Resumo: O Totemismo Hoje (Lévi-Strauss)
Resumo: Lévi-Strauss, C. (1968/1986). O Totemismo Hoje (J. A. B. F. Dias, Trad.). São Paulo: Edições 70.
O Totemismo Hoje
Com o totemismo e com a histeria é a mesma coisa. Quando nos decidimos a duvidar que se possam arbitrariamente isolar certos fenômenos e agrupá-los entre si para fazer deles signos diagnósticos de uma doença ou de uma instituição objetiva, os próprios sintomas desapareceram, ou mostraram-se rebeldes às interpretações unificantes. (Lévi-Strauss, 1986, p.11)
Com essa afirmação, Lévi-Strauss inicia uma extensa discussão sobre o suposto totemismo, categoria muito em voga durante as primeiras décadas do século passado e contemporânea dos estudos sobre a histeria; sugerindo a motivação velada de certas teorias científicas ao evocar a “natureza”, buscando diferenciar as culturas civilizadas das ditas primitivas (ou comportamentos humanos irracionais, no caso da histeria) para salvaguardar sua racionalidade e visão de mundo. “O totemismo é, antes de tudo, a projeção fora do nosso universo, e como que por exorcismo, das atitudes mentais incompatíveis com a exigência de uma descontinuidade entre o homem e a natureza, que o pensamento cristão considerava essencial” (Lévi-Strauss, 1986, p.13).
No decorrer do texto, Lévi-Strauss desvela o panorama histórico do totemismo, entrelaçando com maestria diversos autores, etnografias e suas interpretações, construindo, assim, um terreno fértil capaz de embasar suas análises e conclusões finais. Essa trajetória será parcialmente descrita aqui, estando todos os autores mencionados presentes na obra em questão.
Muitas linhas foram escritas sobre o totemismo, particularmente a monumental obra com 2200 páginas de J. G. Frazer, Totemism and Exogamy, uma tentativa de fundá-lo como sistema e explicar sua origem. O espaço para esse tema foi, contudo, gradualmente diminuindo na literatura antropológica, concomitantemente às críticas de diversos estudiosos que contribuiram para a desconstrução do conceito de totemismo, amálgama artificial de fenômenos distintos coincidentes apenas numa minoria de casos: a organização clânica, a atribuição de nomes ou emblemas animais aos clãs, a crença no parentesco entre o clã e seu totem; além de outras variações, já que sequer havia consenso entre os pesquisadores. Segundo Lévi-Strauss, a ocorrência conjunta de tais particularidades, eventualmente observável empiricamente, não resulta, assim, em qualquer propriedade original, tampouco constituindo uma síntese orgânica ou objeto de natureza social.
Já no ano de 1938, o espaço reservado para o totemismo no tratado General Anthropology, publicado por Franz Boas, foi de apenas quatro páginas; o autor observando que sob este nome foram reunidos fenômenos heterogêneos, como repertórios de nomes, crenças na relação sobrenatural com seres não humanos, proibições que podem ser alimentares - embora nem sempre o sejam, além de certas regras de exogamia. Em suas palavras:
Escreveu-se demasiado sobre o totemismo (...) para que pudesse ser deixado de fora (…) Mas os modos como se manifesta são tão diversos em cada parte do mundo, as semelhanças são tão superficiais, e os fenômenos podem aparecer em tantos contextos sem relação com uma consanguinidade real ou suposta, que é absolutamente impossível fazê-los entrar numa única categoria. (Boas apud Lévi-Strauss, 1986, p.18)
O totemismo consiste, assim, numa unidade artificial existente apenas no pensamento do etnólogo; constatação que reforça o alcance da advertência dirigida por R. H. Lowie aos “inventores de instituições”: “É necessário saber se comparamos realidades culturais, ou somente fantasmas saídos dos nossos modos lógicos de classificação” (Lowie apud Lévi-Strauss, 1986, p.22).
Dois problemas distintos foram portanto reunidos: a frequente identificação de seres humanos com animais e plantas, e a denominação dos grupos fundados no parentesco; questões inclusive interessantes para diversos outros campos do saber. O pretenso totemismo abarca apenas os casos de coincidência entre esses dois fatores, desta forma exigindo, segundo Boas, a presença de regras estáveis de casamento para sua subsistência durável, supondo também a existência de certos tipos de exogamia. Sobre as marcas diferenciais em cada sociedade, Boas observou que constituem diferenças de conteúdo e não de forma (nome, brasão, ritual etc.), sugerindo através desta homologia uma tendência humana para a classificação, além de evidenciar a formação de um sistema no plano social como condição necessária para a existência do totemismo. Lévi-Strauss enaltece o “bom caminho” de Boas quanto a essa tendência do espírito humano - também sugerida por E. B. Tylor em 1899, todavia mencionando a existência de casos onde a citada homologia não se verifica e apontando falhas em sua tese:
O recurso por parte do sistema a nomes animais e vegetais é um caso particular de um método de denominação diferencial, com características permanentes, seja qual for o tipo de denotação empregue. É aqui, talvez, que o formalismo de Boas falha o seu alvo: porque se os objetos denotados devem, como ele afirma, constituir um sistema, o modo de denotação também deve ser sistemático, para cumprir integralmente a sua função. (Lévi-Strauss, 1986, p.25)
Por outro lado, o descarte do totemismo como categoria de análise válida não implica também em deixar de lado o interessante problema de porque os reinos animal e vegetal são privilegiados para denotar sistemas sociológicos e o das relações logicamente existentes entre o sistema denotativo e o denotado. Lévi-Strauss sugere que estes seres vivos não são utilizados apenas por existirem, mas por oferecerem ao homem um método de pensamento; procurando então definir o campo semântico onde estariam situados os fenômenos outrora agrupados como totemismo e propondo um método que inicialmente consiste em definir tais fenômenos como relações entre dois ou mais termos reais ou virtuais, construindo a seguir um quadro com as permutações possíveis entre estes termos. Tais relações, cobertas pela expressão totemismo, na verdade referem-se a duas séries, natural e cultural; a natural compreendendo categorias e a cultural, grupos e pessoas.
Lévi-Strauss ainda acrescenta diversos outros autores à sua discussão, particularmente refutando as interpretações puramente sociológicas de E. Durkheim e as naturalistas, utilitárias e afetivas de B. Malinowski, em parte referentes à importância para o homem “primitivo” dos animais e vegetais como alimento e às emoções envolvidas nestes processos; além de contestar quaisquer suposições relativas a crenças na contiguidade entre humanos e espécies naturais, apenas metáforas que remetem a estruturas. Rebate ainda as primeiras teorias de Radcliffe-Brown, onde encontra certa similaridade com o pensamento de Boas, todavia incluindo também suas últimas contribuições, muito importantes para a posterior liquidação do problema do totemismo, e que inclusive apresentam uma lógica estrutural. Estas são referentes às observações de que semelhanças e diferenças entre as espécies vivas são representadas pelas culturas em termos de solidariedade e oposição, ou seja, características sempre presentes nas relações sociais humanas.
Lévi-Strauss discute também as interpretações de Firth e Fortes sobre a sociedade Tallensi, segundo ele mais satisfatórias que as dos primeiros adversários do totemismo, considerando que tais interpretações escapam do recurso ao arbitrário ou às evidências artificiais, chegando ao plano da percepção e do julgamento; embora sua abrangência alcance apenas um campo de aplicação limitado. Sobre suas hipóteses de semelhança entre animais e antepassados humanos Lévi-Strauss afirma que “não são as semelhanças, mas as diferenças, que se assemelham” (Lévi-Strauss, 1986, p.101). Acrescentando, porém, que Firth e Fortes realizaram grande progresso “ao passarem do ponto de vista da utilidade subjetiva ao da analogia objetiva. Mas, uma vez adquirido este progresso, falta fazer a passagem da analogia externa à homologia interna” (Lévi-Strauss, 1986, p.101).
Tal passagem é um dos pontos chave da tese de Lévi-Strauss sobre o totemismo. No último capítulo da obra em questão, após profunda discussão sobre algumas ideias dos filósofos H. Bergson e J. J. Rousseau, os quais aparentemente vislumbraram certas particularidades humanas e culturais desconhecidas dos próprios etnólogos que viriam depois, Lévi-Strauss coloca a “ilusão do totemismo” como respondendo apenas a exigências de ordem intelectual, ou seja, não retirando sua substância do exterior: “se a ilusão recobre alguma parcela de verdade, esta não está fora de nós, mas em nós” (Lévi-Strauss, 1986, p.132). Com essa observação final, o autor remete à própria estrutura do espírito humano, com sua tendência à classificação e modo relacional de apreensão da realidade. Para Lévi-Strauss, o totemismo é uma ilustração particular de certos modos de reflexão; o recurso das diferentes culturas às espécies animais e vegetais para denotar sistemas sociológicos ocorrendo, assim, somente em função das possíveis interrelações que estes seres vivos nos apresentam, como solidariedade e oposição, características do pensamento humano, também presentes nos contextos ditos civilizados.
(Antropologia III, 2014, FFLCH - USP)
(Antropologia III, 2014, FFLCH - USP)