adiamentos na criação do Instituto de Recursos Hídricos, não criação de diversas estruturas técnicas e de gestão previstas, não produção dos documentos orientadores de planeamento e de gestão previstos, carência de quadros científicos, técnicos e profissionais); consagração de princípios de difícil tradução prática; formulação irrealista de metas que tendem a erodir a confiança nas instituições; ausência de iniciativas políticas em que se perspective a bacia hidrográfica como principal unidade de planeamento e de gestão; não efectivação de pressupostos de gestão preconizados na lei da água.
30 E pelo papel que a chamada sociedade civil tiver na capacidade de influenciar a definição de políticas públicas e a sua concretização.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Álvaro Pereira, « Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional », Revista Angolana de Sociologia, 8 | 2011, 63-85.
Referência eletrónica
Álvaro Pereira, « Água em Angola: a insustentável fraqueza do sistema institucional », Revista Angolana de Sociologia [Online], 8 | 2011, posto online no dia 13 Dezembro 2013, consultado no dia 18 Abril 2017. URL : http://ras.revues.org/519 ; DOI : 10.4000/ras.519
Autor
Álvaro Pereira
Sociólogo, licenciado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e mestre em Gestão e Políticas Ambientais pela Universidade de Aveiro (Portugal). É técnico superior no Núcleo de Ecologia Social do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (Portugal). Foi assistente convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (1987-2002) e técnico superior no Ministério da Justiça (1987-1995). A sua principal área de investigação está relacionada com a promoção de um desenvolvimento viável, nomeadamente na utilização sustentável dos recursos naturais. Tem estudos sobre dinâmicas sócio-territoriais, (in)segurança urbana e populações expostas a risco de exclusão social. É autor ou co-autor de: Habitat e Minorias, o que pode a promoção pública da habitação? (Lisboa 2011); A Governação da Água em Angola (Lisboa 2010); Avaliação do Programa Especial de Realojamento de Cascais (Lisboa 2005); Habitat e Minorias. Processos de (des)integração de Grupos Étnicos em Lisboa e no Porto (Lisboa 2002); Os Sem-Abrigo da Cidade de Lisboa (Lisboa 2000); Os arrumadores e os sem-abrigo da cidade de Lisboa (Lisboa 1999); Metrópoles Seguras (Lisboa 2007); O planeamento e a gestão dos recursos hídricos nos países em desenvolvimento. O caso da Bacia do Cunene (Angola) (Lisboa 2006); Estudo das Condições Ambientais no Estuário do Rio Guadiana, Componente Sócio-Económica (Lisboa 2001); A Ecologia Social da Bacia do Cunene (LNEC 1996); Ecologia Social da Musgueira (Lisboa 1985). apereira@lnec.pt
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