Sobre o conceito de Estrutura
De Radcliffe-Brown a Marshall Sahlins, passando por Lévi-Strauss, muitas foram as discussões envolvendo os conceitos de cultura e estrutura social, sincronia e diacronia, levando, inclusive, a uma forte dicotomia entre História e Antropologia, “guardando para a História o reino da diacronia e do tempo volátil e para a Antropologia o lugar da sincronia e da estrutura” (SCHWARCZ, 2001, p.1). Os primeiros antropólogos, de enfoque evolucionista, de certa forma chegaram a introduzir a temporalidade em suas teorias, embora com uma concepção de etapas seriais; os que imediatamente os sucederam, porém, acabaram contribuindo para a longa prevalência de uma abordagem anti-histórica nesta disciplina – em parte devido à limitada documentação disponível nas sociedades ágrafas, a qual transformou o estudo das culturas numa análise sincrônica de relações entre seus elementos constitutivos no presente (SCHWARCZ, 2001).
Dentre esses autores, Alfred R. Radcliffe-Brown foi um antropólogo britânico nascido no final do século XIX, fortemente influenciado pelas teorias sociológicas de Durkheim, contemporâneo e crítico da abordagem funcionalista e do enfoque cultural de Malinowski; autor que o citou como fundador da Escola Estrutural-Funcionalista, cuja existência foi veementemente negada por ele juntamente com a suposta influência do funcionalismo de Franz Boas. A concepção de função social de Radcliffe-Brown de fato diferia desses autores, referindo-se à relação entre uma ação social e o sistema no qual está inserida, ou à contribuição das instituições para a manutenção da estrutura social local; enquanto Malinowski considerava outros aspectos em seu funcionalismo, como necessidades orgânicas e fatores psicológicos.
Radcliffe-Brown considerava a Antropologia Social uma ciência teórico-natural da sociedade humana, cujos métodos seriam semelhantes aos das demais ciências da natureza e baseados na observação dos fenômenos sociais, formas de relações de associação entre indivíduos. Denominou Estrutura Social esta rede de relações “realmente existente”, passível de apreensão através dos sentidos físicos do pesquisador, ressaltando a grande diferença relativamente ao campo dos estudos da Cultura, para ele apenas uma abstração que não permite observação científica direta. Os fenômenos sociais seriam, assim, uma classe distinta de fenômenos naturais, diretamente relacionados à existência das estruturas sociais, estas tão reais quanto os próprios organismos individuais; e decorrentes não da natureza dos seres humanos particulares, mas da própria estrutura social que os une.
Para o autor, o conceito de estrutura não designa apenas os grupos sociais duráveis (definição assumida por Evans-Pritchard, em Os Nuer), que mantém sua identidade a despeito das transformações sofridas, mas inclui todas as relações de pessoa a pessoa (parentesco, por exemplo) e a diferenciação de indivíduos ou classes por seu desempenho social. A Ciência, todavia não tem interesse pelo particular e sim pelo geral, pelos fatos que se repetem. E embora a estrutura social concreta – atores e relações pontuais, seja constantemente renovada, sua forma estrutural geral pode permanecer relativamente constante durante longos períodos de tempo; por vezes sujeita a transformações rápidas, como revoluções, mesmo assim logrando manter alguma continuidade em sua estrutura. Radcliffe-Brown propôs também a comparação entre as estruturas sociais de povos ou grupos distintos. Seu método comparativo combina o estudo de “sociedades simples”, nas quais o sistema estrutural pode ser observado com maior facilidade, com a comparação sistemática de muitas sociedades, em busca de leis mais gerais (Radcliffe-Brown, 1952/1973).
O autor reservou o termo Antropologia Social para o estudo das regularidades encontradas no desenvolvimento das sociedades humanas, visando diferenciar este campo da Etnologia, cujos procedimentos de análise criticava; particularmente quando instituições, costumes ou crenças similares entre duas sociedades eram tomadas como indicativos da existência de conexões históricas. “Um modo de explicar por que uma sociedade particular possui as características que ostenta é pela sua história”, mas como para muitos povos “primitivos” não há uma história “autêntica” e documentada à disposição, “os antropólogos historicistas estão reduzidos a nos oferecer histórias imaginárias” (Radcliffe-Brown, 1978, p.45).
Sobre transformações na forma estrutural, Radcliffe-Brown descreveu o caso das colônias africanas, que antes da colonização européia possuíam sua própria estrutura social, alterada depois pelo estabelecimento da dominação estrangeira, passando a constituir uma sociedade “compósita” desigual. O autor menciona a análise dessa situação como uma tarefa difícil e complexa, que não deveria ser simplificada considerando o processo apenas como duas ou mais culturas em interação, como sugeriu Malinowski, em 1938. “Por que o que está acontecendo na África do Sul, por exemplo, não é a interação da cultura inglesa, africana (...), várias culturas banto e indiana, mas a interação de indivíduos e grupos dentro de uma estrutura social que está em si mesma em processo de transformação” (Radcliffe-Brown, 1952/1973, p.249).
Na história da Ciência, por vezes as mudanças em teorias e paradigmas foram inspiradas ou motivadas por questões políticas, contextuais e inclusive pessoais, entre os pares. E assim como os conflitos entre Radcliffe-Brown e Malinowski produziram novas idéias, o incômodo relacionado à situação colonial africana, sentido por alguns pesquisadores e inclusive pela disciplina como um todo, provavelmente inspirou a Antropologia de Max Gluckmann, Escola de Manchester, em meados do século passado. Segundo Peter Fry (2011), essa linha estava fortemente relacionada à posição política de Gluckman, marxista abertamente contrário ao racismo e colonialismo, que defendia a igualdade de direitos sociais e políticos – numa época de intensas migrações de trabalhadores assalariados, urbanização e normas conflitantes – contra os argumentos biologizantes ou culturalistas do governo colonial. Gluckman privilegiava inclusive a autonomia do indivíduo na escolha de seu modo de vida, numa visão antropológica de cunho anti-essencialista: “Aldeias e cidades são situações, seus habitantes sempre passageiros e identidades situacionalmente invocadas” (FRY, 2011, p.12); frase que, aliás, remete à Radcliffe-Brown, na afirmação de que “o ser humano como pessoa é um complexo de relacionamentos sociais” (Radcliffe-Brown, 1952/1973, p.239).
Ainda de acordo com Fry (2011), a abordagem da Escola de Manchester consistia em observações de séries de situações sociais, a partir das quais seriam levantadas as questões merecedoras de análise, num método que ficou conhecido como Análise Situacional ou Método de Casos Estendidos; ferramenta bastante adequada para situações sociais de mudanças rápidas – dificilmente descritas satisfatoriamente por uma abordagem meramente sincrônica, e inspirada pela formação anterior de Gluckman em Direito.
Desta forma, o material etnográfico recolhido, até então utilizado como ilustração para modelos teóricos abstratos, havia se tornado o próprio ponto de partida para qualquer argumentação; a noção de situação implicando na concepção de um ser humano infinitamente adaptável às múltiplas situações em que está inserido. Para Gluckman (1940/2010), em algumas ocasiões uma “situação social” consiste no comportamento de indivíduos como membros da comunidade comparado com seu comportamento em outros momentos; e “a partir das situações sociais e de suas inter-relações em uma sociedade particular, podem-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições (...). Por meio dessas e de novas situações o antropólogo deve verificar a validade de suas generalizações” (GLUCKMAN, 1940/2010, p.239).
As mudanças na África, particularmente na Zululândia, foram estudadas por Gluckman como um sistema composto por relações zulu-européias; campo social único com uma mistura de modos específicos de comportamento, ações historicamente derivadas das culturas européia e Zulu. Houve um acréscimo interessante por parte desse autor, introduzindo a tensão, o conflito e a contradição como fatores inerentes aos sistemas sociais em geral. As relações entre os dois grupos mencionados eram frequentemente marcadas por hostilidade e conflito, e segundo Gluckman (1940/2010), a cisão “racial” foi, em si, fundamental para a integração numa única estrutura, embora a hegemonia dos brancos tenha sido o principal fator para a manutenção de seu equilíbrio; definido pelo autor como “as relações interdependentes entre partes diferentes da estrutura social de uma comunidade em um período particular” (GLUCKMAN, 1940/2010, p.280).
Outro antropólogo participante da Escola de Manchester foi Clyde Mitchell, também com análises muito interessantes relativas aos povos africanos, particularmente sobre a questão das mudanças estruturais que têm lugar durante encontros étnicos. De acordo com Mitchell, a observação de “coletividades que começaram a tecer os distintos elementos tribais em elementos comuns”, como escolas, igrejas, sindicatos, espaços públicos de lazer, revela que “quanto mais os africanos se identificam com esses grupos, menos importante se torna a filiação tribal” (MITCHELL, 1956/2010, p.427); fato que também remete à variação do comportamento de acordo com a ocasião: em determinadas situações os grupos estudados ignoravam as diferenças de classe e/ou as tribais, enquanto em outras, estas diferenças tornavam-se muito importantes.
Diversos foram os enfoques teóricos no decorrer destes poucos parágrafos de texto, uma pequena amostra das transformações radicais que a Antropologia foi capaz de desenvolver desde seus primórdios; particularmente nas últimas décadas, de intensa e criativa autocrítica, inclusive envolvendo a questão da relação entre estrutura e história. Nas palavras de Lévi-Strauss (citado por SCHWARCZ, 2001, p.126): “quando nos limitamos ao instante presente da vida de uma sociedade somos vítimas de uma ilusão: pois tudo é história; o que foi dito ontem é história, o que foi dito há um minuto é história”. Marshall Sahlins, antropólogo contemporâneo estudioso de Lévi-Strauss, foi mais além, encontrando “história na estrutura”, fazendo dialogar sincronia e diacronia e introduzindo a questão do poder, até então pouco considerada nas análises antropológicas. Segundo Lilia Schwarcz, “esta é, sem sombra de dúvida, uma aposta alentada, na medida em que se selecionam objetos históricos, para lá encontrar não apenas o ‘acontecimento’ e a diacronia, mas a sincronia e os elementos de longa duração” (SCHWARCZ, 2001, p.130).
(Antropologia II, 2014, FFLCH - USP)
(Antropologia II, 2014, FFLCH - USP)
Referências
FRY, Peter. Nas redes antropológicas da escola de Manchester: reminiscências de um trajeto intelectual. Iluminuras, Porto Alegre, v. 12, n. 27, p. 1-13, 2011.
GLUCKMAN, Herman Max. Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna. In BIANCO, Bela Feldman (Org.), Antropologia das sociedades complexas, pp. 237-282. São Paulo: UNESP. 1940/2010.
MITCHELL, Clyde. A dança Kalela. In BIANCO, Bela Feldman (Org.), Antropologia das sociedades complexas, pp. 365-436. São Paulo: UNESP. 1956/2010.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Sobre a Estrutura Social. In: Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1952/1973.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. O método comparativo em Antropologia Social. In Radcliffe-Brown - Antropologia, Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1978.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Marshall Sahlins ou por uma Antropologia estrutural e histórica. In Cadernos de Campo, nº.9, pp.125-133, 2001. São Paulo: PPGAS/USP.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/53108/57170>. Acesso em: 12 dez 2014.