A literatura angolana


Port 291 - Lusophone Literature
Prof. Monica Rector

1. Objetivos
            Os objetivos do curso são:
-          introduzir os alunos à história da Literatura Africana de Expressão Portuguesa por meio dos escritores mais importantes,
-          mostrar como estes escritores refletem as questões políticas, sociais e ideólogicas de seus respectivos países,
- ilustrar como a literatura é um meio de entender os movimentos históricos e sociais.

2. Organização do curso
O curso compõe-se de aulas teóricas, com discussão por parte dos alunos, leitura de livros e/ou textos literários e críticos. As aulas serão complementadas com exercícios e/ou análise de poesia e textos em prosa.

3.     Nota
            A nota final é a média de: a) participação em aula, discussão e apresentação dos textos (30%), b) exame (35%), e trabalho (35%).

4.     Programa
O esquema proposto é uma tentativa de sistematização, podendo ser alterado segundo o andamento das aulas ou o interesse específico dos alunos.

Leituras obrigatórias
Course-pack
Maria Aparecida Santilli, Estórias africanas

José Luandino Vieira, Luuanda
Pepetela, Yaka

José Eduardo Agualusa

Mia Couto

5.     Syllabus
Introdução: Literaturas africanas de expressão portuguesa
            www.uc.pt/litafro/bibliog.html
A questão da língua nacional e as línguas minoritárias
As bases das literaturas nacionais
As literaturas nacionais
            Literaturas em português: o próprio e o comum
            Os ecos do modernismo brasileiro
Angola: periodização
Prosa e poesia
Alfredo Troni e Castro Soromenho
Agostinho Neto e José Luandino Vieira
Pepetela e José Eduardo Aqualusa
Moçambique: periodização
Prosa e poesia
Noêmia de Sousa e Luís Bernardo Honwana
João Dias e José Craveirinha
Mia Couto, “Saíde o lata de água”
Cabo Verde: periodização
Prosa e poesia
Orlanda Amarílis e Manuel Ferreira
Baltasar Lopes e Gabriel Mariano
Germano de Almeida, “O testamento do Senhor Napomuceno”
São Tomé e Príncipe
Marcelo da Veiga e Francisco José Tenreiro
Guiné Bissau
Antologia poética

6. Bibliografia básica
Abdala Júnior, Benjamin e Maria Aparecida Paschoalin. História social da literatura portuguesa. 2a. ed. São Paulo: Ática, 1985
Andrade, Mário de. Antologia temática de poesia africana. 2 v. Lisboa: Sá da Costa. PQ9906. A57
Chabal, Patrick et al. The Post-Colonial Literature of Lusophone Africa. London: Hurst & Company, 1996. PQ9900.P67
Critical Perspectives on Lusophone Literature from Africa. Ed. Donald Burness. Washington: Three Continents Press, 1981. PQ9900.C7
Ferreira, Manuel. O discurso no percurso africano. Lisboa: Plátano, 1989. PQ9900. F37 (Negritude)
---. Literaturas africanas de expressão portuguesa. 2 v. Amadora: Bertrand, 1977. PQ9900.F47. São Paulo; Ática, 1987.
---. No reino de Caliban. 3 v. Lisboa: Plátano, 1975 (1o. v. Cabo Verde e Guiné Bissau. Seara Nova, 1975; 2o. v. Angola, São Tomé e Príncipe. Seara Nova, 1976; 3o. v. Moçambique. (Por décadas)
Hamilton, Russell G. Voices from an Empire: A History of Afro-Portuguese Literature. Minneapolis: University of Mianneapolis Press, 1975. PQ9900. H3
Laranjeira, Pires. De letra em riste. Porto: Afrontamento, 1992. PQ9900.L34 (Identidade e questões de literatura)
---. Literatura calibanesca. Porto: Afrontamento, 1985. PQ9900.L37 (Angola)
---. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1975
Maia, Antonio da Silva. Lições de gramática de quimbundo, português e banto: dialecto omumbuium. Escola Tipográfica das Missões, 1957


Mata, Inocência. Pelos trilhos da literatura africana em língua portuguesa. Braga: Cadernos do Povo, 1992. PQ9900.M37
Mendonça, Fátima. Literatura moçambicana, a história e as escritas. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1988.
Moser, Gerald M. Essays in Portuguese-African Literature. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Studies 26, 1969. PQ9900.M6
Mourão, Fernando A. A. A sociedade angolana através da literatura. São Paulo: Ática, 1978
A mulher escritora em África e na América Latina. Org. e coord. Ana Maria Mão-de-Ferro Martinho. Évora: Num, 1999
Navas-Toríbio, Luzia G. do Nascimento. Perfis Ilhéus: vozes e porta-vozes no cenáculo caboverdiano. São Paulo: Centro de Estudos Africanos-USP, 1989
Ribas, Oscar. Dicionário de regionalismos angolanos. Matosinhos: Contemporanea, 1997. PC5431.R53
Rozário, Denira. Palavra de poeta, Cabo Verde e Angola. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. (Entrevistas) PQ9902.R59
Santilli, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo: Ática, 1985
---. Estórias africanas, história e antologia. São Paulo: Ática, 1985
Trigo, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega, 1986. PQ9900.T74
---. Introdução à literatura angolana de expressão portuguesa. Lisboa: Edições 70, 1979. PQ9908.A5.E74 (Angola por décadas e temas)

Benjamin Abdala
As literaturas africanas de língua portuguesa

Problemas políticos, sociais e raciais
Colonialismo/ civilização/ negritude
Em 1954, em Angola, colonialistas dividiram a população entre civilizados x não-civilizados.
Para ser cidadão tinha que ser civilizado: ter mais de 18 anos, falar corretamente o português, exercer profissão para sustento próprio e da família, ter bom comportamento e hábitos civilizados, não ser refratário nem desertor do serviço militar.
Menos de 5% da população tinha estas condições. Em 1950 estruturam-se organizações nacionalistas para a luta anticolonialista.
PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné Bissau e Cabo Verde, com Amílcar Cabral, assassinado pela PIDE em 1973,
FRELIMO – Frente de Libetação de Moçambique, liderado por Samora Machel,
MLSTP – Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe,
MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, liderado por Agostinho Neto

A QUESTÃO DA LÍNGUA NACIONAL
Unidade maior em Cabo Verde, onde o crioulo caboverdiano é falado por toda a população.

AS LITERATURAS
Inserem-se no quadro dos movimentos de resistência e de luta pela libertação política de seus países e de afirmação de uma cultura própria.
Estreitos contatos com literaturas de Portugal e do Brasil. Entre os brasileiros Manuel Bandeira e Jorge de Liam (poesia), e os prosadores da literatura social nordestina, Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
Lit. ligadas ao movimento negro de libertação (a negritude de Aimé Césaire e Léopold Senghor). Da negritude vai-e a africanidade, dai a angolanidade, etc.
Precursores, no sec. 19:
Burguesia crioula em Angola -
Alfredo Troni, Nga mutúri (Senhora Viúva)

Castro Soromenha

Em Cabo Verde, revista Claridade.

Discursos: LUSOFONIA
Lusofonia – não comunidade dos países de língua oficial portuguesa, mas um espaço histórico. Língua não garante a lusofonia, porque não é homogênea.
Na história da língua portuguesa há a formação da língua e o ciclo do império, que começa com os descobrimentos.
Gramático: Antonio de Nebrija
Língua franca/ pidgin/ crioulo
Lusofonia por causa de francofonia
Bipolarização entre Portugal e Brasil
A questão ortográfica
2 variantes e o caso do galego
Exemplo de diferenças, p. 76


Maria Aparecida Santilli, Estórias africanas

VELHOS TEMPOS: LITERATURA TRADICIONAL

Nações ágrafas
Héli Chatelain (Angola,1885) definiu 5 categorias para a literatura. oral:
1.      estórias de ficção: mi-soso em quimbundo, maravilhoso, fantástico, excepcional
2.      estórias verdadeiras: maka, finalidade de instrução e lúdica
3.      ma-lunda ou mi-sendu, segredos transmitidos de ancião para ancião
4.      provérbios: ji-sabu, filosofia da nação , costumes e tradições
5.      e 6. Poesia e música aparecem juntas, em canções chamadas mi-embu e as adivinhas: ji-non-gongo

Especialistas (8): Oscar Ribas, Manuel Ferreira, Elsie Clews Parsons, Marcelino Marques de Barros, Orlando Mendes

No tempo da libertação, 95% de analfabetos

OUTROS TEMPOS: LITERATURA COLONIAL
Sec. 19 em diante

TEMPOS NOVOS: EM DIREÇÃO DE UMA LITERATURA NACIONAL

ENTRE OS ANGOLANOS
Repressão é maior a partir dos anos 60.
José Luandino Vieira escreve sobre os musseques (favelas).
Cipaio: angolano recrutado para servir no quadro policial português (situação embaraçosa).
ENTRE OS CABOVERDIANOS
Prosa moderna a partir dos anos 30, em torno da revista Claridade
Seca, fome, emigração como os retirantes nordestinos são temas.
ENTRE OS MOÇAMBICANOS
Periódicos: O Africano e O Brado Africano

PROGRAMA E BIBLIOGRAFIA
Literatura Africana de Expressão Portuguesa é obrigatória desde 1978.
Desde 75 são literaturas autônomas.
Desde então surge interesse.
Literatura dos 5 países de língua oficial portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe.
Importância: 1. Angola, 2. Moçambique e Cabo Verde.
Em Angola e Moçambique fala-se o português e várias línguas regionais africanas. Em Cabo Verde, o crioulo é a língua, em São Tomé e Príncipe predomina o crioulo de São Tomé que se chama forro, o crioulo de Príncipe é o Iunguyê. Guiné-Bissau fala o português, crioulo e línguas africanas.
Literatura começa com a de viagens, historiografia, e crônicas.
Na pós-independência aumentou a alfabetização.
Não há cânone, é necessária a desconstrução de valores culturais ou a sua reelaboração, afastando-se da cultura ocidental (8)
O escritor africano sempre assimilou o que vinha do exterior, pela carência qualitativa e quantitativa. Influência do Modernismo brasileiro (6) e de outros movimentos (7), assim como países.
Especialistas, p. 4.
Como fazer história da literatura?
Por períodos,como o faz Pires Laranjeira e não por movimentos literários.
Literatura engajada nos anos 50, 60 e 70, só depois autóctone.
A partir da p. 10, cada país é enfocado separadamente.

ANGOLA
p. 17 – Língua (18 – bibliografia)
19 – Literatura colonial (comparação com o Brasil)
21 – Modernismo e neo-realismo em África
22 – Literatura de guerra e guerrilha
23 – 1882-1949: a narrativa (em Angola)
            Alfredo Troni
24 – Castro Soromemho
25 – 1849-1948: poesia
26 – Mensagem e a nova poesia angolana
27 – Poesia de Viriato da Cruz e Antonio Jacinto
28 – Agostinho Neto e Negritude
30 – Cultura e Imbondeiro
31 – José Luandino Vieira e Luuanda
32 – Geração de 70: nova poesia angolana
34    - Pepetela e Yaka

                                                                       MOÇAMBIQUE
35    – Periodização
Poesia de Noémia de Sousa
36    – José Craveirinha
38 – Os anos 60
39 – Rui Knopfli e Caliban
40 – Mia Couto
            A actual literatura africana
42 – Bibliografia geral
Estratégias pedagógicas (2 semestres)

M. Aparecida Santilli
LITERATURAS EM PORTUGUÊS: O PRÓPRIO E O COMUM, em Africanidade

Poesia: José Régio, “Fado português”, ser português
            Jorge de Lima, “Democracia”, ser brasileiro
            Jorge Barbosa, “Arquipélago”, identidade nacional

Ex. Poema de Manuel Bandeira

Conto: Fernando Namora, “Eu conto”, Casa de Malta
            João Guimarães Rosa, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, Sagarana
            José Luandino Vieira, “Estória da galinha e do ovo”, Luuanda
Em cada conto há réus que não negam o crime, mas por outro lado são vítimas: eixo coação/proteção

Intertextualidade

Ex. p. 15 equívoco (máscara) – reconhecimento – inversão da situação inicial e final

M. Aparecida Santilli, ECOS DO MODERNISMO BRASILEIRO ENTRE AFRICANOS, em Africanidade

Manoel Ferreira analisa “A aventura crioula”, relações entre a revista Claridade e a literatura brasileira.
Livros que chegaram a Cabo Verde: Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes e Marques Rebelo.
Baltasar Lopes foi influenciado por Manuel Bandeira e Jorge de Lima
Jorge Barbosa (ler)
Ovídio Martins
Carlos Ervedosa, Roteiro de literatura angolana

Pires Laranjeira, A NEGRITUDE E A NEGRITUDE ENTRE OS AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

1a. vez o termo foi usado por Aimé Césaire (Martinica) em “Cahier d’un retour au pays natal”, 1939.
4 aspectos fundamentais do Cahier são a cor, a raça, a psicologia e a reinvindicação.
Léon Damas, Pigments, 1937.
Léopold Senghor, 1945, Chants d’Ombre e 3 anos depois Hosties Noires.
Em 1948,  Senghor publica uma antologia prefaciada por Sartre, que consagra o pan-africanismo.
Renascimentos nacionalistas e integracionistas-assimilacionistas.
Revalorização do negro.
Consciencismo:   definição de uma política africana moderna (Nkrumah).
Personalidade africana inclui o negro, o árabe , o bérbere.

Num primeiro tempo, a negritude exige a libertação cultural.
Tenta por fim à marginalização.
Valorização do patrimonio histórico e cultural.
Crítica: ensimesmavam-se, apelo ao passado e ao continente, esquecendo peculiaridades nacionais e mesmo regionais.
Fases: negritude dolorosa e agressiva segue a negritude serena e triunfante (Louis-Vincent Thomas).
Álvaro Miranda Santos, em 1966, faz um inventário do conteúdo de negritude:
Conteúdo pessoal, político, cultural, artístico (este ligado muitas vezes ao anterior), valores, geográfico, econômico.

Em língua portuguesa, o termo foi primeiro usado pelo são-tomense Francisco José Tenreiro, em 1942, em Ilha de nome santo, “Canção do mestiço”, “Coração em Africa”.
Gritar a presença do negro no mundo.
Posição oposta a de Salvato Trigo (1977): humanismo sem coloração.
Só alguns poemas abordam o tema.
Manuel Ferreira, Literaturas africanas de expressão portuguesa

INTRODUÇÃO

Descobertas e expansão

Os portugueses chegaram a

Cabo Verde em 1460,
Guiné em 1446,
São Tomé e Príncipe em 1485,
Moçambique em 1575.
Fundaram a primeira povoação portuguesa: São Paulo Assunção de Luanda, hoje capital de Angola.

Documentos: relatórios que jesuítas mandaram de Angola para a Europa.
No s.19, criação e desenvolvimento do ensino oficial  e alargamento do ensino particular.
As primeiras iniciativas são de 1740; em 1845 inicia-se a instrução primária nas províncias ultramarinas; em 1860 é criado um Liceu em Praia, Cabo Verde; em 1866 um seminário eclesiástico em Cabo Verde.
A imprensa surge nos cinco países no s.19.

Literatura colonial e literaturas africanas
Primeira publicação em Angola, 1849, Espontaneidades da minha alma de José da Silva Maia Ferreira.
2 linhas: literatura colonial e literatura africana de expressão portuguesa.
Colonial: universo narrativo do homem europeu, eurocêntrico. O branco é o herói mítico, o desbravador das terras, o portador de uma cultura superior.
Atingiu o apogeu na década de 20 e 30, o público europeu queria o exótico.
Literaturas africanas são o inverso da literatura colonial. É isento da visão folclórica e exótica. O negro é privilegiado.

Há várias línguas e o dialeto crioulo.

Em busca de uma taxinomia
Russel Hamilton, Literaturas africanas/literaturas necessárias (1981)
Sugere “literaturas africanas de expressão portuguesa”, “literaturas africanas de ou em língua portuguesa”, “literaturas de língua oficial portuguesa”, “literaturas lusófonas”. Dá preferência à última designação, o que é isento de conotação nos EUA, mas não nos outros espaços de lingua portuguesa, Luso==português. O próprio Mário de Andrade publicou Antologia da poesia negra de expressão portuguesa (1958).

Manuel Ferreira propõe o modelo de Greimas:
Destinador – objeto – destinatário
Adjuvante – sujeito – oponente

Período colonial:
História – Independência Nacional – África, Sociedade Africana
Colonizado – Homem Africano – Colonizador

Literatura colonial:
Colonialismo – sujeição do colono – europeus na África
Metrópole – Colonizador – Colonizado

Pires Laranjeiras, LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

Esta literatura começou a existir coma instalação da imprensa, sobretudo em forma de jornais e revistas, o que incrementou a criação literária. O primeiro jornal de africanos foi o Echo de Angola (1881) como imprensa livre ao lado de  escritos em quimbundo, Muen’exi (senhor da terra)  e Mukuarimi (linguarudo), dirigidos por Alfredo Troni.

Ensino
Até os anos 60 o analfabetismo era de 95%.
O poeta angolano Antonio Jacinto escreveu em “Carta dum contratado” (1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu – Oh! Desespero! – não sei escrever também!

A educação estava nas mãos dos jesuítas que foram expulsos no s. 18.
Os movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram o ensino e a alfabetização, ainda que escassa.
Se a população negra não lia jornais, muito menos literatura. Só os assimilados tinham acesso a escolarização e eram o público leitor. Para o colono ou funcionário assalariado de passagem, a literatura africana negra era um corpo estranho. Foi a Negritude que lançou os movimentos culturais propondo uma Renascimento Negro nas décadas de 10, 20 e 30.
Negritude: termo criado pelo poeta de Martinica Aimé Césaire no poema “Cahier dún retour au pays natal” (1939) e  Les armes miraculeuses (1946).
Léon Damas publica Pigments, em 1937.
Léopold Senghor publica “Ce que l’homme noir apporte” (1939), etc.
Negritude: redescoberta da história e da culturas do continente africano e da diáspora negra no mundo. Tratamento obsessivo da raça e da cor negra.
Temas: África, o negro e a mãe-negra (mãe-África ou mãe-Terra).

ANGOLA: PERIODIZAÇÃO
1o. período – das origens até 1848, o da Incipiência.

2o. – da publicação de Espontaneidades da minha alma, de José da Silva Maia Ferreira, em 1849 até 1902, o dos Primórdios.
Destacam-se Alfredo Troni com Nga mutúri (1882).
Cordeiro da Matta
É o período da chamada imprensa livre.

3o. – s. XX (1903-1947), o do Prelúdio. Período do nacionalismo, da literatura colonial.

4o. – entre 1948 e 1960, o da Formação da literatura, com movimentos culturais organizados: Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA) (1948), com o lema “Vamos descobrir Angola”.
Viriato da Cruz
Antonio Jacinto, que editou em 1950, Antologia dos novos poetas angolanos.
Em 1951 sai Mensagem.
Na década de 50 há a influência do neo-realismo e da Negritude:
a) exaltação do povo (proletariado) , luta contra a  burguesia
b) busca da identidade nacional
c) integração no mundo negro.

Destaca-se a poesia com influência do modernismo.


5o. – 1961-1971, incremento da atividade editorial ligada ao Nacionalismo, surgem textos de temática guerrilheira.
1962, Alfredo Margarido publica Poetas angolanos.
1964, José Luandino Vieira recebe o Grande Premio de Novelística por Luuanda (enquanto estava preso em Cabo Verde).

6o. – 1972  a 1980, o da Independência.
Publica-se a coletânea Angola, poesia 71.
Em 1975 funda-se a União dos Escritores Angolanos (UEA) e fundam a gazeta Lavra & Oficina.

7o. – 1981-1993, o de Renovação, que começa com a formação da Brigada Jovem de Literatura, preparar os jovens para os cursos superiores.

Alfredo Troni
Coimbra (1845) - Luanda (1904).
Jornalista, Nga Mutúri é romance de folhetim,  publicado nos jornais de Lisboa, Diário da Manhã e Jornal do Comércio e das Colônias, em 1882, reeditado em 1973.
Romance ocorre em Luanda e é a memória da personagem principal. Em criança, o tio é obrigado a vendê-la por causa do quituxi (instituição jurídica africana), depois passa pela fase em que se torna mulher de branco, que  a comprou, depois pela viuvez, tanto que Nga Mutúri significa Senhora Viúva. Há vários acontecimentos e histórias encaixadas, vendo-se a sociedade de Luanda: relações familiares, justiça, hábitos sociais, religiosos, culinária, tradições africanas, conceitos de vida. Já vemos a pequena burguesia luandense. Lembra o estilo de Garrett em Viagens na minha terra. O estilo mostra ironia e malícia. Do ponto de vista sócio-cultural chama a atenção a coisificação da mulher instaurado pelo colonizador.

Castro Soromenho
Zambézia, Moçambique (1910) – S. Paulo (1968), moçambicano de nascimento, cabo-verdiano de ascendência e angolano de vivência. 2 fases: na 1a. destaca o sentido social, lendário e histórico das comunidades tribalizadas dentro do realismo mágico – Nhári,  o drama da gente negra, 1938; Noite de angústia, 1939; Homens sem caminho, 1941; Rajadas e outras histórias, 1943; Calenga, 1945; Histórias da terra negra, 1960.  2a. fase, neo-realista, aborda o espaço e os grupos humanos modificados pela presença do europeu. Trabalha 3 grupos étnico-culturais: negros brancos e mestiços (na anterior só o negro). Temas: violência, repressão, abusos da administração, sofrimento do homem angolano explorado, desencanto existencial, com a trilogia – Terra morta, 1949; Viragem, 1957; Chaga (póstumo), 1970. (Pires Laranjeira 52)

Bastide, Roger. L’Afrique dans l’oeuvre de Castro Soromenho. Paris:  Pierre Jean Oswald, 1960.
Moser, Gerald. “Castro Soromenho, an ngolan realist.” Africa Today 15 (6): 20-4, Denver, Colorado, jan. 1969, tb. Essays in Portuguese-African Literature. Pennsylvania: Pennsylvania State U, 1969.
 AGOSTINHO NETO (1922-1979)

Estudou Medicina em Coimbra.
Luta anti-colonial.
1959, líder do MPL
É considerado o fundador da Nação.
Obras principais:
Sagrada esperança
Texto épico da angolanidade. Comparado em valor aos Lusíadas.
É a saga exortativa do povo angolano à conquista da sua identidade e independência.
Esta obra tem 3 fases:
-          de 1945 a 48-50, fase neo-realista, com textos curtos.
-          de 1949 a 1955, a fase da Negritude, do negro genérico de todo o mundo.
-          de 1956 a 1960, a fase do combate, do apelo à libertação nacional.
A Negritude assenta sobre o fundo do neo-realismo.
O neo-realismo convém à decrição de ambientes opressivos miseráveis, com figuras-personagens : prostituta, contratado, carregador, vendedeira, aos temas universais como a denúncia (exploração, alienação, dominação, revolta) numa linguagem expositiva, realista.
A  Negritude convém à exaltação da raça e da cor negra, à recusa da civilização e da superioridade ocidental, à revalorização da história e da cultura pré-colonial, etc.

A renúncia impossível – inéditos (1982, escrito em Coimbra em 1949)
O texto mais longo, 3 partes:
-          Introdução: “Não sou Nunca fui/Renuncio-me/Atingi o Zero”; filosofia de imagens e desejos.
-          Desenvolvimento: exemplifica a vida dos outros, do trabalho escravo, forçado e assalariado.
-          Peroração: a assunção do Nada, da Negação da existência e do mundo. Negando o mundo do Outro, do Branco, anula sua eficácia.
-          O mundo, a vida e o comportamento do branco, do europeu e do cristão estariam legitimados, absolvido de culpa, crime e pecado, se o negro, o africano e o pagão não existissem. Mas é a sua existência que torna a existência dos outros ignominiosa ou, pelo menos, culposa… (Pires Laranjeira, 98).
-           
Agostinho Neto - O Choro de África

O choro durante séculos
nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
nos batuques choro de África
nos sorrisos choro de África
nos sarcasmos no trabalho choro de África
Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal
meu irmão Nguxi e amigo Mussunda
no círculo das violências
mesmo na magia poderosa da terra
e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas
e das hemorragias dos ritmos das feridas de África
e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão
mesmo no florir aromatizado da floresta
mesmo na folha
no fruto
na agilidade da zebra
na secura do deserto
na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos
mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens
o choro de séculos
inventado na servidão
em histórias de dramas negros almas brancas preguiças
e espíritos infantis de África
as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas
o choro de séculos
onde a verdade violentada se estiola no círculo de ferro
da desonesta forca
sacrificadora dos corpos cadaverizados
inimiga da vida
fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar
na violência
na violência
na violência
O choro de África é um sintoma
Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós!
E amor
e os olhos secos.
(Poemas, 1961)

Agostinho Neto
Fogo e Ritmo

Sons de grilhetas nas estradas
cantos de pássaros
sob a verdura úmida das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das chapas do Cayatte.
Caminhos largos
cheios de gente cheios de gente
em êxodo de toda a parte
caminhos largos para os horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade dos braços.
Fogueiras
dança
tamtam
ritmo
Ritmo na luz
ritmo na cor
ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas
Mas ritmo
ritmo.
Ó vozes dolorosas de África!


Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.
Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.

Agostinho Neto
Confiança

O oceano separou-se de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensando o tempo.
Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso
Enquanto o sorriso brilhava
no canto de dor
e as mãos construíam mundos maravilhosos
John foi linchado
o irmão chicoteado nas costas nuas
a mulher amordaçada
e o filho continuou ignorante
E do drama intenso
duma vida imensa e útil
resultou a certeza
As minhas mãos colocaram pedras
nos alicerces do mundo
mereço o meu pedaço de chão.


PEPETELA

Nasce em Benguela em 1941. Tem um único nome, o verdadeiro é Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Em 1958 vai estudar em Lisboa, depois exílio na França e Argélia. Seu segundo romance Mayombe é sobre a guerrilha na floresta do mesmo nome. Curioso é que ocupa cargos de poder, como o de vice-ministro da Educação.
Escreve também teatro histórico, A revolta da Casa dos Ídolos.
Escreve sobre os povos do grupo umbundo (ou ovimbundos), os mais numerosos de Angola.
Bibliografia
MUANA PUÓ - A obra foi escrita em 1969 e publicado 1978
MAYOMBE- Escrito em 70/ 71, em Cabinda e publicado em 80
AS AVENTURAS DE NGUNGA - Escrito e publicado em 73
A REVOLTA DA CASA DOS ÍDOLOS- Escrito em 78 e publicado em 1979
O CÃO E OS CALÚS - Escrito de 1978 a 82, foi trabalhado para publicação em 1984 e publicado em 1985.
YAKA- Escrito em 1983 e publicado em 84 no Brasil e em 85 em Portugal e em Angola.
LUEJI - O Nascimento de um Império - Escrito de 1985 a 88 e foi publicado em 89.
LUANDANDO - A obra foi escrita e publicada em 1990
A GERAÇÃO DA UTOPIA- Começou a ser escrito em 1972 e veio a ser publicado em 1994.
O DESEJO DA KIANDA- Escrito em 1994 e publicado em 1995.
A PARÁBOLA DO CÁGADO VELHO- Começou a ser escrita em 1990 e foi publicada em 1997.

Yaka
E" A ideia do Yaka nasce em Benguela em 1975, estávamos numa "espera " nocturna do inimigo e eu disse que tinha que escrever um livro que aproveitasse o privilégio que eu tive de ter nascido de uma família colonial, numa cidade colonial, de ter lutado contra esse sistema colonial e de estar na minha cidade natal quanto termina o colonialismo...Foi aí que nasceu a ideia e a partir daí eu juntei todos os textos sobre Benguela e sobre a região centro sul, quando saí do governo, uma semana depois comecei a escrever o livro, a dois de janeiro de 1983. Tive que escrever o livro de pé. "Eu estava completamente preso à história quando escrevi o Yaka"- Pepetela.
É um livro sobre a história da colonização em Angola e, simultaneamente a história da luta pela queda dessa colonização. Uma saga sobre cem anos da história do país vistos através da evolução de uma família e do seu percurso por Angola. Pepetela acompanha a vida de personagens idos de Portugal para Angola no século XIX, com personagens idos do Brasil, essencialmente deportados, e pessoas descontentes com descontentes com a independência do Brasil.
A história vai até à independência de Angola em 1975. Termina em Benguela. Na última geração, como foi comum a muitas famílias há histórias de vidas com opções diferentes dentro dos diferentes partidos angolanos.
Toda a história é acompanhada por Yaka, a estátua que acompanha toda a história da família e que no fim é entendida na sua mensagem pelo último dos membros da família.
Nesta obra Pepetela assume em absoluto a sua função de romancista-historiador:
" Nesse livro eu pretendia mostrar uma vertente europeia na cultura que existe nas cidades da costa angolana. Há a intenção de dizer que há um legado cultural da colonização. Custou-me muito escrevê-lo porque eu estava demasiado amarrado á história. É um livro onde acredito não hajam muitos erros históricos."

JOSÉ LUANDINO VIEIRA
Nasceu en Angola, em 1935, filho de portugueses muito pobres.
Anti-colonialista, foi preso em 1961 até 1972, no campo de concentração de Tarrafal (Cabo Verde), junto com outros escritores.
Hoje dirige sua editora em Luanda, participa das Edições 70 (Lisboa) e Edições ASA (Porto).
Em 1964 ganha o Premio Motta Veiga em Luanda e no ano seguinte o Grande Premio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Livros:
A cidade e a infância (1960)
Duas histórias de pequenos burgueses (1961)
A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974)
Vidas novas (1975)
Velhas estórias (1974)
No antigamente, na vida (1974)
Nós, os do Makulusu (1975)
Macandumba (1978)
João Vêncio: os seus amores (1979)
Lourentinho, Dona Antonia de Sousa Neto & eu (1981).
Enquadra-e na geração da Cultura (anos 50), e da Mensagem (1951-52).
Os livros mais importantes são Luuanda e Nós, os do Makulusu, este autobiográfico.
A sua obra se divide em 2 fases:
-          estórias escritas até 1962, mantém o discurso clássico, perto da norma do português europeu  e narrativas curtas como Maupassant
-          - começa com Luuanda,  a angolinização da língua portuguesa, usa gírias, neologismos, e outros recursos orais e tradicionais africanos.
-          A linguagem tem influência das línguas bantas, do quimbundo, que são línguas prefixais, aglutinantes e tonais.
Luuanda, 3 estórias com os temas principais: fome e escassez de meios. Topografia é de Luanda nas primeiras 2 estórias “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”e “Estória da galinha e do ovo”.


JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

Foi o impulso biológico da propagação da raça que empurrou as caravelas portuguesas. estamos em África, na América e no Oriente pelo mesmo motivo que os fungos se alastram ou os coelhos copulam – porque no intimo sabemos ( o nosso corpo sabe-o) que colonizar é sobreviver! (...) Desgraçadamente, Portugal espalha-se, não coloniza (...) Pior: uma estranha perversão faz com que os esqueçam a sua missão civilizadora, isto é, colonizadora, mas depressa se deixem eles próprios colonizar, isto é, descivilizar, pelos povos locais.
Nação Crioula

Dados Biográficos
 


Pertence à novíssima geração. Em 1981 foi criada a Brigada Jovem de Literatura, que editou 3 numeros de Aspiração. Os jovens publicavam no Jornal de Angola, único diário ou na gazeta Lavra & Oficina, da União dos Escritores Angolanos. Luís Kandjimbo e Lopito Feijoó publicam a coletânea Geração da revolução, novos poetas angolanos em volta. A partir de 1985, a geração tem expressão pós-realista. Os poetas moderníssimos tem por volta de 30 anos. A temática da guerra, da degradação social e da organização economica mudam a carga semântica, há o gosto de viver, não há mais o aspecto destrutivo e pessimista.
Surgido na década de 90 como um dos nomes de ponta da nova literatura africana em língua portuguesa e um dos autores mais importantes surgidos em Angola na última década, José Eduardo Agualusa nasceu a 13 de Dezembro de 1960 na cidade de Huambo, planalto central de Angola. Estudou agronomia e silvicultura. Actualmente, Agualusa reside em Luanda, onde é correspondente do jornal Público e da RDP África. É membro da União de Escritores Angolanos.
Se existe uma palavra que possa caracterizar a obra e a personalidade de José Eduardo Agualusa, essa palavra é sem dúvida a palavra crioulo: crioulo é, para Agualusa, uma afirmação de raízes que contém em si todo um projecto de futuro, de possibilidade de afirmação de valores culturais angolanos e das culturas africanas e colonizadas em geral.
Agualusa é, ele próprio, o exemplo por excelência do crioulo: com ascendência angolana, portuguesa, brasileira e, mesmo dentro de Angola, com raízes em diferentes regiões, está, de facto tão em casa em Lisboa como em Luanda ou no Pantanal do Brasil. Do mesmo modo, a sua escrita está tão à vontade com a inovação semântica e estilística que as literaturas africanas têm imprimido á língua portuguesa como com a utilização que dela é feita pelos seus maiores clássicos, como Eça de Queiroz, que o autor recria magistralmente no seu último romance, Nação Crioula.
A sua estreia como escritor fez-se com o romance A Conjura (1989), que foi a primeira obra literária angolana a debruçar-se sobre a sociedade crioula de Luanda no século XIX, destacando-se ainda na restante obra, pela importância da análise e do testemunho nunca até então dado sobre a história angolana recente, o romance Estações das Chuvas.
Obra


Ficção:

A Conjura (1989)

D. Nicolau Água-Rosada e Outras Estórias Verdadeiras (1990)

A Feira dos Assombrados (1992)

Estação das Chuvas (1997)

Nação Crioula (1997)


Poesia:

Coração dos Bosques (1991)

Reportagem:

Lisboa Africana (com Fernando Semedo e Elza Rocha(fotos)), (1993)

Prémios


  • Prémio Sonangol de Literatura (Angola), 1989 (A Conjura)
  • Prémio de Jornalismo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
  • Grande Prémio Literário RTP, (Portugal), 1997 (Nação Crioula)
  •  
Entrevistas


Somos todos descobridores. Cinco séculos depois de Cabral, José Eduardo Agualusa alerta que o Brasil precisa redescobrir África. Para o escritor angolano, a América, a Europa e o continente africano só têm a ganhar com a miscigenação.
José Eduardo Agualusa
Em 1997 estive no Recife a convite da I Bienal do Livro de Pernambuco. Uma tarde entrei num taxi, companhia do escritor angolano Jackes dos Santos, do adido cultural de Angola em Brasília, Bito Pacheco, e de uma historiadora brasileira. No dia seguinte o taxista encontrou em Olinda o marido da minha amiga e logo o informou:
- Ontem transportei tua mulher e três gringos que estavam tentando falar português.
Um outro taxista estranhou o meu sotaque: - Você é de onde?
Disse-lhe que era de Angola.
- Angola? - admirou-se ele - e em que Estado fica isso?
Quando lhe expliquei que em Angola, país com onze milhões de habitantes, situado na costa ocidental de África, exactamente do lado de lá do Oceano Atlântico, também, e fala português, o espanto dele aumentou:
- Verdade? Pensei que só no Brasil se falasse português.
Estes dois episódios ilustram a falta de informação do brasileiro médio relativamente a África. Ignorância perversa: o Brasil é, claramente, uma nação de matriz africana (luso-africana). 0 negro, porém, continua associado à escravidão e à pobreza, e ele próprio tem tendência a iludir a sua origem. 0 Brasil necessita de redescobrir África, na vitalidade da sua cultura moderna, pois só assim os brasileiros de origem africana poderão recuperar o orgulho e a dignidade.
Entre os marinheiros de Pedro Alvares Cabral que, vai para quinhentos anos, avistaram os verdes morros do Brasil (ou melhor, daquilo que depois seria o Brasil), provavelmente já haveria africanos. "Nos começos do século 16 os marinheiros negros trabalhavam lado a lado com os brancos, nalguns barcos", escreveu o historiador A. C. Saunders em História Social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441 - 1555) (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994). Saunders baseou-se sobretudo no estudo de documentos guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. "Na caravela Santa Maria das Neves, que fazia carreira entre Lisboa e Cantor, na Gâmbia, nos anos 1505 a 1506, sete dos catorze grumetes eram negros, assim como um dos seus nove marinheiros. Em termos de pagamento não era feito qualquer distinção entre brancos e negros, tendo um grumete de cor negra sido promovido a marinheiro durante o serviço prestado em terras estrangeiras, ficando assim a haver dois marinheiros negros na tripulação.
Os africanos e afro-descendentes participaram, desde o início, no processo de formação da nacionalidade brasileira. Não por acaso as manifestações da cultura brasileira que impuseram o país no exterior são, na sua essência, de origem africana: a música popular, o carnaval, ou o poderoso universo literário de Jorge Amado.
Apesar disso, e sem perceberem que dessa forma se submetem, uma vez mais, ao poder do preconceito, os afro-brasileiros preferem voltar-se para os Estados Unidos - em busca de uma identidade negra da qual possam sentir orgulho, do que olhar para África. Assistirmos assim, desde a anos, à importação de conceitos desajustados da realidade brasileira. Ainda mais irónico: alguns desses conceitos estão também já desajustados nos Estados Unidos, país que, com séculos de atraso, começa agora a transformar-se, como toda a América Latina, numa imensa nação crioula. Estudos recentes comprovam que no próximo século a maioria dos norte-americanos serão mestiços. Um número crescente de intelectuais afro-americanos vem defendendo o estudo das sociedades crioulas da América Latina em busca de um modelo para o futuro.
No seu espaço geográfico, a América Latina, o Brasil destaca-se como o país melhor colocado para refazer os laços com África pois, excluindo a minúscula Guiné-Equatorial, não existe naquele continente nenhuma outra nação de língua espanhola. Em contrapartida há em África cinco países de fala portuguesa, todos eles formadores da identidade brasileira, e todos, sem excepção, de coração aberto relativamente ao Brasil - em Cabo Verde, por exemplo, as composições de Waldir Azevedo estão completamente integradas no rico património musical do arquipélago (tornaram-se cabo-verdianas). Já em Angola a memória de algumas telenovelas brasileiras permanece na toponímia de Luanda: o mais famoso mercado da capital, o maior mercado aberto de África, chama-se Roque Santeiro e há outros com nomes como Os Trapalhões, Beato Salú, etc...
Cinco séculos depois de Cabral ter aportado ao Brasil somos todos descobridores - ou melhor, redescobridores. Portugal tem vindo a reencontrar-se com África e hoje, por paradoxal que pareça, os portugueses estão muito mais bem informados acerca do grande continente negro do que estavam durante a época colonial. Os africanos, por sua vez, redescobrem Portugal. Sabe-se que em séculos anteriores a presença africana foi muito forte em diversas cidades portuguesas. No século 16 cerca de dez por cento da população de Lisboa era de origem africana. Num livro fascinante, O Fado: Canção Lisboa, dançar do Brasil (Editorial Caminho, Lisboa, 1996), o pesquisador José Ramos Tinhorão foi à procura das raízes do fado, canção que se tornou num símbolo de Portugal, e encontrou-as: são afro-brasileiras.
A percentagem de africanos no conjunto da população de Lisboa é actualmente mais elevada do que nunca: em torno de doze por cento. A moderna música popular portuguesa (para ficar apenas no campo da música popular, expressão cultural de alcance mais imediato do que, per exemplo, a literatura) tem vindo a enfraquecer-se em contacto com os diferentes sons vindos de África.

MOÇAMBIQUE: PERIODIZAÇÃO

Em Moçambique há menos europeus do que em Angola, maior número de analfabetismo. O poeta brasileiro, de origem portuguesa, Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810), degredado, faleceu lá.

1o. período: Incipiência
Vai das origens até 1924, quando João Albasini publica O livro da dor (1925), obra inaugural da literatura moçambicana. Fundou o jornal O Brado Africano (1918), onde muitos autores publicaram. Trabalha com seu irmão José. Outros semanários: O Africano (1877), O Vigilante (1882), Clamor Africano (1892).
Campos Oliveira (1847-1911) publicou um Almanaque Popular. Manuel Ferreira publicou o livro O mancebo e o trovador Campos Oliveira (Lisboa-IN-CM, 1985) . O Almanach de Lembranças (1851-1932), publicado em Lisboa, publica muitos poetas africanos.

2o. período: Prelúdio
Vai desde 1925 até o fim da II Guerra Mundial.
Rui de Noronha (1905-1943), Sonetos (1946), poemas dispersos dos anos 30 (recolha duvidosa). É herdeiro do terceiro romantismo português.
Depois da guerra e cerca de 20 anos até 1963, a literatura alcança autonomia. Há discussão quanto a data deste período decisivo: Rui Knopfli considerou a publicação de dois poemas de Fonseca Amaral em 1945 e de Orlando Mendes em 1947; Ilídio Rocha data 1947 (1o. Congreso da Sociedade de Estudos); Orlando de Albuquerque entre 1946-50 com um grupo de moçambicanos que vivia em Coimbra.
Noemia de Sousa é prmeira escritora de radicação africana, poema “Canção fraterna” (1948).
Orlando Mendes, “Cinco poesias do Mar Índico” (1947).
João Dias
Augusto dos Santos Abranches, neo-realista.
A sociedade moçambicana é mais segregacionista do que a angolana; os negros em Lourenço Marques se reunem no Centro de Negrófilos; os mulatos na Associação dos Africanos; os brancos na Associação dos Naturais; os mulatos são considerados os filhos da terra.

3o. período: Formação
Vai de 1945/48 a 1963. Influência do neo-realismo e da Négritude a partir dos anos 50.
Noemia de Sousa escreve seus poemas entre 1948 e 51; influência do negrismo americano (Black Renaissance, indigenismo haitiano e negrismo cubano).
Na década de 50 há movimentos grupais, publica-se a antologia Poesia em Moçambique, 1951, organizada por Luís Polanah.
O grande nome é José Craveirinha.

4o. período: Desenvolvimento
Vai de 1964 a 1975. É o início da luta pela libertação e independência do país. A atividade literária ocorre no hinterland, no ghetto.
Eugenio Lisboa, Rui Knopfli, o português Antonio Quadros.
Em 1964, Luís Bernardo Honwana publica Nós matamos o cão-tinhoso, um conjunto de contos. A prosa passa a preponderar sobre a poesia. Craveirinha publica Chigubo.
Nos anos 60 e 70, os escritores, sobretudo brancos, abandonam o país. Muitos intelectuaais tem uma identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla.

5o. período: Consolidação
Vai de 1975 a 1992. São divulgados textos que haviam ficado na gaveta.
Rui Nogar (1935-1993), Silêncio escancarado (1982).
A FRELIMO detém o monópolio e controle das publicações.
Mia Couto, Raiz de orvalho, poemas, 1983; Vozes anoitecidas, 1986, livro que inova a literatura; Terra sonâmbula, 1992, seu primeiro romance.
A partir de 1984, a revista Charrua publica os novíssimos: Ba Ka Khosa, Helder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane.


NOEMIA DE SOUSA

Born in Lourenço Ma rques in 1926, Noémia de Sousa began writing poetry at an early age, although she is also said to have stopped it quite early, in 1951. According to Aldónio Gomes and Fernanda Cavacas, only in 1986, on the occasion of Samora Machel's death, did Noémia de Sousa take up writing again, and then only for a very brief stint. Yet, she remains one of Mozambique's best-known poets, and certainly one of the most influential voices to come out of Portuguese Africa. Simultaneously however her work frequently has attracted disparaging critical assessment. Her angry tone, combined with a rather idiossyncratic use of language, and the fact that she has not published much of her work, have led some critics to discount her as a minor poet. It is perhaps a sign of the dearth of women writers in Lusophone Africa that, in spite of such lack of critical acclaim, her writing has been continually anthologised in collections of Lusophone African poetry. Her poems have also appeared in numerous journals and magazines, such as Mensagem, O Brado Africano and Présence Africaine. After spending some time in Lisbon, following her difficulties with the Portuguese political police in Mozambique, Noémia de Sousa settled in France. However, she has since returned to live in Portugal. Among her works: Sangue Negro (n/d), Poemas Inéditos (1964) and Poesia (n/d).

Surgiu como a voz efêmera do jornal Msaho (1952), título é o nome de um canto do povo chope.
Perspectivas de moçambicanidade.
Raízes da cultura tradicional.
43 poemas em Sangue negro, de 1948-51.
Poetisa verdadeiramente moçambicana.
Nasceu em 1926 em Maputo, antiga Lourenço Marques.
Situa-se entre neo-realismo e Negritude, mas é uma  negritude da Black Renaissance norte-americano, do  Indigenismo haitiano e do Negrismo cubano.
“Nossa voz” é dedicado a Craveirinha, é a voz coletiva das pessoas do povo.
“Se me quiseres conhecer” é  uma comparação entre o predicador e uma estátua maconde (etnia do Nordeste, resistente ao colonialismo), poema escrito em 1949.
“Deixa passar o meu povo” (Let my people go)
“Negra”.

Hamilton, Russel. Literatura africana, literatura necessária. v.2. Lisboa: Ed. 70, 1983:3-36.
Margarido, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980: 486-489.






MAGAÍÇA
(Caderno coletivo de 1953).
O magaíça era o trabalhador moçambicano que emigrava para as minas do Rand ou compounds (áreas de exploração) da África do Sul. Sonhando com uma vida melhor, retorna à terra na condição em que partira, miserável como sempre. Se é um magaíça, é um negro e proletário, paradigma de todos os do seu povo. Poema neo-realista, descreve um quadro social e econômico, de alienação e dominação.

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.

LUÍS BERNARDO HONWANA
               
                Nos anos 60, em Moçambique, havia uma  literatura:
1.      com publicações adversas ao ghetto (tendência neo-realista e negritudinista),
2.      nas mesmas condições do ghetto (dentro da tradição lusófona),
3.      textos com liberdade incondicional, publicados fora de Portugal e das colonias, de temática guerrilheira.
Nasceu em 1942, em Lourenço Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a quem dedicou seu único livro de contos, Nós matamos o cão-tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo Ortográfico).
Absorveu a experiência do Nouveau Roman e a mitologia os anti-heróis em voga nas Américas (Macunaíma de Mário de Andrade).
Conto “Dina” contém o tema do abuso sexual no contexto do trabalho braçal. Outras questões sociais são a exploração e a segregação racial, a distinção de classes e de educação. “A realidade colonial em Moçambique nunca permitiu uma coexistência multirracial”.
                Nós matamos o cão-tinhoso constitui a tematização de um processo iniciático, de aprendizagem, para a personagem-narrador, que encontra a solidariedade afetiva em Isaura, a menina que gosta do cão-tinhoso, e no próprio animal de olhos azuis sem brilho, mas irônicos e impasssíveis, que irritam os outros. O cão-tinhoso representa o sistema colonial decadente, em vias de ser destruído, e o prelúdio de uma nova sociedade purificada, sem discriminação de qualquer tipo. É significativo o fato do cão-tinhoso ter sido abatido numa apoteose de tiros, assim como Moçambique haveria de se purificar pelo fogo das armas.

Ferreira, João. “O traço moçambicano de Luis Bernardo Honwana”. Ed. Benjamin Abdala Junior et al. Les litteratures africaines de langue portugaise (actes du colloque international, 1984). Paris: Gulbenkian, 1985: 367-376.
Lepecki, Maria Lúcia. “Luís Bernardo Honwana: o menino mais seu cão”. Ed. Manuel Ferreira, Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Gulbenkaian, 1987: 45-55.
Mata, Inocência. “O espaço social e o intertexto do imaginário em Nós matamos o cão-tinhoso”.  Pelos trilhos da literatura africana em língua portuguesa. Pontevedra/Braga: Cadernos do Povo, 1992: 83-96.

JOSÉ CRAVEIRINHA

José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo. É considerado o poeta nacional moçambicano. Iniciou a sua carreira como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com diversos orgãos de informação em Moçambique. Teve um papel importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50.
Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa, não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Outra parte permanece inédita.
Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, entre outros.
Tem muitas obras publicadas, sendo considerado um dos grandes poetas de Africa e da Língua Portuguesa.
Depoimento autobiográfico, Janeiro de 1977:
"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José.
Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite."

Publicou as seguintes obras:
Chigubo (1964), Xigubo (1980)
Cantico a un dio de catrame (1966)
Karingana ua karingana (1974)
Cela I (1980)
Maria (1998).

Fases poéticas:
1a. – Neo-realismo em Karingana, a 1a. parte do livro intitulada “fabulário” por causa da alusão à tradição popular, ancestral, tribal de contar fábulas com personagens humanas dentro de dramas sociais e pessoais.

2a. – Negritude em Chigubo e Cantico. Problema do negro com sua raça e cor, da revolta e da denúncia.

3a. – Identidade nacional ou moçambicanidade,  (2a. e 4a. parte) de Karingana, com humor e ironia.

4a. – Libertação, poemas de prisão mas respirando liberdade.
Poema dos mais conhecidos: África.

Leite, Ana Mafalda. A poética de José Craveirinha. Lisboa-Vega: 1991

ALDEIA QUEIMADA

Mas
nas noites
desparasitadas de estrelas
é que as hienas
actuam.

É
de cinzas
o vestígio das palhotas.

                (Babalaze das Hienas, Maputo 1997)



FILHOS DA MISÉRIA

    Pedaços de fundo
    vagabundo
    buscando no lixo
    um mundo perdido
    fugindo de tudo
    sábios esquecidos
    nunca arrependidos

    Vinde
    ó ilustres da miséria
    a nossa hora está chegando
    recompensa merecida
    estamos num canto
    fechados
    vingando o passado
    somos o lixo
    por este ou aquele motivo

    Levantemo-nos Irmãos!
    Derrotemos a Razão
    vão-se desviar de nós
    vão escutar bem alto a nossa voz
    rosto aberto
    de encontro aos mascarados
    somos flores do Inferno
    crescemos num deserto
    açoitados pelo vento
    noite e dia
    enfeitiçados
    pela morte desejados
    somos cinzas
    somos restos
    despojos amordaçados
    corremos mesmo parados
    não fujimos quando somos olhados

    Esquecidos pela esperança
    vagueamos na escuridão
    almas desertas
    abraços de solidão
    entre as pedras adormecemos
    companheiros na ilusão
    somos pássaros da noite
    artistas com vida de cão

    Não temos capas de vergonha
    não disfarçamos o medo
    sentimos o desespero
    não trocamos de lugar
    não nos podem dominar
    já mortos nos hão-de lembrar
    enquanto vivos
    vão-nos evitar

    Está-nos reservado o fel
    sabemos porque
    pagamos o preço da liberdade
    fugindo do tempo
    não temos idade
    amantes sedentos
    conquistamos cidades

    Brincamos como crianças
    num jardim de terceira idade
    fingimos ser apenas uma flor no paraíso
    vingamo-nos da memória
    bolsas vazias perdidas no Infinito

    Vestimo-nos no escuro
    de amor e desespero
    saímos noite adentro
    buscando alimento.


 


A NOSSA CASA


Ambição
minha e da Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.

Sonho realizado.
Casa definitiva já temos.
Lote 42.
Talhão 71883.
Fachada pintada a cal.
Classica arquitectura rectangular.
Uma via asfaltada com um único sentido.
Tudo sito no derradeiro bairrismo
que e' morar no bairro de Lhanguene.

Pelo menos envelhecer já não é problema.
O resto na altura mais propícia
surgirá por si.

Parece que está por pouco.
Na lista onde eu consto
É injusto que tarde
estarmos juntos.   

                 (Maria, “Caminho”, 1998)

MIA COUTO
                Nasceu na cidade da Beira, em 1955. Em 1972 foi a Lourenço Marques estudar medicina. Em 1974 começa a carreira jornalística. Regressa à universidade de Eduardo Mondlane em 1985 para se formar em biologia. Em 1992 foi o responsável pela preservação da Ilha de Inhaca.
Obra:
Raiz de orvalho (1983)
Vozes anoitecidas (1986)
Cronicando (1988)
Cada homem é uma raça (1990)
Terra sonâmbula (1992)
Estórias abensonhadas (1994)
A varanda de Frangipani (1996)
Contos do nascer da terra (1997)
O último voo do Flamingo (2000)

Analisa várias culturas e crenças do homem moçambicano.
Humor incômodo.
Os universos culturais variados são o melting-pot afro-luso-sino-indo-arabe-goês: africano (banto, negro), luso (europeu, branco), chinês (amarelo), indo (indiano), arábico (árabe, muçulmano), goês (indiano, português).
São importantes os dois paratextos a Vozes anoitecidas, o prefácio de José Craveirinha e “Como se fosse um prefácio” de Luís Carlos Patraquim.
Foi criticado por construir uma linguagem própria. Como resposta escreveu “Escrevências desinventosas” em Cronicando.

CRIATIVIDADE TEXTUAL
1.      Criatividade e inventividade da linguagem  para afirmar a diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador. Ex. dois movimentos contraditórios: economia de linguagem com elisão, o outro inflação com duplicações, ex. deve ser talvez. Criatividade sintática: ex. os bois estão aqui, perto comigo, colocação da vírgula desloca o significado.
2.      Realismo em ações e personagens para dar um quadro do social e particular.
3.       Intromissão do imaginário ancestral, do fantástico, que transforma o realismo num imprevisto realismo animista.
4.      O Humor. Há vários tipos:
a.       Humor de intriga, como a história improvável de Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.
b.      Humor de situação/acontecimento, envolvendo apenas um episódio e não uma intriga completa, ex. “A Rosa Caramela”  (Juca aluga seus sapatos para os outros poderem ir ao futebol).
c.       Humor de personagem
d.      Humor de nomes próprios: Ascolino do Perpétuo Socorro, um indo-português; Benjamin Katikeze, um seminarista.
e.       Humor de narração, ex. “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, a beleza de Anabela, a pré-viúva, é anabelíssima.
f.       Humor de enunciação, sintaxe a moda popular
g.  Humor de linguagem,  nível sintático e lexical.

Leite, Ana Mafalda. “A sagração do profano. Reflexões sobre a escrita de três autores moçambicanos: Mia Couto, Rui Knopfli e José Craveirinha. Vértice 2.5 (1993):37-41
Lepecki, Maria Lúcia. “Mia Couto, Vozes anoitecidas, o acordar”. Sobreimpressões. Estudos de literatura portuguesa e africana. Lisboa: Caminho, 1988.175-178.


Entrevista- Mia Couto , 29 de Agosto de 1998
"Moçambique é uma ilha"
O escritor moçambicano Mia Couto veio ao Brasil para lançar seu livro Cada homem é uma raça (Nova Fronteira) e ser integrado à Academia Brasileira de Letras na condição de sócio-correspondente. "No livro aprofundo aquilo que seria a recriação lingüística e poética que está se passando em Moçambique", diz o autor, que vê na cultura brasileira uma das muitas fontes da formação da identidade nacional de seu país. Nesta entrevista, ele fala da criatividade de seu povo, tão mesclado quanto o brasileiro, mas lamenta a falta de publicações em Moçambique, que lança uma média de 15 livros por ano - "é muito pouco" -, e também o isolamento em relação até aos países vizinhos: "Moçambique é uma espécie de ilha".
- Já existe uma literatura nacional em Moçambique ou o senhor é um caso isolado?
Acho que todos os casos são isolados em todas as literaturas no mundo. Existe uma literatura em Moçambique, mas eu tenho dúvida se existe uma literatura moçambicana. A minha idéia de literatura é dinâmica. Não basta que haja uma pessoa escrevendo é preciso que haja pessoas lendo, discutindo, vivendo esta literatura, em bibliotecas, casas de leituras, que se estude, que se critique esta literatura. Isto é quase ausente em Moçambique, que é um país muito jovem, com apenas 23 anos e portanto tem uma literatura que é feita de casos, não falo de mim, mas cada autor é uma espécie de universo literário formando aquilo que seriam as bases de um edifício ainda a ser, que é a literatura moçambicana.
- O senhor acompanha a produção literária de outros países africanos que não são de língua portuguesa? Ou não existe afinidade nenhuma com esses países?
- Muito pouca. Para eu conseguir livros dos autores de países como Angola, São Tomé ou Cabo Verde, onde se fala português, tenho que sair do continente e ir à Portugal. É uma espécie de triangulação que continua a ser feita, o que pode ser uma coisa positiva se esta dinâmica for assumida por todos como uma espécie de mecanismo de troca. Mas não existem as relações horizontais, diretas, entre Moçambique e países africanos de língua portuguesa e em muito maior grau com os outros países. Nós temos por vizinhança a África do Sul, o Zimbábue, a Zâmbia... e não sabemos o que se passa do outro lado, não há traduções, são países de língua inglesa ou de outras línguas. Então, infelizmente há um grande desconhecimento. Moçambique é uma espécie de ilha.
- Então os moçambicanos têm que ir a Portugal para ter contato com uma vida literária?
- Não que os fundamentos da criação estejam lá. Não há uma matriz cultural que esteja em Portugal, mas sim serviços e facilidades que não existem em Moçambique, onde temos duas ou três casas de edição e publicamos talvez 15 livros por ano, que dá uma média de quase um 1 livro por mês. É muito pouco, não dá vazão a esta pujança de criatividade que existe no país. Tem muita gente escrevendo e sugerindo originais que ficam numa fila esperando.
- O senhor disse certa vez que os laços com as raízes africanas no Brasil são "apenas um discurso". O senhor ainda pensa desta forma?
- Não posso falar em nome do Brasil como se conhecesse a realidade brasileira, mas me parece que de ambas as partes falta quase tudo. Nós não conhecemos autores brasileiros e os brasileiros não conhecem os moçambicanos, quer seja no domínio da música, literatura, artes plásticas. É por isso que mantenho aquilo que disse. O conhecimento recíproco de ambos os países ou da própria África e Brasil, é folclore. É um discurso que não tem correspondência com a realidade prática. O que nós conhecemos, por exemplo, de música brasileira é Roberta Miranda, são aqueles duetos de música sertaneja. Não estou qualificando de mau ou bom, mas é muito pouco.
- Os autores portugueses são os que mais influenciam a literatura de Moçambique?
- Não. Na minha geração, na que me antecedeu e nesta mais nova, os brasileiros têm uma grande influência. Imagino que uma das razões é que de fato existe uma outra cultura remanejando a mesma língua. Há uma sugestão dos autores brasileiros de que é possível arredondar a língua portuguesa, ou seja, introduzir complementos de outras culturas nesta língua, que é o processo que está sendo feito em Moçambique, do ponto de vista de toda a dinâmica social do país. É uma língua que está a se pegar com outras culturas, que estão tentando introduzir seus valores.
- O Brasil já tem uma identidade nacional explícita em sua língua. Esta é uma das razões para que os moçambicanos vejam no Brasil um exemplo?
- Seria, porque para se construir um certo mundo tens que ter contribuição de alguém de outro mundo. A construção deste universo que é a identidade moçambicana, que está sendo forjada ainda, nasce por coisas que são próprias, são de raíz, mas nasce também desta intervenção dos de outro mundo. Neste caso está o Brasil, mas poderiam ser os Angolanos, por exemplo, que nos ajudam a criar estas zonas de fronteira, saber o que é próprio e o que é alheio. Não podemos esquecer que hoje as novelas que se vêem em Moçambique são brasileiras e por esta via nos chega uma língua portuguesa já remanejada a partir do Brasil.
- A língua portuguesa é um obstáculo para um autor que queira ter uma projeção internacional?
- Se o escritor quer uma carreira internacional digamos que ele merece esta punição. Não vejo a escrita como uma carreira e vejo mal que alguém faça isso, além de não entender como isso pode ser pensado desta forma. Se alguém concebe a sua própria escrita como um trampolim para uma carreira acho que ele merece este obstáculo. Eu posso fazer carreira de profissões de domínios técnicos, mas na escrita há uma espécie de relação de namoro que escapa a uma carreira. Infelizmente todos estes sistemas que tomaram conta da escrita, como o de produção de livros, de mercado, exigem que o escritor tenha esta idéia do sucesso, que é medido a partir do número de fãs, do número de livros que se vende. Seria hipócrita da minha parte dizer que eu também não ambiciono este reconhecimento, mas estamos falando da escrita. Ela não pode ter esta ambição, é outra coisa.
- Até que ponto Moçambique está presente na sua obra?
- Meus contos, por exemplo, só podem se passar em Moçambique. Eu só posso escrever o que eu escrevo porque nasci e vivi em Moçambique, não imagino que isto seja uma coisa que possa passar de outra maneira senão através das vivências profundas. Agora se me perguntas quanto é de Moçambique que existe ali, eu não sei, porque isto implica em definir o que é moçambicano e o que não é, o que é um debate um pouco complicado. Moçambique é feito de muitas mestiçagens, de muitas trocas, principalmente nas áreas litorâneas onde sempre vivi. Áreas de mosaico cultural, onde há vários povos e existem várias influências culturais. Mas Moçambique é tudo isso, esta zona de troca.
- Cada homem é uma raça, uma coletânea de seus contos, está sendo publicado no Brasil. Qual o lugar do livro na sua obra?
-          Este livro está sendo lançado no Brasil agora, mas foi publicado em 1989. Nele eu aprofundo o que foi uma espécie de tentativa feita no meu primeiro livro de contos que se chamava Vozes anoitecidas, onde eu ensaio aquilo que seria a recriação da lingüística e poética que me foi sugerida a partir da própria poesia. É o que está se passando em Moçambique onde há povos diferentes que estão visitando pela primeira vez a língua portuguesa. É preciso lembrar que em Moçambique 80% das pessoas têm o português como segunda língua, estando em primeiro a sua própria língua africana. Isto faz com que as pessoas, ao se apropriarem do português façam este processo de remodelagem, recriação e reinvenção da língua de maneira que ela fique elástica e plástica para poder expressar o que está dentro da alma das pessoas. Muito do que está neste livro foi um aprofundamento, na medida que fui credenciado por autores que em outros países faziam a mesma coisa, como Lourinho Vieira, em Angola, e Guimarães Rosa, no Brasil.





Escrita desarrumada
OMAR RIBEIRO THOMAZ
e RITA CHAVES especial para a Folha, 18 de Novembro d 1998
Mia Couto, 42, é hoje um dos nomes mais conhecidos e prestigiados da ficção africana de língua portuguesa. Nascido na região central de Moçambique, filho de pais portugueses, tinha 20 anos quando seu país foi libertado, em 1975. Viveu ainda o drama da guerra de agressão movida pelos então regimes racistas da antiga Rodésia (atual Zimbábue) e África do Sul e a guerra civil que, até 1992, devastou Moçambique.
O autor tem livros traduzidos em dez línguas. Dois deles já foram lançados no Brasil pela Nova Fronteira: "Terra Sonâmbula" (romance) e "Histórias Abensonhadas" (contos).
Na quinta-feira, Mia Couto toma posse de uma cadeira do quadro de sócios correspondentes da Academia Brasileira de Letras. De acordo com o escritor, "é uma honra fazer parte desta instituição fundada por Machado de Assis".
Folha - Seus textos refletem muito bem a mesclagem cultural que caracteriza Moçambique. Esse fato porém, surpreende o leitor que, por desconhecer a África, não imagina que, sendo branco, você possa representar tão bem um pedaço do continente. Como explicaria a incorporação daquilo que podemos reconhecer como um universo marcadamente africano?
Mia Couto - A explicação tem que recorrer à política de assimilação portuguesa: ao contrário do esperado, ela funcionou nos dois sentidos. Funcionou no sentido de assimilar um pequeno segmento dos negros (nas zonas urbanas e litorâneas) a uma cultura portuguesa, e, no sentido inverso, filhos de portugueses também foram assimilados.
Essa política foi, assim, também dirigida pela própria vida. Sobretudo nas zonas de fronteira, como era a cidade onde nasci: as fronteiras estavam na minha rua, na porta da minha casa. Eu nasci e cresci na Beira, junto a bairros negros, brinquei com miúdos negros, aprendi a falar muito novo a língua local, escutei histórias. Sou marcado por essa dualidade, casa e rua, que me fez viver dois universos. Em outras cidades moçambicanas, as coisas eram diferentes. Na então Lourenço Marques, agora Maputo, as fronteiras eram muito mais delimitadas, o espaço urbano estava rigidamente hierarquizado.
Folha - Na sua obra, a fronteira entre campo e cidade é especialmente trabalhada: o campo aparece como fonte de equilíbrio, e a cidade, como espaço de degradação. O campo como matriz cultural é um legado da sua experiência?
Couto - A fronteira entre o urbano e o rural, num país como o meu, é sentida dentro das pessoas: não há ninguém completamente urbano ou completamente rural. As pessoas que me marcaram, que me contaram histórias, portavam um imaginário atravessado por valores rurais. E tais valores eram, em momentos de crise como os que vivíamos, convocados. Todo esse percurso da minha vida foi marcado por grandes convulsões, pré-revolução, luta armada, revolução... Sei que isso é um pouco ilusório: a noção de que a verdade e a pureza estão no lado rural é uma idéia romântica, mas, de fato, correspondeu a essa procura de certezas: é preciso ter um chão... como se, nos momentos de crise, as pessoas migrassem internamente para o seu lado rural.
Folha - Foi essa percepção que o levou à biologia, ou o contrário?
Couto - A biologia foi uma opção muito antiga. Dentro da idéia romântica de que o lado rural ... bem, aqui não se pode dizer que é rural no sentido de que a agricultura seria a atividade ordenadora. A maior parte do rural, que eu conhecia desde criança, era muito pouco "ruralizada"; era outra lógica do mundo que eu reconhecia. E a biologia, como opção de viver esse "outro lado do mundo", me fascinava. A biologia dá muito poucas certezas, é uma "indisciplina", mais que uma disciplina, que nos faz perder um pouco o pé, que nos faz procurar outras linguagens.
Folha - E na sua formação como escritor, como atuaram a biologia e o jornalismo?
Couto - Eu comecei no jornalismo um mês antes do 25 de abril em Portugal. Comecei no "Tribuna", que era um jornal com tradição revolucionária. Eu fui jornalista até 1985. Por meio do jornalismo conheci muito desse país. Mas depois senti falta do lado mais fascinante da viagem, que é olhar dentro das pessoas: o jornalismo não dá tempo, não permite essa profundidade no estar com os outros. O jornalismo deu-me uma certa disciplina, ensinou-me o uso da escrita como meio de chegar aos outros. A biologia permite capturar outras linguagens: percebi que existe uma linguagem de comunicação. Tanto a biologia quanto o jornalismo são meios de viajar.
Folha - Quando você, como jornalista, fez essas viagens pelo país, as lembranças da guerra colonial eram ainda muito fortes. No entanto, a guerra colonial, um tema recorrente na literatura africana, não é uma presença marcante na sua literatura. Por quê?
Couto - A guerra colonial era politicamente dirigida, tinha alvo e tinha um caráter épico, "a luta da nossa libertação". A guerra de libertação não nos desarticulou tanto como esta última, que foi tão profunda que nos obrigou a buscas dentro de nós, que nos fazia perguntar continuamente "por quê?". A guerra de libertação tinha um programa político... Eu acho que esta segunda guerra desarticulou mais profundamente este mundo.
Folha - ... por isso que ele aparece sob o signo da incompreensão?
Couto - Hoje, mesmo como jornalista, continuo sem entender, a guerra é qualquer coisa que foge da compreensão... estamos a chamar a paz sem perceber exatamente o que fez aquela guerra. O que é grave, pois não sabemos se o que vivemos agora é paz, ou se devemos chamar o momento atual de "trégua"
Folha - Há, no país, uma disposição das pessoas em não tocar nesse assunto, como se a guerra não tivesse acontecido...
Couto - Esta memória está guardada: com muito cuidado, como se fosse uma caixa de demônios que as pessoas não querem reabrir. Mas a memória está lá... há uma certa sabedoria: como o conflito que esteve na base da guerra não foi completamente resolvido, há um grande receio de que ressentimentos possam dar origens a um conflito, novamente incontrolável e incompreensível. Trata-se de uma espécie de "gestão" do esquecimento, um esquecimento deliberado, administrativo, com uma certa sabedoria de quem sabe que não vale a pena ajustar contas, procurar "verbetes".
Folha - Como você vê a relação entre literatura e memória?
Couto - O que eu faço dentro de mim é uma espécie de reconciliação com a situação e tenho muita dificuldade em ver isso como uma missão, algo assim como "a literatura deve fazer". Nunca me vi como tendo uma missão. Se a literatura pode ajudar em alguma coisa, é tranquilizar... a via da literatura oferece caminhos menos penosos, que nos façam assegurar, "podes recuperar aquele tempo". Nós temos que poder regressar ao passado... eu não creio, mas, se calhar, a literatura pode ajudar.
Folha - Em geral, os escritores de países periféricos se queixam de ter pouco tempo para escrever, uma vez que precisam cumprir outras tarefas. Como você vê isto?
Couto - Se tivesse só que escrever, eu deixaria de escrever. Acho que tenho que estar no meio da confusão, ter todas estas solicitações do cotidiano - o que é complicado- para poder escrever exatamente sobre ele. Mesmo que pudesse viver só da literatura, eu nunca faria isto.
Folha- Qual o lugar da literatura hoje em Moçambique?
Couto - Eu acho que hoje estamos fazendo coisas para amanhã serem retomadas. Hoje são mais urgentes ações de intervenção social, como o jornalismo. Houve um tempo em que o livro praticamente deixou de existir, nós não produzíamos livros, não importávamos livros. O livro passou a ser o instrumento de uma pequenina elite. Essa elite é bem importante, não a desprezo, mas em termos de impacto, daquilo que pode mexer com as pessoas, considero o jornalismo mais importante do que a literatura.
Vejo a literatura como um conjunto de coisas que funcionam: é preciso haver crítica literária, leitores, debate, produção de livros, escolas... Como um conjunto de elementos articulados, isso não existe em Moçambique hoje. Muita gente pensa que, por haver meia dúzia de escritores produzindo obras razoáveis, já temos literatura: eu creio que não. Temos gente trabalhando naquilo que será o chão de um edifício qualquer no futuro.
E o problema não é só aquele mais óbvio: a falta de hábito de leitura, falta de fundos para trazer livros, apoios financeiros. O problema está dentro de nós: não deixamos que a oralidade nos invada, nos terrenos da literatura e do jornalismo. Temos que repensar a nossa própria forma de trabalhar. A estrutura narrativa e a linguagem que procuramos estão muito pouco atravessadas pela oralidade. Não nos deixamos enamorar por ela. Infelizmente há pouca fecundação entre aquilo que são as lógicas da oralidade e a nossa escrita.
Folha - No entanto um dos traços de maior vitalidade em sua obra vem justamente do fato de você incorporar de forma extremamente dinâmica a oralidade...
Couto - Eu sempre abro as portas para que esta oralidade me invada e desarrume a escrita em tudo até o limite. Até o limite que deixe de ser literatura, não me importo que isto aconteça... Inevitável que a invasão do mundo da oralidade ocorra, e vem ocorrendo comigo e com outros escritores de Moçambique.
Folha - Você considera que nessa 'invasão", possivelmente uma base da comunhão entre o narrador e aquelas personagens que poderíamos situar no terreno da exclusão, como os pobres, os velhos, as crianças, estaria a raiz dessa linguagem pontuada por desvios linguísticos?
Couto - Bom, não se trata de algo que tenha construído com alguma intenção: eu não sei fazer de outra maneira. O desvio linguístico com relação à norma portuguesa faz parte deste país, da oralidade, onde eu bebo, onde eu vivo... e como eu tenho um pé em cada mundo, me apercebo destes desvios como qualquer coisa que pode introduzir beleza, que pode funcionar do ponto de vista estético ou, mais importante, pode funcionar como qualquer coisa que interrogue aquilo que é familiar.
Outra função é mostrar o que está a operar neste nível real, onde pessoas estão expressando, e uma história é relatada numa língua, que não é a língua própria das pessoas. Esta fratura tem que ser descoberta, tem que ser revelada, e os desvios linguísticos são sinais que podem mostrar isto. Fico muito triste quando fazem a interpretação só em nível estético do desvio linguístico, quando eu gostaria que se evidenciasse este retrato de dois mundos.
Folha - Esta linguagem "despedaçada" espelha a dificuldade que as pessoas têm de compreender...
Couto - ... a dificuldade que as pessoas têm, no português padrão, "sem desvio", de encontrar a expressão para traduzir aquilo que é o seu mundo. Elas estão lidando com uma língua que é de outro mundo, com outra lógica, e elas têm que despedaçá-la para que a língua possa ser sua.
Folha - Em mais de uma ocasião você relatou a descoberta de Luandino Vieira, que também o leva a Guimarães Rosa, além de citar João Cabral e Drummond. Como entram as literaturas angolana e brasileira em sua obra?
Couto - Devo me referir a outro escritor, o moçambicano José Craveirinha, que, na altura, eu via como um poeta militante, alguém que trabalhava para despertar a consciência nacional. Hoje me dou conta de que, do ponto de vista da estética literária, a sua influência foi grande. Depois foi, naturalmente, o Luandino, o primeiro escritor que me mostrou que, desarrumando a língua, estaremos fazendo uma coisa que é nossa, e é natural que Angola tivesse um processo muito parecido com o nosso. Eu fiquei logo cheio de inveja do Luandino. Depois li uma entrevista na qual ele citava Guimarães Rosa como alguém que tinha operado nele aquilo que ele tinha operado em mim.
Eu já havia publicado o "Vozes Anoitecidas" e consegui, por intermédio de um amigo, o "Primeiras Histórias". Aquilo foi muito importante: completava um processo que havia começado com o Luandino, agora autorizado por alguém que fazia isso num sentido mais político. Todo o resto eu devo à poesia: vim pela poesia, caminhei pela poesia, acho que ainda estou na poesia e leio muito mais poesia do que prosa. Ler no sentido daquilo que mexe comigo.
As outras referências são João Cabral, alguém que tem uma engenharia na linguagem que é inatingível. Em língua portuguesa não creio que haja hoje alguém que saiba manejar tão bem o texto. E agora esta última descoberta que é o Manoel de Barros. Tenho mais dívidas com o Brasil do que com Portugal.
Folha - Isso confirma a existência de um 'sistema ampliado' de que o Brasil é parte importante?
Couto - Sim. Impressionante como gerações de moçambicanos e angolanos foram marcadas por Jorge Amado, Graciliano Ramos, provavelmente de uma maneira muito mais determinante do que a leitura que vinha de Portugal. Há qualquer coisa de "sistêmico" por baixo disso tudo.
Folha - E os outros escritores africanos fora do mundo de língua portuguesa?
Couto - Nós tínhamos e ainda temos poucas trocas com outros escritores africanos. O "Bebedor de Vinho de Palma", do congolês Amos Tutuola, me tocou muito, e, quando fiz o "Terra Sonâmbula", recordei-me desse livro e da capacidade do autor de incorporar o mundo da ruralidade no seu texto.
Folha - Como sujeito de experiências tão diversificadas, como se situa no processo de construção de uma nação moçambicana?
Couto - Eu faço parte do mundo do litoral, uma zona humana do litoral de Moçambique, que, menos "moçambicana" do ponto de vista folclórico, é aquela que está fabricando a "moçambicanidade". Qualquer indivíduo, aparentemente mais "originário" do que eu, aqui em Maputo, ou em outros lugares, vive um mundo muito semelhante ao meu, com um percurso, com preocupações, com referências muito semelhantes. Eu não preciso, assim, apresentar "provas de identidade"."Terra Sonâmbula" é um livro de procura de identidade..., mas está ali a idéia de que a identidade não existe, é uma procura infinita.
Omar Ribeiro Thomaz é editor da revista 'Novos Estudos' e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e Rita Chaves é professora do departamento de letras clássicas e vernáculas da USP. Colaborou Cris Bierrenbach.



"Sou um contrabandista entre dois mundos"
Luísa Jeremias 25 de Maio de 2000
Mia Couto: "Os moçambicanos têm uma ideia de futuro como algo em que não se deve pensar"
-No seu novo livro, O Último Voo do Flamingo, notam-se algumas semelhanças com A Varanda do Frangipani. Existe uma corrente comum nas duas obras?
- Desde que escrevi a Terra Sonâmbula que tenho tido uma preocupação em preservar algumas tradições deste país. Não em termos políticos, mas naquilo que são os conflitos humanos mais profundos, os confrontos entre as expectativas deste país e a realidade que, infelizmente, fere, magoa e não corresponde ao sonho que foi criar uma nação próspera, capaz de lidar com o futuro.
-Aliás, há pouco tempo, por altura das cheias em Moçambique, escreveu um texto publicado no jornal Público onde se denotava grande mágoa, tristeza. Ainda mantém essa mágoa em relação ao que poderia ter sido feito?
- Não é bem uma mágoa. Há um grande cansaço em todos nós. As cheias foram um golpe, mas há aqui uma repetição quase perversa, um esmagar da tentativa de arrancar deste país. Primeiro houve uma guerra com a Rodésia, depois a guerra civil que colocou Moçambique na cauda dos países mais pobres. A Varanda do Frangipani era um livro mais feliz pois ali há alguns sinais de esperança. Este livro é mais desgastado, nota-se mais o cansaço. Apesar destas cheias terem acontecido quando eu já tinha entregado o livro, houve uma coisa que me fez muito medo. Quando estava a acabar o livro ocorreu-me a ideia de um dilúvio, de um buraco imenso que se abria no qual o país desaparecia. E depois vieram as enxurradas e abriram-se, de facto, fendas enormes na cidade de Maputo. Havia quase um sentido premonitório. Não é que eu seja especial... mas em todos nós há uma fragilidade que diz que qualquer coisa que possa acontecer em Moçambique perturba o nosso caminho.
- Vive-se o presente. E como é que se pensa o futuro?
-Aqui não se nomeia o futuro. Ele é um território sagrado, uma zona que não se pode visitar. A mulher que vai parir para o hospital não leva enxoval porque isso pode atrair maus espíritos. Os moçambicanos têm uma ideia de futuro como algo em que não se deve pensar. O presente é comandado por forças pouco visíveis e o passado foi objecto de tanto conflito e tanta mágoa que apetece esquecer. Por isso, temos de inventar um tempo nosso. Mas, se calhar, todos os povos fazem isso.
- Mas falava da alegria e da esperança em contraste com o cansaço. Ainda sente, hoje, depois das cheias, esses cansaço?
- É muito difícil dizer a todo um povo que está tudo adiado mais uma vez e vamos recomeçar tudo do zero. Isso aceita-se uma vez, duas vezes, mas o preço é muito alto.
- Tem filhos?
- Tenho três. Comecei relativamente cedo. Tenho um com 21, outro com 17 e uma com 10. E isso preocupa-me muito.
- Pois é... como é que falou aos seus filhos na altura do desalento, do cansaço?
- Foi difícil. Especialmente com os mais velhos, porque a mais nova já nasceu na viragem dos últimos anos da guerra, Logo a seguir houve uma situação mais aliviada daquele tempo em que pensávamos o que poderíamos trazer para casa naquele dia para dar aos filhos. Esse período foi o dos meus primeiros filhos. Mas a época nem era tão má. Nós acreditávamos. Achávamos que as coisas não poderiam durar muito tempo. Não estou a falar com amargura, com desilusão. Não faço parte do grupo dos desiludidos. Acho é que tudo tem um tempo e eu tive o privilégio de viver a adolescência de um país que tem apenas 25 anos. Agora estamos a aprender que a realidade é diferente e a dinâmica do mundo nos obriga a esperar. O tempo não é aquele que a gente quer.
- Porque é que chamou a este livro O Último Voo do Flamingo?
- Se calhar o título engana. Devia ter uma interrogação. No final do livro, sentados na margem do fim do mundo, eles esperam que o flamingo regresse. O flamingo simboliza a esperança, a possibilidade de haver um país desejado. Na realidade, eles acreditam que o flamingo regressará.
- Como o próprio Mia...?
- Existe a lenda do flamingo que inventou os dois tipos do dia e da noite. Eu preciso de acreditar nessa lenda. Desde que seja bonita, eu acredito nela.
- Sente-se um guardador da tradição oral, um reinventor da língua, um professor?
- Um professor não, porque funciono como um contrabandista entre dois mundos: o mais profundo, de África, ao qual não pertenço, ou melhor, pertenço em certos momentos da minha vida, e o ocidental. Sou moçambicano de primeira geração. Nasci aqui, nunca saí daqui, mas não posso invocar raízes porque os meus pais eram europeus. Mas na infância percebi que havia uma sabedoria e que o lado menos visível do mundo me fascinava. Por outro lado, aquela língua que eu falava não era bastante para trazer esse lado. Isso perseguiu-me de maneira silenciosa. Não o sentia como um drama mas, quando passei da poesia para a prosa, para contar estórias, tive de me recorrer dos cruzamentos e da mestiçagem de que a língua portuguesa está a ser alvo aqui em Moçambique.
- Hoje o seu livro é apresentado em Maputo, para a semana em Luanda e, finalmente, em Junho, em Lisboa. É uma evolução, não é? Uma reunião entre as partes.
- Fico muito contente que isso possa acontecer, que um livro meu possa ser objecto desse intercâmbio. Nós, os do Sul, fizemos algum esforço para que fosse assim. É a primeira vez que um livro é lançado em Moçambique e depois em Angola. Foi um esforço mas queremos que se mantenha assim.


CABO VERDE

PERIODIZAÇÃO
1o. período – INICIAÇÃO
Das origens até 1925, influência do romantismo e do parnasianismo português.
Imprensa foi introduzida em 1842.
José Evaristo d’Almeida, 1856, O escravo (publicado em Portugal)
Jorge Barbosa, 1935, Arquipélago
Revista Claridade é fundada em 1936.

2o. período – HESPERITANO
De 1926 a 1935
Vigora o cabo-verdianismo, caracterizadao como o regionalismo telúrico, com temas como a fome, o vento, a terra seca, próximo ao naturalismo.
O antigo mito hesperitano ou arsinário vem da antiguidade clássica. No Atlântico existiu um imenso continente, a que deram o nome de Continente Hespério. As ilhas de Cabo Verde seriam as ilhas arsináras de Cabo Arsinário, nome antigo do Cabo Verde continental.
Os poetas criaram o mito poético para escaparem da limitação da pátria portuguesa. Simbolicamente também esta pátria ideal está representada pela lenda de Atlântida, do qual resultou o nome atlantismo hesperitano, por oposição ao continentalismo africano e europeu.
Este mito hesperitano está nos dois volumes de Alma arsináriade José Lopes, 1952.
Obras deste período (só poesia):
1926 – Jardim de Hespérides, Pedro Cardoso
1927 – revista Hespérides
1929 – Hesperitanas e jardim das Hespérides, José Lopes
1930 – Hespérides, Pedro Cardoso
1932 – Mornas, cantigas crioulas, Eugenio Tavares
1935 – Arquipélago, Jorge Barbosa

3o. período – CABO-VERDIANIDADE
De 1936 a 1957, influência da revista Claridade. Movimento literário chamado de regionalistas ou claridoso.
Em 1944, nasce a revista Certeza, neo-realista. Surge a palavra cubanidade que significa crioulidade
1941 – Ambiente, Jorge Barbosa
1945 – Poemas de longe, Manuel Lopes
1947 – Chiquinho, romance de Baltasar Lopes
1956 – Caderno de um ilhéu, Jorge Barbosa
1956 – Chuva braba, romance de Manuel Lopes
1956 – Pródiga e 1957 – O enterro de nha Candinha Sena, Antonio Aurelio Gonçalves

4o. período – CABO-VERDIANITUDE
De 1958 a 1965, com o Suplemento Cultural. Negritude.
1959 – O galo que cantou na baía, Manuel Lopes (contos)
1960 – Os flagelados do vento leste, Manuel Lopes (romance)
1960 – Toda a gente fala; sim, senhor, Onésimo Silveira (poemas e contos)
1960 – Poemas caboverdianos, Teobaldo Virgínio
1962 – Hora grande, Onésimo Silveira
1962 – Famintos, Luís Romano (romance)
1962 – Caminhada, Ovídio Martins
Em 1962, é lançado o sumplemento SÈLÓ, do Notícias de Cabo Verde.
Há uma revalorização cultural com cabo-verdianidade, cabo-verdianitude e crioulidade.
1962 – Clima, Luís Romano
1964 – Noti, Kaoberdiano Dambará
1965 – Doze poemas de circunstância, Gabriel Mariano.

5o. período – UNIVERSALISMO  
De 1966 a 1982, em 1966 publica-se Exemplo geral, João Vário.
1972 – Contra mar e vento, Teixeira de Sousa (contos)
1973 – Negrume, Luís Romano
1975 – Exemplo dúbio, João Vário
1975 – O primeiro livro de Notcha, Timóteo Tio Tiofe
1976 – Vida e morte de Cabafume, Gabriel Mariano (contos)
1977-84 – revista Raízes
1978 – Ilhéu de contenda, Teixeira de Sousa (romance)
1981 – Poemas, Armenio Vieira
1982 – Ilhéu dos pássaros, Orlanda Amarílis (contos)

6o. período – CONSOLIDAÇÃO
De 1983 à atualidade. Começa com uma fase de contestação.
Revista Ponto & Vírgulla (1983-87), dirigida por Germano de Almeida e Leão Lopes, conteúdo arrojado e qualidade gráfica.