importância do humor
Claro que humor não combina com doença. Doença não tem a menor graça. Mas, felizmente, crianças adoecem pouco. Nem por isso, dão menos trabalho. É desse trabalho, que pode ser percebido como uma desgraça, que gostaria de propor que passe a ter graça (humor). Para não ficar um ensaio teórico, sem graça (não resisti à brincadeira), vou contar a história de um casal que me procurou no consultório, há cerca dois anos atrás.
Recebo uma ligação telefônica de uma moça grávida que tinha recebido a indicação de meu nome para ser pediatra do filho que viria a nascer. Queria marcar uma entrevista comigo, coisa que prontamente organizamos. Entrevista com pediatra, para quem não sabe, é aquela prova de avaliação completa que a futura mãe, acompanhada ou não do pai e/ou da avó, faz do médico. Por mais que disfarce, entra no consultório com olhos arregalados, observando todos os detalhes. Da decoração à iluminação, passando pela organização e limpeza. Uma vez satisfeita essa curiosidade os olhos maternais pousam sobre o pediatra que, meio sem jeito, tenta iniciar uma conversa. Olá, o que posso fazer por vocês? Ou alguma outra coisa do gênero. Pois bem, ali estavam, na minha frente Claudia e Allan. Não me lembro dos detalhes da nossa conversa. Mas me chamou a atenção a profissão de ambos. De alguma forma, os dois eram humoristas, profissionais. Nunca disse para eles, o que vou revelar agora: que inveja! Ter como profissão cutucar o pensamento das pessoas, fazendo com que riam e, idealmente, pensem. Mantive minha melhor cara de médico neutro, isento e continuamos a conversa. Em dado momento, mais para o final da entrevista (prova!) me ocorreu fazer uma pergunta “inteligente”, “sensível”: o que vocês esperam de um pediatra? Pronto, pensei, grande pergunta essa! Os dois se entreolharam, rindo. Allan se vira para mim e responde: se o pediatra não for pedófilo, já é um bom começo! Gostaria de ter visto a minha cara, neste momento. Tentei manter um ar digno, mas, devo ter ficado com cara de pateta mesmo. A tal ponto que o próprio Allan veio em meu socorro, complementando: precisamos de um pediatra que tenha bom humor. Ufa! Respirei aliviado e pensei: esses não sabem com quem estão se metendo!
O humor passeia por um território simbólico ou, dito de outra forma, irracional. Se pensarmos bem, uma piada, tira de cartum, charge ou paródia, à luz de uma racionalidade lógica, não tem a menor graça. Mas, rimos! O que nos faz rir é uma conexão entre o que o autor ou narrador do episódio humorístico sugere e uma emoção que nos pertence. Nesse sentido, o humor funciona exatamente como uma obra de arte que nos toca. Burla os filtros racionais e vai direto ao lado menos visível de nós mesmos: nossos sentimentos. O humor que nos faz rir, é uma revelação de sentimentos e emoções, contidos em um sorriso ou gargalhada.
Ter filhos é um turbilhão de emoções e sentimentos. Por mais que possamos buscar, através da leitura, cursos preparatórios ou de formação de pais, o conhecimento que tranquiliza e dá a sensação de conseguirmos controlar com eficiência a situação, o nascimento de um filho demole esse edifício ilusório de “gestão” e nos coloca face à face com sentimentos inéditos. Mais do que inéditos, são sentimentos intensos, fortíssimos e, não raro contraditórios. Do espanto de um amor jamais sentido, à impotência diante de um bebê que chora, passando pela irritação incontrolável que o cansaço dos primeiros dias gera e a descoberta surpreendente que aquele bebê real, tem apenas uma vaga semelhança com o idealizado enquanto estava na barriga da mãe. Mais, ao mesmo tempo em que esses sentimentos vão surgindo, aos borbotões, o bebê demanda atenção prática, ação, iniciativa e tomada de decisões ( Será que é fome ou frio? Troco a fralda ou dou de mamar? ) O bebê não tem dó dos pais, impedindo que o fiquem contemplando (exceto naqueles deliciosos momentos em que o bebê adormece) e usufruindo desse turbilhão de sensações. A vida dos pais é quase como uma esquizofrenia: sensações intensas e trabalho real (escravo?) 24h dia, 7 dias na semana.
Pintei um quadro com cores fortes, exageradas, mas, verdadeiro, para a maioria dos pais. Nesse cenário, a noção de desgraça pode se instalar, com facilidade. Tudo passa a ser um problema, uma dificuldade, um obstáculo quase intransponível. Prova disso é uma pergunta, com suas variações, que os pais se fazem, fazem aos seus pais e aos pediatras: quando que isto vai melhorar?
Pois bem, é nesse momento que o humor pode entrar em cena e minimizar o peso e o cansaço dessa maratona que parece não ter fim (como toda boa maratona!). A capacidade que temos de rirmos de nós mesmos e do outro, nos conecta com as emoções envolvidas no cuidar dos filhos. Nos tira, um pouco, do mundo lógico onde tudo precisa ter uma explicação, uma razão e, consequentemente, a possibilidade de ser compreendido e controlado. Essa visão de mundo, serve para uma vida cotidiana rotineira, certamente para a vida corporativa ou profissional, mas, não serve para os momentos das nossas vidas, regidos pelas emoções, como o nascimento de um filho. Para estes momentos, é preciso que aprendamos a funcionar em outra dimensão e o humor é a ponte que nos leva até ela. Para quem gosta de física, mal comparando é como a física Newtoniana e a física Quântica. A primeira é lógica, organizada, nos permite medir e prever fenômenos com alguma precisão, nos dando conforto com a previsibilidade e segurança com a sensação de controle. A física Quântica, igualmente científica, nos revela um mundo de incertezas (não se pode conhecer, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma partícula) e de ambiguidades que soam como totalmente ilógicas ( a luz tanto pode ser uma onda, quanto uma partícula, depende do observador!). A física Quântica subverte a Newtoniana, sendo que as duas convivem. Assim é o nascimento de um filho, uma subversão de tudo que fomos ensinados a acreditar como sendo a única lógica possível (a da racionalidade) e a entrada em cena de um tsunami de emoções.
Proponho, que o humor é o melhor veículo para nos levar a uma viagem por esse mundo de emoções de forma menos ameaçadora do que a de passarmos por ele, a bordo de uma “Ferrari da lógica” ou “Mercedes da racionalidade”. Nos momentos onde o desespero deseja se instalar, onde a sensação de impotência e incompetência se manifestem, desliguemos, por alguns instantes, o racional e usemos o humor. Conversemos com o bebê de forma franca. Tão franca que um estranho vendo essa conversa tenha a certeza que devamos ser internados em instituição psiquiátrica. Façamos perguntas impublicáveis aos nossos filhos: por que você está fazendo isto comigo? o que foi que eu te fiz? você acha que vai me levar à loucura? já levou, pode parar! Enfim, essas perguntas podem ser feitas para si próprios ou para as companheiras/companheiros. A ideia é que o riso instalado, reconecte as emoções, produzindo um pouco de paz. Onde há riso, há leveza e flexibilidade. Ao contrário, onde há somente racionalidade e lógica, se instala o rigor que significa dureza, firmeza. Todos nós sabemos que coisas duras, rígidas, quebram com mais facilidade do que as flexíveis. O humor nos protege da quebra e nos permite uma aproximação maior com nossas emoções, consequentemente com nosso bebê.
Passados quase dois anos do nascimento do Max, Claudia e Allan lançam um livro onde colocam em tirinhas uma parte do humor com que enfrentaram esses duros dias inaugurais. As duas capas do livro ilustram o post de hoje e recomendo a todos os pais que o leiam. Não com o intuito de descobrirem novas regras que os ajudem a entender e controlar as situações, mas, que possam ser tocados pela coragem dessa família que optou por viver com humor (emoção) esses momentos. Essa coragem é uma que todos temos. Basta retirarmos uma capa racional ilusoriamente eficiente que nos cobre, para que esse humor se revele. Basta termos a coragem de rir, eventualmente chorar (literalmente) de rir, para que a vida com um bebê pequeno fique com mais graça. O trabalho, será o mesmo. A sensação, radicalmente diferente. O humor é uma aula do inesperado. Filhos, também!