Resumo: O olhar que desorganiza


Resumo do artigo: FERREIRA, Jonatas; HAMLIN, Cynthia. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados. Estudos Feministas, Florianópolis, 18(3): p.811-836, setembro-dezembro/2010.

O imaginário de uma suposta e temida proximidade de mulheres e negros com a natureza, configurando a essência liminar de sua humanidade, localiza-os, quais monstros, numa arquitetura de alternativas polares forjada pelo discurso civilizador no decorrer da história do pensamento ocidental. Representações culturais ambíguas da mulher, como mãe fértil e protetora ou como via de perdição, e do negro como bom selvagem, forte, dócil e desejado ou como lugar de vício e luxúria, possibilitaram sua caracterização de “outro monstruoso”, fonte de ansiedade e intensos desejos de controle. 
Este tipo de construção coloca a oposição natureza versus cultura como algo inquestionável, fundamentando-se na identificação dos hiatos entre o corpo e a mente, prazer e razão, forma e essência, ou, basicamente, entre a civilização e a barbárie. A natureza, simultaneamente fecundidade e luto, parece corromper a existência enquanto a nutre; impondo-se ao homem civilizado como um poder incontrolável e caótico, demandando a criação de um espaço de civilização que permita objetivar e conter a circulação desses seres fronteiriços, localizados entre a ordem e o caos, e cuja mirada poderia controlar ou aniquilar o espírito humano.
Na prática, entretanto, observa-se que tal discurso deve excluir incluindo, e incluir o outro sob o estigma da exclusão, numa ambiguidade de onde deriva sua força, ainda mais poderosa enquanto oculta. O interesse dos autores do ensaio recai, assim, principalmente na investigação da constituição da visão “científica” das diferenças raciais e dos lugares de alteridade; procurando demonstrar como esta ambiguidade tornou-se objeto de distintas negociações no decorrer da história.
Durante a Idade Média, a circulação de corpos era restrita pela própria lógica de mercado local, estando o “monstruoso” associado à idéia de uma circulação imprópria. Todavia, conforme a sociedade se modernizava com o comércio em expansão, uma nova lógica civilizadora teve de ser concebida para equacionar a problemática da constituição de lugares civilizados em oposição aos bárbaros. “O outro” do civilizado, perspectiva de desordem, em princípio não poderia ter permissão para circular, mas ao mesmo tempo deveria fazê-lo, para não privar o discurso civilizador da oposição que o funda: a visão é o principal sentido da objetivação, capaz de promover separação e distância entre o sujeito e seu objeto.
Os autores do texto discutem as evidências de que a demanda de uma nova lógica foi solucionada através da ciência e de seus sistemas de classificação taxonômica; numa ruptura que transformou o monstruoso, antes apenas motivo de julgamento moral, num objeto natural descrito pela biologia com suposta isenção científica. Pensamento que logrou essencializar fatores históricos e políticos relativos à dominação de grupos hegemônicos e que atuou como um espelho “que reflete a mirada do monstro sobre si mesmo” (p.813), neutralizando, assim, seus poderes.
Para ilustrar seus argumentos, além de considerações históricas e mitológicas, os autores apresentam ainda um estudo de caso referente a Sara Baartman (Vênus Hotentote), mulher e negra, caso extremo e dramático de constituição de identidade a partir do olhar do outro. Sara foi submetida a três tipos de olhares distintos, vista como selvagem perigosa e amoral, como pertencente a uma raça biologicamente distinta da européia e, quando já falecida, inclusive como heroína de modernos movimentos sociais. Tais análises evidenciam a relação entre a produção de conhecimento científico e a estrutura vigente da sociedade, suas hierarquias, valores e crenças; além de retratar processos deconstrução de objetos cuja função passa a ser encarnar o considerado negativo e aberrante, assegurando a positividade e normalidade de seu oposto, um privilegiado “homem universal”.
O diferente é encarado como perigo, motivo para o escárnio que alivia ou para a criação e repetição de estereótipos que simulam controle do desconhecido. Faz emergir medos, traços inconscientes, potenciais adormecidos ou reprimidos e dúvidas sobre o status quo. Ou seja, evita-se, assim, a experiência verdadeira e os olhares capazes de desestruturar egos tão frágeis, fechados em seus privilégios e visões particulares de mundo.

(Resumo feito durante a disciplina Psic. Social: Intercultura e Raça/Etnia; 2012

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