Diagnostico do desenvolvimento socio-afectivo e psico-motor da criança nos primeiros anos de vida
Diagnostico
do desenvolvimento socio-afectivo e psico-motor da criança nos primeiros anos
de vida
Apresentar
a teoria de Piaget num texto introdutório é tarefa especialmente difícil. A
complexidade desta abordagem teórica, directamente relacionada à riqueza da
produção piagetiana e à natureza do temário abordado pelas pesquisas e
reflexões desse autor, apontam a necessidade de explicar ao leitor alguns
aspectos mais gerais de suas ideias, remetendo-o posteriormente aos textos
originais. Ao lado de Freud, o trabalho de Piaget representa hoje o que de mais
importante se produziu no século XX no campo da Psicologia do desenvolvimento
infantil, embora, a rigor, Piaget não possa ser qualificado como psicólogo do
desenvolvimento.
Neste texto dar-se-á ênfase especial à
descrição e caracterização dos estágios no desenvolvimento intelectual, uma vez
que a sua identificação no comportamento da criança pode orientar o educador no
planejamento e oferecimento de estímulos ambientais a esse desenvolvimento. Um
primeiro aspecto geral que merece ser explicitado refere-se à concepção de
conhecimento proposta por Piaget. Um dos pontos fundamentais desta concepção
diz respeite ao sentido atribuído por Piaget à palavra “conhecer”: organizar,
estruturar e explicar o mundo em que vivemos — incluindo o meio físico, as
ideias, os valores, as relações humanas, a cultura de um modo mais amplo — a
partir do vivido ou experienciado. Se, para Piaget, o conhecimento se produz a
partir da ação do sujeito sobre o meio em que vive, só se constitui com a
estruturação da experiência que lhe permite atribuir significação.
A
significação é o resultado da possibilidade de assimilação. Conhecer significa,
pois, inserir o objeto num sistema de relações, a partir de ações executadas
sobre esse objeto. 2psicologia do desenvolvimento A pergunta fundamental, que
Piaget formulou pela primeira vez aos 15 anos de idade (em 1911), orientou suas
pesquisas ao longo de toda a sua vida: como o ser vivo consegue adaptar-se ao
meio ambiente? A partir dessa pergunta liga, rapidamente, o problema da
adaptação biológica ao problema do conhecimento, chegando a duas de suas ideia
centrais.
A
primeira é que a adaptação biológica de todo organismo vivo, assim como toda
conquista intelectual, se faz através da assimilação de um dado exterior, no
sentido de transforma- ção. O conhecimento não é uma cópia, mas uma integração
em uma estrutura mental pré- existente que, ao mesmo tempo, vai ser mais ou
menos modificada por esta integração. A segunda ideia central é que os fatores
normativos do pensamento correspondem às relações, às necessidades de
equilíbrio que se observam no plano biológico. Para Piaget o conhecimento é
fruto das trocas entre o organismo e o meio. Essas trocas são responsáveis pela
construção da própria capacidade de conhecer. Produzem estruturas mentais que,
sendo orgânicas não estão, entretanto, programadas no genoma, mas aparecem como
resultado das solicitações do meio ao organismo. A alteração organismo-meio
ocorre através do que Piaget chama processo de adaptação, com seus dois
aspectos complementares: a assimilação e a acomodação. O conceito de adaptação
surge, inicialmente, na obra de Piaget com o sentido que lhe é dado na Biologia
clássica, lembrando um fluxo irreversível; vai se explicitando em momentos
posteriores de sua obra, quando adquire o sentido de equilíbrio progressivo
(equilíbrio majorante); finalmente, adquire o sentido de um processo dialético
através do qual o indivíduo desenvolve as suas funções mentais, ao qual
denomina “abstração reflexiva”. Esta adaptação do ser humano ao meio ambiente
se realiza através da acção, elemento central da teoria piagetiana, indicando o
centro do processo que transforma a relação com o objecto em conhecimento.
Ao
tentar se adaptar ao meio ambiente o indivíduo utiliza dois processos
fundamentais que compõem o sistema cognitivo a nível de seu funcionamento: a
assimilação ou a incorporação de um elemento exterior (objeto, acontecimento
etc), num esquema sensório-motor ou conceituai do sujeito e a acomodação, quer
dizer, a necessidade em que a assimilação se encontra de considerar as
particularidades próprias dos elementos a assimilar. No sistema cognitivo do
sujeito esses processos estão normalmente em equilíbrio. A perturbação desse
equilíbrio gera um conflito ou uma lacuna diante do objeto ou evento, o que
dispara mecanismos de equilibração.
A partir de tais perturbações produzem-se
construções compensatórias que buscam novo equilíbrio, melhor do que o
anterior. Nas sucessivas desequilibrações e reequilibrações o conhecimento
exógeno é complementado pelas construções endógenas, que são incorporadas ao
sistema cognitivo do sujeito. Nesse processo, que Piaget denomina processo de
equilibração, se constroem as estruturas cognitivas que o sujeito emprega na compreensão
dos objetos, fatos e acontecimentos, levando ao progresso na construção do
conhecimento.
Os Estádios No Desenvolvimento Cognitivo
A capacidade de organizar e estruturar a
experiência vivida vem da própria atividade das estruturas mentais que funcionam
seriando, ordenando, classificando, estabelecendo relações. Há um isomorfismo
entre a forma pela qual a criança organiza a sua experiência e a lógica de
classes e relações. Os diferentes níveis de expressão dessa lógica são o
resultado do funcionamento das estruturas mentais em diferentes momentos de sua
construção.
Tal funcionamento, explicitado na atividade
das estruturas dinâmicas, produz, no nível estrutural, o que Piaget denomina os
“estádios” de desenvolvimento cognitivo. Os estádios expressam as etapas pelas
quais se dá a construção do mundo pela criança. Para que se possa falar em
estádio nos termos propostos por Piaget, é necessário, em primeiro lugar, que a
ordem das aquisições seja constante. Trata-se de uma ordem sucessiva e não
apenas cronológica, que depende da experiência do sujeito e não apenas de sua
maturação ou do meio social. Além desse critério, Piaget propõe outras
exigências básicas para caracterizar estádios no desenvolvimento cognitivo:
1o )
todo estágio tem de ser integrador, ou seja, as estruturas elaboradas em
determina- todo estágio tem de ser integrador, ou seja, as estruturas
elaboradas em determinada etapa devem tornar-se parte integrante das estruturas
das etapas seguintes;
2o )
um estádio corresponde a uma estrutura de conjunto que se caracteriza por suas
leis de totalidade e não pela justaposição de propriedades estranhas umas às
outras;
3o ) um estádio compreende, ao mesmo tempo, um
nível de preparação e um nível de acabamento;
4o )
é preciso distinguir, em uma sequência de estádios, o processo de formação ou
génese e as formas de equilíbrio final.
Com estes critérios Piaget
distinguiu quatro grandes períodos no desenvolvimento das estruturas
cognitivas, intimamente relacionados ao desenvolvimento da afetividade e da
socialização da criança: estádio da inteligência sensório-motora (até,
aproximadamente, os 2 anos); estádio da inteligência simbólica ou
pré-operatória (2 a 7-8 anos); estádio da inteligência operatória concreta (7-8
a 11-12 anos); e estádio da inteligência formal (a partir, aproximadamente, dos
12 anos).
O
desenvolvimento por estádios sucessivos realiza em cada um desses estádios um
“patamar de equilíbrio” constituindo-se em “degraus” em direção ao equilíbrio
final: assim que o equilíbrio é atingido num ponto a estrutura é integrada em
novo equilíbrio em formação. Os diversos estádios ou etapas surgem, portanto,
como consequência das sucessivas equilibrações de um processo que se desenvolve
no decorrer do desenvolvimento. Seguem o itinerário equivalente a um “creodo”
(sequência necessária de desenvolvimento) e supõem 4psicologia do
desenvolvimento uma duração adequada para a construção das competências
cognitivas que os caracterizam, sendo que cada estádio resulta necessariamente
do anterior e prepara a integração do seguinte. O “creodo” é, então, o caminho
a ser percorrido na construção da inteligência humana, que vai do período
sensório-motor (0-2 anos) aos Períodos simbólico ou pré- operatório (2-7 anos),
lógico-concreto (7-12 anos) e formal (12 anos em diante). É preciso esclarecer
que os estádios indicam as possibilidades do ser humano (sujeito epistêmico),
não dizendo respeito aos indivíduos (sujeitos psicológicos) em si mesmos. A
concretização ou realização dessas possibilidades dependerá do meio no qual a
criança se desenvolve, uma vez que a capacidade de conhecer é resultado das
trocas do organismo com o meio. Da mesma forma, essa capacidade de conhecer
depende, também, da organização afetiva, uma vez que a afetividade e a cognição
estão sempre presentes em toda a adaptação humana.
O Estádio da Inteligência
Sensório-Motora (0 a 2 anos)
O
período sensório-motor é de fundamental importância para o desenvolvimento
cognitivo. Suas realizações formam a base de todos os processos cognitivos do
indivíduo. Os esquemas sensório-motores são as primeiras formas de pensamento e
expressão; são padrões de comportamento que podem ser aplicados a diferentes
objetos em diferentes contextos. A evolução cognitiva da criança nesse período
pode ser descrita em seis subestádios nos quais estabelecem-se as bases para a
construção das principais categorias do conhecimento que possibilitam ao ser
humano organizar a sua experiência na construção do mundo: objeto, espaço,
causalidade e tempo.
Subestádio I: O Exercício dos Reflexos
(até 1 mês)
Os primeiros esquemas do recém-nascido são
esquemas reflexos: ações espontâneas que surgem automaticamente em presença de
certos estímulos. Nas primeiras vezes que se manifestam os esquemas reflexos
apresentam uma organização quase idêntica. A estimulação de qualquer ponto de
zona bucal do bebé, por exemplo, desencadeia imediatamente o esquema reflexo de
sucção; uma estimulação da palma da mão provoca, automaticamente, a reação
reflexa de preensão. Os esquemas reflexos caracterizam a atividade cognitiva da
criança no seu primeiro mês de vida.
Subestádio Ii: As Primeiras Adaptações
Adquiridas e a Reação Circular Primária (1 mês a 4 meses e meio)
No
transcorrer dos intercâmbios da criança com o meio ambiente logo os esquemas
reflexos vão mostrar certos desajustes, exigindo transformações. O que provoca
tais desajustes são as resistências encontradas na assimilação dos objetos ao
conjunto de ações. Estes desajustes vão ser compensados por uma acomodação do
esquema. Correspondem a uma perda momentânea de equilíbrio dos
esquemas-reflexos. Os reajustes que possibilitam o êxito consistem na obtenção
momentânea de um novo equilíbrio.
É
através desse jogo de assimilação e acomodação, de desequilíbrios e
reequilíbrios, que os esquemas reflexos passam por um processo de diferenciação
possibilitando a construção de novos esquemas adaptados a novas classes de
situações e objetos que vão caracterizar o início do segundo subestádio. Estes
novos esquemas já não são apenas esquemas reflexos, uma vez que resultam de uma
construção. São os esquemas de ação: novas organizações de ações que se
conservam através das situações e objetos aos quais se aplicam. Simultaneamente
a esse processo de diferenciação dos esquemas reflexos iniciais há, também, um
processo de coordenação dos esquemas disponíveis que dá origem, igualmente, a
novos esquemas.
A coordenação entre os esquemas de olhar e
pegar é um exemplo de um novo esquema desse tipo que será seguido por muitos
outros de complexidade crescente nas etapas seguintes: apanhar o que vê e levar
à boca, apanhar o que vê para esfregar na grade do berço e explorar o ruído que
isso provoca etc. No decurso do segundo mês surgem duas novas condutas típicas
do início desse período: a profusão da língua e a sucção do polegar, que
caracterizam a reacção circular primária na qual o resultado interessante
descoberto por acaso é conservado por repetição. A reacção circular primária
refere-se a procedimentos aplicados ao próprio corpo da criança. Esta é a fase
em que as acções ou operações de deslocamento da criança são realizadas
mediante “grupos práticos”, através da coordenação motora, sem dar origem ainda
à representação mental. A acção é que cria o espaço, a criança não tem
consciência dele. Os espaços criados pela cação — oral, visual, tátil,
postural, auditivo etc. — ainda não são coordenados entre si, portanto, são
heterogéneos. A criança parece considerar o mundo como um conjunto de quadros
que aparecem e desaparecem. O tempo é simples duração sentida no decorrer da acção
própria. Neste subestádio das primeiras adaptações adquiridas as condutas
observadas ainda não são inteligentes no seu verdadeiro sentido. Elas fazem a
transição entre o orgânico e o intelectual, preparando a inteligência.
Subestádio Iii: As Adaptações Sensório-Motoras
Intencionais e as Reações Circulares Secundárias (4 meses e meio a 8-9 meses)
A
terceira etapa desse período caracteriza-se pelo surgimento das reacções
circulares secundárias voltadas para os objectos. Pode-se defini-las como
movimentos centralizados sobre um resultado produzido no ambiente exterior, com
o único propósito de manter esse resultado. Após ter aplicado as reacções
circulares sobre o corpo próprio, a criança vai, pouco a pouco, utilizando esse
procedimento sobre os objectos exteriores. Vai, então, elaborando o que Piaget
chama de reacções circulares secundárias, que marcam a passagem entre a actividade
reflexa e a actividade propriamente inteligente. Pela primeira vez aparece um
elemento de previsão de acontecimentos.
A
reacção circular só começa quando um efeito casual, provocado pela acção da
criança, é percebido como resultado desta acção. Por isso, se até então tudo
era para ser visto, escutado, tateado, agora tudo é para ser sacudido,
balançado, esfregado etc, conforme as diversas diferenciações dos esquemas
manuais e visuais. Os esquemas secundários são o primeiro esboço do que serão
as classes ou os conceitos da inteligência refletida do jovem adulto. Apreender
um objecto como sendo para sacudir, esfregar etc, é o equivalente funcional da
operação de classificação do pensamento conceptual. Paralelamente a esta
construção, constitui-se a conservação do objecto permanente. Nesse período as
crianças têm as primeiras antecipações de movimentos relacionados à trajectória
de um objecto e já conseguem distingui-lo quando semi-oculto. Mas o objecto
existe apenas em ligação com a acção própria. O mundo é, portanto, um mundo de
quadros cuja permanência é mais longa, mundo que a criança procura fazer durar
mais longamente, mas que se desvanece como antes. No terreno espacial a criança
mostra-se capaz de perceber, de modo prático, um conjunto de relações
centralizadas em si própria (grupos subjetivos).
A visão e a preensão já estão coordenadas.
Começa a formar-se a noção de sucessão e há o início de consciência de “antes”
e o “depois” embora, para a criança dessa fase, o tempo das coisas seja apenas
a aplicação a estas do tempo próprio: o “antes” e o “depois” são relativos à
sua própria acção. Há, também, alguma apreciação da causalidade, em ligação com
as acções imediatas da criança, na procura das causas de acontecimentos e
percepções inesperados. A causalidade é experimentada como resultado da própria
acção.