ADOLESCÊNCIA E CONTEMPORANEIDADE


ADOLESCÊNCIA E CONTEMPORANEIDADE
Alfredo Jerusalinsky
O que é adolescência? Definir adolescência por uma coordenada temporal é um modo de
simplificar as coisas que não respondem àquilo que normalmente conceitualizamos como adolescência.
Preferiria partir da idéia de que a adolescência é um estado de espírito, independentemente da idade. Se
é atribuível uma posição adolescente com autonomia da idade, situar-nos na idade para definir
adolescência não parece ser um procedimento muito sensato.
O que quer dizer um estado de espírito adolescente? Um estado juvenil, talvez, indeciso. O que
caracteriza o que chamamos adolescência, independentemente da idade, é a indecisão. Não uma
indecisão qualquer, mas uma indecisão que se encontra na beira de se decidir. É um estado de indecisão
de iminente decisão, não é um estado pacífico, é um estado de instabilidade visível, perceptível, não é um
estado de status quo, não é um estado de tranqüilidade e equilíbrio; pelo contrário, é um estado
turbulento, pela iminência da decisão.
Evidentemente, há conotações cronológicas que situam esse estado num momento típico da vida,
embora o parâmetro não seja exatamente o mesmo para as diferentes culturas. Porém, em qualquer
cultura, há uma passagem entre a infância e a vida adulta que atravessa esse estado de indecisão que
convoca a um iminente desfecho. Essa passagem vai do estado de proteção, que caracteriza a infância, ao
estado de exposição, que caracteriza o adulto. O adulto é um ser exposto, porque cada um de seus atos e
de suas palavras tem conseqüências. Na vida adulta, não dá para “fazer de conta”, enquanto que a
infância caracteriza-se por “fazer de conta”. Entre esse “fazer de conta” pleno que caracteriza a infância e
essa impossibilidade de “fazer de conta” própria do adulto, há uma passagem que se situa
cronologicamente de modo variável nas diferentes culturas.
A criança deixa de estar submetida a uma lei ad hoc, especificamente perfilada para ela. Entre
essa posição de particularidade da lei, que caracteriza a infância, e essa posição de estar exposto à lei de
todos, que caracteriza a vida adulta, há um momento de exceção chamado adolescência, que tem como
pivô a iminência de um desfecho do estado de indecisão, pela passagem de uma vida protegida a uma
vida exposta.
A palavra adolescência fala de adoecer, fala de um sofrimento que é próprio da perda de
proteção, inevitável na medida em que esse “fazer de conta” deixa de existir e passa a ter conseqüências,
em que a passagem da proteção à exposição determina um sofrimento.
Mas o que temos que nos perguntar é se, além dessa diferença, além da variabilidade dessa fase
em termos cronológicos, diferente em cada cultura, podemos encontrar alguma particularidade que
caracterize os grupos que passam por essa fase em consonância com as transformações sociais e
culturais que se dão em cada época. Dito de outro modo: será que o que varia é somente a cronologia de
situação de acordo com a circunstância cultural e civilizatória, ou muda algo do conteúdo mesmo,
daquelas representações em que o sujeito adolescente se reconhece? O problema de todo sujeito, sem
exceção – a única exceção que podemos fazer é no campo da patologia grave, ou gravíssima, como na
demência, nas esquizofrenias mais graves ou em casos de autismo -, é como se representar no discurso
social, ou seja, o que valem seus atos e o que valem as suas palavras no discurso social. O que valem
quer dizer o que simbolizam.
O filhote humano se caracteriza entre todas as espécies por receber absolutamente tudo, até o
mundo em que vive, que é completamente artificial, diferentemente das outras espécies, que nascem
num mundo já feito, não são elas que têm que fabricar. Os tigres não fabricam o seu mundo, eles nascem
na floresta, e a floresta está feita. Nós fabricamos nosso mundo. Mas no que diz respeito ao nosso corpo,
se bem moldamos ele de acordo com um sistema de representações – o que permite que ele entre nesse
mundo não natural em que moramos -, mal conseguimos driblar o modo em que ele já vem feito. Ele nos
cobra, sempre, o alto preço de sua presença invasora em nossa ordem simbólica.
Para os adolescentes, é muito trabalhoso esquecer o corpo, precisamente porque, se, por um
lado, o filhote humano recebe tudo do ouro, por outro lado, ele não pode senão carregar seu corpo no
plano simbólico que lhe é atribuído, e ele deve carregar esse fardo na direção que a cultura lhe impõe, e,
quando o corpo começa a sofrer as transformações da puberdade, demandando urgências necessárias,
isso o perturba e faz com que esse fato adquira um peso fenomenal. Esse peso, que não se conjuga mais
de um modo pacífico, como ocorria durante a infância, vem a violentar a película simbólica que amortecia
a posição desse corpo na relação com o conjunto social. A película simbólica, que constitui o
amortecimento, será colocada à prova, como consistência, precisamente nessa passagem. O quanto essa
película poderá vir a amortecer essa urgência dependerá da consistência com que ele foi trançada durante
a infância. Além de depender da consistência que a infância outorgou a esse tecido, também decide,
sobre seu valor de amortecedor e sua função de amortecedor, o estatuto que a cultura mesma outorga a
esse tecido, o que vale dizer em que medida a cultura acredita nos próprios valores simbólicos que
transmitiu.
Na adolescência, se atravessa uma fase particularmente sensível para denotar as falhas que,
tanto do lado da cultura como do lado da infância, se teceram nessa película simbólica, que se tornaparticularmente sensível e notadamente exposta a dois fatores que decidirão sobre sua consistência; por
um lado, a história infantil, a história que precede, durante a qual esse tecido foi amassado e composto, a
infância; por outro, o modo com o qual a cultura trata os valores simbólicos que constituem essa película.
Como a cultura valoriza e organiza esse tecido simbólico que amortece ou não a presença de um
corpo residual que demanda urgências de resolução com a cultura, nas suas relações com ela mesma?
Um filho fala para o pai ou a mãe: “Por que não me deixas ir à praça hoje às 7h da noite? A mãe do
vizinho deixa!”. A mãe ou o pai poderão responder: “O que faz o vizinho não me interessa; nesta casa e
contigo, a lei é assim”. Quer dizer, é uma lei específica, a criança não pode ampara-se numa lei de todos
para dizer: “Eu tenho direito”. A princípio, a lei é ad hoc. Mais ainda, na inversa:”Meu filho, fizeste tal
coisa com a vizinha e isso não está bem, mas não importa, vou te perdoar”. Quer dizer, se castiga ou não
castiga é uma decisão ad hoc e vai depender do contexto, da atribuição de significação, do tecido
simbólico particular dos pais.
Cada família situa a fronteira entre público, privado e íntimo numa posição diferente, e o
atravessamento dessas fronteiras pode ter valor transgressivo ou não, de acordo com a organização
simbólica particular, e, mais ainda, a preferência ou deferência amorosa que tenha com algum filho. É
muito comum que uma família considere que as brincadeiras sexuais de um homenzinho púbere com a
empregada sejam algo completamente normal e, em contrapartida, que as brincadeiras sexuais da
menina púbere com o motorista não seja nada normal. Dependendo da posição sexual, a lei na infância
não é igual para todos. Não é o que acontece, a princípio, depois de atravessada a adolescência. Por isso
dissemos que, na infância, há uma lei ad hoc.
Quem trabalha com a questão dos direitos dos menores sabe o quanto é difícil se situar nessas
circunstâncias, devem tropeçar com enormes dificuldades, pois a tentativa de padronizar a lei num
sistema jurídico único esbarra nesse caráter ad hoc, próprio da lei simbólica na infância. É uma temática
complexa que merece um estudo muito mais cuidadoso do que o que até aqui se tem registrado. Requer
um estudo nestes termos: o que é exceção? O que é essa lei ad hoc? Como e até que ponto é conjugável
com um padrão jurídico?
Dizíamos que a película simbólica se torna particularmente sensível nesse momento de passagem
(adolescência), caracterizado por uma indecisão. A angústia do adolescente consiste em sentir, sem sabê-
lo, que sua vida definitiva está se decidindo a cada instante. E quando não consegue decidir, a angústia
se torna insuportável. Poderíamos dizer que o estado normal do adolescente é o da neurose de angústia,
que consiste precisamente no saber inconsciente – portanto, num saber que não se sabe – de que sua
vida está se decidindo a cada instante.
Como se conjuga na situação contemporânea essa controvérsia, essa contradição, entre estado
provisório e definição peremptória, essa dialética nada pacífica entre espera e precipitação? A sociedade
contemporânea tem algumas características, as quais podemos, de modo genérico, qualificar de
debilitamento do laço social. Um produto da evolução própria da modernidade, na qual passa a ocupar o
centro da cena social, não o semelhante, mas o objeto. Esse objeto que, de acordo com o que a ciência
sempre veio nos prometer, seria o objeto de nossa satisfação total. A ciência mesma se encarregou de
nos poupar o trabalho de fabricá-lo pessoalmente e até mesmo de compreender sua mecânica. Hoje em
dia, os objetos chegam às nossas mãos já feitos, com um manual de instruções do qual não se desprende
a essência de seu funcionamento, senão meramente as operações de superfície necessárias para fazê-lo
funcionar. O menosprezo pela nossa inteligência é tamanho que os manuais começam explicando que, se
não for ligado na tomada, o objeto não funcionará. Esse é o objeto que ocupa o centro da cena social e
que, além do mais, é oferecido com a promessa de que sua posse assegura a felicidade total. Não é de
estranhar, então, que a maior parte dos seres humanos, convocados a organizar a sua vida em torno
desse objeto, esteja disposta praticamente a qualquer coisa para obtê-lo e que, quando aparece qualquer
simplificação dele, como, por exemplo, a droga, que é uma espécie de representação real e sintética – no
sentido próprio – desse objeto, com extrema facilidade, ele passe a ocupar o centro da cena social.
A toxicomania não está induzida fundamentalmente nem determinada pelos negócios que ao
redor do tráfico de drogas se realizam. Esses negócios não seriam possíveis se a posição do sujeito que a
cultura fabrica não fosse convocada a fazer desse tipo de objeto o centro de sua vida. Se esse tipo de
objeto não ocupasse o centro da vida social – refiro-me a essa representação genérica de objeto própria
da modernidade -, a droga não teria eficácia e os traficantes não fariam fortuna.
O fato de um objeto de tal natureza ocupar o centro da cena social faz com que o destino fique
ligado à posse desse objeto e que essa posse se constitua no objetivo central da vida de quase todo
mundo. Há pessoas a esmo que hipotecam as suas vidas para comprar um carro ou eletrodomésticos. O
sujeito é tomado por um destino já fixado. Se, na Idade Média, acreditava-se que o destino estava
traçado pela divindade e pelo além, e que a vida de cada um já estava por obra da palavra divina, hoje
em dia, nosso destino está traçado pela relação com esse objeto.
Pode-se dizer, então, que nosso destino está escrito no consumo. O modo de consumirmos decide
o nosso destino. Parece banal, mas é assim. Como algo tão importante como nossa vida pode estar ligado
a tal banalidade? Mas é isso que se percebe na vida cotidiana: a banalização das vidas como se banaliza a
morte.A banalização da vida quer dizer o desaparecimento da cultura épica, a perda do valor trágico das
coisas, uma espécie de normalização de tudo, um certo estado de indiferença. Morrer tem se
transformado quase num dado técnico. O valor que têm os atos da vida para cada um tem se banalizado.
O exercício da sexualidade, por exemplo, tem pouca diferença como ir a uma academia de ginástica. Pelo
menos, na representação que se tem da sexualidade, tem diminuído o que se chama de recalque. As
barreiras entre íntimo, público e privado – e faço essa distinção porque me parece não ser suficiente a
distinção entre o público e o privado, há uma esfera do íntimo, aquilo que não contamos nem aos
psicanalistas – têm se debilitado, essa distinção tem se enfraquecido. Evidentemente, a sexualidade hoje
faz parte da vida pública, e a exposição do íntimo facilita a separação entre a vida sexual e a vida
amorosa, já que a sexualidade se mostra totalmente escancarada nos seus detalhes mais reais, sem
pudor algum.
Estou apenas fazendo um registro de como são as coisas hoje, pois se alguma coisa precisa ser
mudada, devemos saber como acontece. Se, pessoalmente, gosto disso ou não é outra questão. Essa
debilitação do recalque, que caracteriza a sociedade atual, ao invés de aproximar as pessoas,
curiosamente, tem o efeito de separá-las, tanto no campo amoroso como no campo da vida cotidiana. Um
dos mais graves problemas psicopatológicos das grandes urbes é a solidão, que não figura na nosografia
psiquiátrica, mas, seguramente, figura no sofrimento de todo mundo. A solidão se vê favorecida porque,
na perseguição do objeto do qual falávamos, na medida em que a posse desse objeto se torna o norte de
toda a existência, é necessário deslocar-se nas direções e aos lugares onde esse objeto se torne mais
acessível, desprezando, então, os laços sociais que podem ficar para trás nessa empreitada.
É assim que nasce o nomadismo próprio da sociedade atual. É difícil encontrar uma população
estável numa cidade, especialmente entre os que têm menos de 40 anos. Os que têm menos de 35 a 40
anos geralmente são oriundos de outras cidades, não nasceram ali a sua família de origem ficou para trás.
Esse nomadismo é de uma violência que desconhece qualquer tipo de laço social que se impõe. Isso
aparece prefigurado na adolescência de uma maneira muito particular. Qual é o lugar privilegiado de
reunião dos adolescentes nas cidades, não só no Brasil? Os postos de gasolina, um lugar de passagem,
que, inclusive, é um lugar incômodo, inóspito, cheira mal. Eles estão na beira do caro como que dispostos
a sair a qualquer instante, rumo ao nada. É interessante, porque esses lugares são preferidos em
comparação com outros mais confortáveis. O café de passagem quase desapareceu. Se não desapareceu
é porque ainda a geração anterior, que hoje tem entre 40 e 50 anos, gosta de tomar café sentadinha num
lugar com calefação. Isso é simbólico: os adolescentes incorporaram o nomadismo por meio de uma
simbolização no tipo e lugar escolhido para se reunirem e para ficarem.
Outra característica da sociedade atual é que, na medida em que se dissolvem os laços
familiares, geram-se agrupamentos ad hoc, que precisam de algum tipo de organização para funcionar e
uma certa mitologia inventada para preencher a falta de significação que uma relação muito nova padece.
É o que se chama de tribalismo, outra característica contemporânea que foi rapidamente adotada pelos
adolescentes, que, já à época pós-hippieismo, quando se dilui o movimento contra-cultural dos hippies,
começa a ser substituído por essa cultura tribal, as gangues. Um dos primeiros agrupamentos tribais que
surgiu após os hippies foram os Hell’s Angels, da Califórnia. Os Hell”s Angels, os anjos do demônio –
ainda existem remanescentes dessa tribo -, são motoqueiros, vestidos de roupas de couro com toque
gótico, que se caracterizam por besuntar seus casacos e calças de couro com o cocô que eles mesmos
fazem, com a finalidade de, ao chegarem a algum lugar, como conseqüência de seu fedor, ficarem
sozinhos. Eles demarcam a fronteira de seu território como marcam os animais, com fezes e urina. Não
que tenham se transformado em animais. Eles zombam da humanidade, zombam da fragilização da
película simbólica que a sociedade pratica. Poder-se-ia pensar que é, inconscientemente, o movimento de
proteção deles diante dessa dissolução. Algo como: “Já que lá fora os laços sociais são tão frágeis, vamos
estabelecer uma fronteira real que nos dê consistência aqui dentro”.
Outra característica da sociedade contemporânea é o fatalismo: na medida em que o espírito
trágico desaparece a morte se banaliza e a vida também, o pior vira imediato e inevitável. Nenhum drama
para separar a vida da tragédia. Ela não é mais uma sina do espírito, ela passa a ser um fato presente e
real. O grave disso é que quando se pensa desse modo, o magnetismo do fatal se torna incoercível, quer
dizer, vive-se uma espécie de vertigem que, paradoxalmente, atrai o sujeito em direção a esse vazio.
Jean Baudrillard tem um texto que se chama As Estratégias Fatais, no qual advertia sobre essa tendência
há mais de 20 anos. Algumas dessas características, como o tribalismo e o nomadismo, são rigorosas e
ricamente analisadas por Michel Maffesoli num texto que se chama O Instante Eterno, ainda sem tradução
para o português; há versões em espanhol e francês. Também no livro intitulado A Religião dos Saberes,
de Edgar Morin, podem-se encontrar elementos interessantes a esse respeito.
Os gregos possuíam uma consciência trágica, que consistia não na finitude da vida, já que eles
acreditavam que a vida continuava depois da morte física num mundo mais puro, o eidos, que poderia ser
mais celestial ou mais infernal, mas era mais puro, o que não eliminava a responsabilidade subjetiva pelo
que viria depois, comprometia o sujeito no tipo de lançamento que ele teria no mundo das idéias puras, o
mundo dos deuses. Isso não quer dizer que se fosse bom seria premiado e se fosse ruim seria castigado,
mas, de acordo com valores que ele colocasse em jogo, esses valores seriam colocados em jogo maispuramente, de um modo mais absoluto nesse novo mundo ao qual acederia depois da morte. Era uma
responsabilidade subjetiva até maior do que a que o cristianismo coloca em jogo, uma responsabilidade
sobre seu próprio destino. Embora ele estivesse escrito, por um lado, paradoxalmente, poderia refazê-lo
quanto ao nível de pureza. Ali surge o espírito do trágico, depende do que eu fizer com o desfecho da
minha vida. Quando o desfecho é indesejável, é porque eu me neguei saber o que era possível de ser
sabido, porque eu não tive, na posição de um grego, a integridade, a coragem, a disposição, a pureza de
espírito para viver de acordo com o que era sabido, e por isso esse saber ocultou-se de mim. Essa era a
posição de um grego comum: quando o desfecho do seu destino não coincidia com seus desejos, sentiase preso em uma tragédia da qual ele mesmo era produtor – hoje diríamos produtor inconsciente, e eles
diriam, no dizer de Aristóteles, sem suficiente consciência das coisas. A tragédia surgia de algo que
poderia ter sido evitado; o sujeito, pela sua covardia, pela sua restrição, não tinha tido a coragem de
evitá-la, não tinha tido a sabedoria de evitá-la, portanto, um desfecho indesejável transformava-se em
algo trágico porque o sujeito também caía, ele mesmo se desvalorizava, ele não tinha sabido lidar com a
coisa.
Curiosamente, na sociedade atual, que é produto de uma evolução em direção ao individualismo,
tem-se eliminado progressivamente a responsabilidade desse indivíduo como sujeito no desfecho de seu
destino. É um paradoxo. Se pareceria que o individualismo o empurrasse, o levasse a fazer-se mais
responsável do seu próprio destino, curiosamente, por obra da evolução do pensamento científico, o que
decide seu destino é o real, ou seja, o aleatório das coisas. Se a coisa cai na minha mão, o destino é bom;
se a coisa não cai na minha mão, o destino é ruim. De toda maneira, a culpa é dos outros, não
representados como um universo de semelhantes, mas como um universo de objetos, e porque não
disponho de tais objetos, meu destino é assim. Quando se representa o outro, ele aparece muito mais
como a dor dos objetos perdidos (embora nunca tidos) do que como a subjetividade que o caracteriza. A
trama, o enigma do ouro, fica reduzida ao usufruto da coisa. Essa banalização da vida a serviço de
imaginar que a vida é aleatória, que não depende de mim, não depende do sujeito em questão o que nela
venha a resultar. Isso exime o sujeito de qualquer sabedoria, basta ter alguns conhecimentos técnicos
para orientar-se na vida e o poupa da sabedoria de valorizar o que constitui a essência de um laço social.
É por isso que, inconsciente e paradoxalmente, ele se vê lançado ao pior. O pior quer dizer uma solicitude
por um objeto que lhe poderá garantir um gozo efêmero, já que ele não faz História. O que se dissolve é a
historicidade do sujeito.
Baudrillard disse que a História terminou, não como uma afirmação de que é a história da
humanidade que acabou, mas que o que está em risco de cair é a historicidade do sujeito em questão.
Sem História, o sujeito não tem de onde tirar a significação de seus atos e de suas produções. É por isso
que os adolescentes de hoje em dia “ficam”, não há continuidade nos laços amorosos e não é da história
do laço amoroso que ele extrai a significação e o valor desse laço, mas do gozo fugaz e momentâneo. Na
verdade, foi a sociedade que o empurrou a isso.
A questão da toxicomania também é significativa nesse ponto. A toxicomania não aparece em
qualquer um. A toxicomania consiste em adotar o uso de um certo objeto de gozo em substituição das
formas de gozar que não se constituíram na relação social. Esse objetivo vem no lugar em que as relações
sociais e as relações subjetivas não se constituíram com o outro.
Então, alguém que está situado na toxicomania padece de uma certa dificuldade de
representação do lugar do outro. Se já padece disso, isso o torna potencialmente agressivo. Não é a
droga que o torna agressivo, mas sua posição subjetiva anterior, que faz com que ele esteja disposto a
qualquer coisa para defender-se daquilo que o traiu: a relação social. E, porque foi traído, não deve
nenhum respeito a essa relação. Mais respeito ele deve a esse pequeno objeto que o faz gozar – pelo
menos, esse cumpre a sua promessa. Essa é a posição de agressividade que caracteriza um toxicômano.
Não é a droga em si, porque o consumo de droga eventual por alguém que não é toxicômano não o
conduz à agressividade. Ou seja, a agressividade já é anterior.
O problema com que se confrontam hoje os adolescentes é um problema de extensão do tempo,
por causa da urgência; de contração do discurso, pelo fading do Ouro Social; de fragilidade do simbólico,
devido à substituição do semelhante pelo objeto; e da falcatrua do poder, como conseqüência da
supressão do saber em nome de uma técnica.
Dito em outros termos, os jovens atuais tropeçam com uma sociedade na qual – muito apesar de
Thomas Mann – aqueles que têm tempo de ler A Montanha Mágica não têm tempo para subí-la, e os que
estão no topo da montanha nunca a leram.
Porto Alegre, 9 de maio de 2003.
 Fonte: Jerusalinsky, Alfredo Nestor. Adolescência e Contemporaneidade. in Conselho regional de
Psicologia 7ª Região. Conversando sobre Adolescência e Contemporaneidade. Porto Alegre: Libretos,
2004.