dominação e reprodução na escola: visão de pierre bordieu


INTRODUÇÃO
Este estudo refere-se ao sistema educacional que consegue reproduzir por meio de uma violência simbólica as relações de dominação, ou seja, a estrutura de classes, reproduzindo de maneira diferenciada a ideologia da classe dominante. A teoria da reprodução, no sentido que a escola não resolve problemas sociais, mas reforça-os à medida que reproduz internamente relações de poder em relação às classes populares. As vertentes auxiliam na compreensão das condições contemporâneas da violência, possibilitando a discussão da temática. Aliada aos pressupostos teóricos, que foram buscados em Bourdieu e outros, propiciou uma compreensão do conjunto de relações sociais que fundam as situações de violência, bem como conhecer e analisar os sistemas de pensamento que legitimam a exclusão dos não privilegiados, convencendo-os a se submeterem à dominação, sem que percebam o que fazem. De modo geral a exclusão é imputada à falta de habilidades e capacidades, ao mau desempenho e outros. Dessa forma, a escola cumpre, simultaneamente, sua função de reprodução cultural e social, qual seja, a de reproduzir as relações sociais de produção da sociedade capitalista. O estudo aponta a necessidade de uma análise que norteie as acções educativas no interior das escolas, na tentativa de superar tal realidade.


DOMINAÇÃO E REPRODUÇÃO NA ESCOLA: VISÃO DE PIERRE BOURDIEU
Pierre Bourdieu, sociólogo francês (1930-2002), fundamenta seu pensamento pela grande influência de Max Weber e Durkheim. Foi um dos primeiros sociólogos europeus com análise voltada à sociologia da educação e da cultura que marcaram gerações de intelectuais e de grande notoriedade nacional e internacional. Dedicou-se à pesquisa das sociedades contemporâneas e das relações sociais que mantêm os diferentes grupos sociais tendo o sistema de ensino como instituição que permite a reprodução da cultura dominante.
O trajecto intelectual de Bourdieu possibilita uma análise aprofundada no âmbito escolar e suas relações sociais, através da percepção de sua função ideológica, política e legitimadora de uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente nestas instituições. Bourdieu posiciona-se contra todas as formas de dominação e de mascaramento da realidade social. Bourdieu, no livro “A Reprodução”, deu especial atenção ao funcionamento do sistema escolar francês que, ao invés de transformar a sociedade e permitir a ascensão social, ratifica e reproduz as desigualdades.
A partir dos estudos, Bourdieu acentua que no interior de uma sociedade de classes existem diferenças culturais e por sua vez as classes burguesas possuem um determinado património cultural constituído de normas de falar, forma de conduta, de valores, etc. Já as classes trabalhadoras possuem outras características culturais que lhes têm permitido sua manutenção enquanto classes.
A escola, por sua vez, ignora estas diferenças sócio-culturais, seleccionando e privilegiando em sua teoria e prática as manifestações e os valores culturais das classes dominantes. Com essa atitude, a escola favorece aquelas crianças e jovens que já dominam este aparato cultural. Desta forma a escola, para este sujeito, é considerada uma continuidade da família e da sua prática social, enquanto os filhos das classes trabalhadoras precisam assimilar a concepção de mundo dominante.
Os autores Bourdieu e Passeron desenvolveram a “teoria da reprodução” baseada no conceito de violência simbólica. Para estes autores, toda acção pedagógica é objectivamente uma violência simbólica enquanto imposição de um poder arbitrário. A arbitrariedade constitui-se na apresentação da cultura dominante como cultura geral. O “poder arbitrário” é baseado na divisão da sociedade em classes. A acção pedagógica tende à reprodução cultural e social simultaneamente.
Para os filhos das classes trabalhadoras, a escola representa uma ruptura no que refere aos valores e saberes de sua prática, que são desprezados, ignorados e desconstruídos na sua inserção cultural, ou seja, necessitam aprender novos padrões ou modelos de cultura. Dentro dessa lógica, é evidente que para os alunos filhos das classes dominantes alcançar o sucesso escolar torna-se bem mais fácil do que para aqueles que têm que desaprender uma cultura para aprender um novo jeito de pensar, falar, movimentar-se, enfim, enxergar o mundo, inserir neste processo para se tornar um sujeito activo nesta sociedade.
No contexto das instituições de ensino, também se apresenta a dificuldade em definir violência escolar. Por um lado, segundo Bourdieu e Passeron (1975), existe uma violência inerente e inevitável, a violência da educação, já que, para eles, toda acção pedagógica é uma forma de violência simbólica, pois reproduz a cultura dominante, suas significações e convenções, impondo um modelo de socialização que favorece a reprodução da estrutura das relações de poder.
A definição de Bourdieu sobre a situação de “ violência simbólica”, ou seja, o desprezo da cultura popular e a interiorização da expressão cultural de um grupo mais poderoso economicamente ou politicamente por outro lado dominado, faz com que esses percam sua identidade pessoal e suas referências, tornando-se assim fracos, inseguros e mais sujeitos à dominação que sofrem na própria sociedade.
O carácter simbólico da violência centra-se nas características fundamentais da estrutura de classes da sociedade capitalista, decorrente da divisão social do trabalho, baseada na apropriação diferencial dos meios de produção. O autor analisa que o processo educacional apresenta dois mecanismos destinados à consolidação da sociedade capitalista: a reprodução da cultura e a reprodução das estruturas de classes. O primeiro dos mecanismos se manifesta no mundo das “representações simbólicas ou ideologia”, e o outro actua na própria realidade social.   
Para Bourdieu, a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constitui uma função lógica necessária que permite à cultura dominante numa dada formação social cumprir sua função político-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de dominação. (MICELI, 2001, p.XVI)
Entretanto, estão intimamente interligadas, uma vez que no sistema educacional a dominação e a reprodução das relações sociais são evidentes. Para que essa reprodução esteja totalmente assegurada, não basta que sejam reproduzidas apenas as relações factuais de trabalho e relações de classe que os homens estabelecem entre si, precisam também ser reproduzidas as representações simbólicas, ou seja, as ideias que os homens fazem dessas relações. Sendo assim, Bourdieu menciona a reprodução cultural e a reprodução social:
O sistema escolar cumpre uma função de legitimação cada vez mais necessária à perpetuação da “ordem social” uma vez que a evolução das relações de força entre as classes tende a excluir de modo mais completo a imposição de uma hierarquia fundada na afirmação bruta e brutal das relações de força. (BOURDIEU, 2001, p.311)
A consolidação da violência simbólica permite que a escola não exerça necessariamente a violência física, mas sim a violência mediante forças simbólicas, ou seja, pela doutrinação e dominação, que força as pessoas a pensarem e a agirem de tal forma que não percebem que legitimam com isso a ordem vigente.
Desse modo, o sistema educacional consegue reproduzir por meio de uma violência simbólica as relações de dominação, ou seja, a estrutura de classes, reproduzindo de maneira diferenciada a ideologia da classe dominante. Assim, Bourdieu considera o processo educativo uma acção coercitiva, definindo a acção pedagógica como um ato de violência, de força. Neste acto são impostos aos educandos sistemas de pensamento diferenciais que criam nos mesmos hábitos diferenciais, ou seja, predisposições para agirem segundo um certo código de normas e valores que os caracteriza como pertencentes a um certo grupo ou uma classe.
Bourdieu (1975) afirma que o habitus consiste em um sistema de disposições duradouras e transferíveis, estruturadas e predispostas a funcionar como estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem estar objectivamente adaptadas ao seu fim, sem supor a busca consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los objectivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’, sem ser o produto da obediência a regras e, ao mesmo tempo, colectivamente orquestradas sem ser produto da acção organizada de um director de orquestra.
Dessa maneira, para Bourdieu, o sistema educacional não reproduz estritamente a configuração de classes, como fazia o anterior, mas consegue, impondo o habitus da classe dominante, cooptar membros isolados das classes. Esses membros, tendo familiarizado os esquemas e rituais da classe dominante, defendem e impõem de maneira mais radical à classe dominada os sistemas de pensamentos que a fazem aceitar sua sujeição à dominação. Assim, na obra: A
Economia das trocas simbólicas a questão do habitus cultivado aponta:
Enquanto força formadora de hábitos, a escola propicia aos que se encontram directa ou indirectamente submetidos à sua influência, não tanto esquemas de pensamento particulares e particularizados, mas uma disposição geral geradora de esquemas particulares capazes de serem aplicados em campos diferentes do pensamento e da acção aos quais pode-se dar o nome de habitus cultivado. (BOURDIEU, 2001, p.211)
Bourdieu assinala ainda que, além de promover aqueles que segundo seus padrões e mecanismos de selecção demonstram-se aptos a participarem dos privilégios e do uso do poder, o sistema educacional cria, sob uma aparência de neutralidade, os sistemas de pensamento que legitimam a exclusão dos não privilegiados, convencendo-os a se submeterem à dominação, sem que percebam o que fazem. De modo geral a exclusão é imputada à falta de habilidades e capacidades, ao mau desempenho e outros. Dessa forma, a escola cumpre, simultaneamente, sua função de reprodução cultural e social, qual seja, a de reproduzir as relações sociais de produção da sociedade capitalista.
A Sociologia da Educação de Bourdieu se notabiliza pela diminuição que promove do peso do factor económico comparativamente ao cultural na explicação das desigualdades escolares.
Ressalta que o sistema escolar não reproduz directamente a economia familiar. Não se pode falar, portanto, de uma reprodução simples ou ampliada, mas que a educação reproduz as relações entre a reprodução social e a cultural contribuindo, o sistema educativo, à reprodução da estrutura das relações de poder e das relações simbólicas entre as classes que participam da reprodução da estrutura da distribuição do capital cultural entre as classes.
Neste sentido, principalmente a escola pública, justamente por atender a população trabalhadora, que depende da sua contribuição, exerce de forma mais concreta a violência simbólica. Bourdieu, nos Escritos de educação, relata sua experiência com alunos dos liceus com uma classificação de excluídos do interior do processo educacional, referindo-se a um “mal-estar dos subúrbios”, resultado do aflorar das contradições sociais:
No funcionamento de uma instituição escolar que, sem dúvida, nunca exerceu um papel tão importante e para uma parcela tão importante da sociedade como hoje, essa contradição tem a ver com uma ordem social que tende cada vez mais a dar tudo a todo mundo, especialmente em matéria de consumo de bens materiais ou simbólicas, ou mesmo políticas, mas sob as espécies fictícias da aparência do simulacro ou da imitação, como se fosse esse o único meio de reserva para uns a posse real e legítima desses bens exclusivos. (BOURDIEU, 1998, p.225)
Ao reconhecer que as contradições sociais desempenham essa função, Bourdieu abre a possibilidade de uma crítica das mesmas contradições se o ponto de referência for a escola, pode-se criticar realmente a escola pública existente, mas tem-se excelentes motivos para dedicar o melhor dos esforços e convertê-la numa causa ampla e democrática a serviço da educação. Reconhecer, portanto, que é a partir da escola que está aí, em vez de descartá-la como verdadeiro espelho embaçado do projecto hegemónico das classes dominantes, é que se pretende vincular e acreditar na ideia do alicerce de uma boa escola – uma escola de qualidade, democrática, universal, pública e gratuita, ou seja, uma escola pública que acredita na transformação social.
 Neste contexto apresentam-se as escolas públicas, que enfrentam o problema da violência com imposição de regras de disciplina aos alunos, a autoridade dos professores e demais profissionais da educação que recorrem a polícia na maioria dos fatos ocorridos no interior da escola. As crianças das classes trabalhadoras sofrem um “bombardeio” bem maior ao entrarem na escola do que aquelas que vêm dos lares mais privilegiados; na realidade as primeiras têm a impressão de estarem em um ambiente cultural desconhecido.
A violência simbólica e física perpassa o contexto escolar de forma subtil e de difícil percepção pelos próprios executores das acções realizadas, gerando um ambiente de tensão quotidiana.
No campo educacional, a violência simbólica passa despercebida: a violência das omissões e do discurso hegemónico; a violência física, que assume evidência, exige um professor voltado às atitudes autoritárias e obsessivas pela disciplina no interior da sala de aula.
E as violências mais ou menos importantes que, continuamente, têm tido como objectivo os estabelecimentos escolares mais deserdados, nada mais são que a manifestação visível dos efeitos permanentes das contradições da instituição escolar e da violência de uma espécie absolutamente nova que a escola pratica sobre aqueles que não são feitos para ela. Como sempre, a Escola exclui: mas a partir de agora, exclui de maneira contínua e mantém em seu seio aqueles que exclui, contentando-se em relegá-los para os ramos mais ou menos desvalorizados. (BOURDIEU, 1998, p.224)
Se aplicada à escola, a violência física, nas suas várias formas, toma a visibilidade e questiona a autoridade do professor que, não conseguindo resolver os problemas por si, recorre a polícia.
A segurança referenda a ordem dominante e produz uma situação de submissão pelo medo. Os professores buscam na polícia a solução para uma situação que deveriam resolver com medidas educacionais. A polícia, formada para reprimir e não para educar, insere-se em um contexto que não é o seu e gera uma situação nova e incontrolável no âmbito da escola, porque a violência da acção policial produz novas situações de revolta e violência, num círculo incontrolável.
Pode-se atribuir à escola a reflexão de Bourdieu segundo a qual:
Se considerarmos seriamente as desigualdades socialmente condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados a concluir que a equidade formal à qual obedece todo o sistema escolar é injusta de fato, e que, em toda sociedade onde se proclama ideais democráticos, ela protege melhor os privilégios do que a transmissão aberta dos privilégios. (BOURDIEU, 1998 p.53)
A esta situação acrescenta-se o fato que a intervenção da polícia na ordem escolar não só demonstra que a equidade formal inexiste como evidencia as relações de dominação que permeiam o processo educacional: a dominação simbólica já não cumpre sua função e toma o seu lugar a violência explícita.
Associando a leitura de Bourdieu com as análises de Weber sobre o monopólio do uso da força pelo Estado, a intervenção policial justifica-se legalmente e é legitimada pela ordem jurídica, mas realmente agrava a situação de violência contra as classes trabalhadoras. A relação entre Bourdieu e Weber é lembrada por Miceli:
E mesmo a noção genérica que Bourdieu possui a respeito do poder lembra de perto a definição weberiana segundo a qual a violência e a força constituem a última ratio do sistema de dominação. O que não impede a ênfase concedida por ambos à problematização do simbolismos de que se reveste toda e qualquer dominação. Assim, deixam em suspenso a questão dos aparelhos directamente repressivos em que se apresenta uma determinada forma de dominação em favor dos tipos de legitimidade que consolidam o circuito propriamente político entre dominantes e dominados através dos diversos aparelhos de produção simbólica. (MICELI, 2001, p. LI)
A educação, de certa forma, reproduz as desigualdades que se verificam na sociedade, por meio de mecanismos de dominação, da burocratização dos sistemas escolares, que se consolida por meio das políticas públicas. Diante disso, vale retomar um pouco a reflexão sobre o papel do professor na sociedade actual: o sistema educacional está formando o professor para exercer efectivamente a função de educador? Partindo do pressuposto de ser a escola uma agência socializadora, o professor pode ainda comprometer-se com a educação emancipadora, ou seja, tornar-se sujeito de crítica e transformação, visto que a sociedade actual minimiza os problemas da profissão, desqualifica a profissão e não dá respaldo para uma efectiva actuação do professor como educador.


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse contexto, o que se pode perceber é que a escola, o professor e o sistema educativo como um todo, não se colocam mais no centro como agência socializadora, como agente da mudança. E, finalmente, a própria cultura escolar é vista como mais uma forma de conhecimento, concorrendo com outros meios e tecnologias de produção e de transmissão do saber. Assim, é preciso destacar que as novas tecnologias e as novas metodologias incorporadas ao saber docente modificaram o papel tradicional do professor, o qual vê hoje que sua prática pedagógica precisa estar sendo sempre reavaliada e actualizada.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, P; PASSERON, J. C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI. Afrânio (orgs). Escritos de educação. Petrópolis, Vozes, 1998. 
____________. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982.
_______________. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 
MICELI, S. Introdução: a força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982.
WEBER, M. Os tipos de dominação legítima. In. COHN, G. (org) Max Weber: sociologia. São Paulo: Ática, 1982.
STIVAL, Maria Cristina Elias Esper –SME-PR e FORTUNATO, Sarita Aparecida de Oliveira-SME-PR: DOMINAÇÃO E REPRODUÇÃO NA ESCOLA: VISÃO DE PIERRE BOURDIEU. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/676_924.pdf.Acessado aos 09 de Maio de 2015.