educação e mudança Paulo Freire
SUMÁRIO
Prefácio de Moacir Gadotti......................................................................................... 4
O Compromisso do
Profissional com a Sociedade.......................................... 7
A Educação e o Processo
de Mudança Social.................................................. 14
O Papel do Trabalhador
Social no Processo de Mudança.......................... 23
Alfabetização de Adultos
e Conscientização................................................... 35
Prefácio
por Moacir Gadotti
EDUCAÇÃO E ORDEM CLASSISTA
O lançamento desta obra de Paulo Freire em português se dá no momento em
que o educador brasileiro retorna de quinze anos de exílio. Retorna ao Brasil
“distante do qual estava há 14 anos, mas distante do qual nunca estava também”,
como declarou ele no ano passado, quando foi impossibilitado de participar do I
Seminário de Educação Brasileira, porque lhe fora negado o passaporte. Indagado
ao descer hoje no aeroporto de Viracopos se havia acompanhado a evolução política
e educacional do país, Paulo Freire disse ter feito o impossível para isso e
acrescentou: “mas a cada momento eu descubro que é indispensável estar aqui
para melhor entender toda a atual realidade. Quinze anos de ausência exigem uma
reaprendizagem e uma maior intimização com o Brasil de hoje.” Com a modéstia
intelectual que sempre o caracterizou ele volta disposto a percorrer mais uma
etapa nesta sua permanente “aprendizagem”.
É-me, portanto, impossível apresentar hoje esta obra sem mencionar sua
volta do exílio. O exílio não marcou, de forma alguma, o seu pensamento de
mágoa ou de uma nostalgia doentia. Onde quer que tenha trabalhado, saindo do
país, – no Chile, nos Estados Unidos, na Suíça ou na África – sua teoria e sua
práxis estão carregadas de otimismo, certamente um otimismo crítico, levando
mensagens de esperança, certo de estar combatendo ao lado daqueles que são os
portadores da liberdade, os oprimidos. Paulo Freire não é um intelectual
acadêmico, distante da vida concreta, do quotidiano. por isso – e não porque
tenha seguido uma doutrina filosófica ou um ideário político – que sua teoria e
sua práxis são tão fortes, violentas até, carregadas de um sentido existencial
profundo. Sentido que Paulo Freire não “dá”, mas que “exprime”. E como o seu ponto
de par-tida, a sua opção radical é a libertação dos oprimidos, o sentido mais
profundo da sua obra é ser a “expressão” dos oprimidos. Daí ser uma obra
inquietadora, perturbadora, revolucionária. Ela exprime a realidade e a
estratégia do oprimido. Foi por essa razão que não foi tolerado após o golpe
militar de 1964: por ser o “pedagogo dos oprimidos”.
Feitas estas observações
iniciais, minha intenção é tecer algumas considerações sobre a temática central
deste livro : a mudança.
Inicialmente quero dizer que, ao lado da conscientização, a mudança
é um “tema gerador” da prática teórica de Paulo Freire. Como o tema da
consciência, o tema da mudança acompanha todas as suas obras. A mudança de uma
sociedade de oprimidos para uma sociedade de iguais e o papel da educação – da
conscientização – nesse processo de mudança é a preocupação básica da pedagogia
de Paulo Freire. Aqui, porém, nestes quatro estudos, ele se detém mais
sistematicamente.
Pode a educação operar a
mudança? Que mudança?
Paulo Freire combate a
concepção ingênua da pedagogia que se crê motor ou alavanca da transformação
social e política. Combate igualmente a concepção oposta, o pessimismo
sociológico que consiste em dizer que a educação reproduz mecanicamente a
sociedade. Nesse terreno em que ele analisa as possibilidades e as limitações
da educação, nasce um pensamento pedagógico que leva o educador e todo
profissional a se engajar social e politicamente, a perceber as possibilidades
da ação social e cultural na luta pela transformação das estruturas opressivas
da sociedade classista. Acrescente- se porém que embora ele não separe o ato
pedagógico do ato político, nem tampouco ele os confunde. Evitando que- relas
políticas ele tenta aprofundar e compreender o pedagógico da ação política e o
político da ação pedagógica, reconhecendo que a educação é essencialmente um
ato de
conhecimento e de
conscientização e que, por si só, não leva uma sociedade a se libertar da
opressão.
É dentro desse quadro que gostaria de dialogar um pouco com ele,
caminhar com ele e, ao mesmo tempo, problematizar o seu discurso central, isto
é, a possibilidade de uma educação libertadora, transformadora.
Paulo Freire é certamente um profissional comprometido, cujo pensamento,
que pensa a vida, as relações humanas, encerra um grande potencial de direção
na luta pela transformação das sociedades, notadamente das sociedades “em
Trânsito”. Neste sentido, ele tem o mérito não apenas de denunciar uma educação
supostamente neutra, como o de distinguir claramente a pedagogia das classes
dominantes da pedagogia das classes oprimidas. Depois de Paulo Freire não é
mais possível pensar a educação como um universo preservado, como não foi mais
possível pensar a sociedade sem a luta de classes após a dialética de Marx.
Muito se tem escrito sobre o pensamento do “maior pedagogo do nosso tempo”, na
expressão de Roger Garaudy. Muitas questões, porém, pode ainda nos suscitar o
seu pensamento, sempre em evolução, como todo pensamento concreto. Não me
preocupa saber se Paulo é ou não é marxista. Se Paulo é ou não é cristão. Ele
sempre tem rejeitado etiquetas daqueles que tentam simplificar o pensamento e a
vida, reduzi- la a esquemas intelectualistas. Os sectários de posições
ideológicas muito rígidas o consideram um “endemoniado contraditório”, como ele
mesmo afirma. Na verdade, o que me interessa discutir concretamente é a questão
da mudança e o caráter de dependência da educação em relação à sociedade.
A tradição pedagógica
insiste ainda hoje em limitar o pedagógico à sala de aula, à relação professor
– aluno, educador – educando, ao diálogo singular ou plural entre duas
ou várias pessoas. Não seria esta uma forma de cercear, de limitar a ação
pedagógic a? Não estaria a burguesia tentando reduzir certas manifestações do
pensa- mento das classes emergentes e oprimidas da sociedade a certos momentos,
exercendo sobre a escola um controle não apenas ideológico (hoje menos
ostensivo do que ontem), mas até espacial? Abrir os muros da escola para que ela
possa ter acesso à rua, invadir a cidade, a vida, parece ser ação classificada
de “não- pedagógica” pela pedagogia tradicional. A conscientização sim (até
certo ponto), mas dentro da escola, dentro dos “campi” das Universidades!
Enquanto os “grandes debates”, os “seminários revolucionários”
permanecerem dentro da escola, cada vez mais isolada dos problemas reais e
longe das decisões políticas, não existirá uma educação libertadora.
Compreendendo esta estratégia, o professorado brasileiro invade hoje as ruas,
sai da escola, lutando por melhores condições de ensino e de salário, certo de
que, assim fazendo, está também fortalecendo a categoria e trans- formando a
sociedade civil numa sociedade mais resistente à dominação.
A burguesia nacional reconhece os limites da conscientização que
são os limites da própria consciência. E aqui ela tem razão: uma
conscientização que partisse apenas do educador, limitada ao campo escolar, é
insuficiente para operar uma verdadeira mudança social. A educação, e o papel
do educador, não é só isso. Se houve tempo em que o papel do pedagogo parecia
ser este, hoje, o educador, o intelectual engajado, cimentado com o oprimido,
não pode limitar- se a conscientizar dentro da sala de aula. Deverá aprender a
se conscientizar com a massa.
Há igualmente limites
para o diálogo. Porque nu- ma sociedade de classes não há diálogo, há
apenas um pseudodiálogo, utopia romântica quando parte do oprimido e ardil
astuto quando parte do opressor. Numa sociedade dividida em classes antagônicas
não há condições para uma pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer- se
talvez no interior da escola, da sala de aula, em pequenos grupos, mas nunca na
sociedade global. Dentro de uma visão macro- educacional, onde a ação
pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade é também tarefa
do educador. E, para isso, o seu método, a sua estratégia é muito mais a
desobediência, o conflito, a suspeita do que o diálogo. A
transparência do diálogo é substituída pela suspeita crítica. O papel do
educador de um
novo tempo, do tempo do acirramento das contradições e do antagonismo de
classe, o educador da passagem, do Trânsito, é mais a organização do conflito,
do confronto do que a ação dialógica.
Não pretendo com isso
condenar todo diálogo. O diálogo, porém, não pode excluir o conflito,
sob pena de ser um diálogo ingênuo. Eles atuam dialeticamente: o que dá força
ao diálogo entre os oprimidos é a sua força de barganha frente ao opressor. R o
desenvolvimento do conflito com o opressor que mantém coeso o oprimido com o
oprimido. O diálogo de que nos fala Paulo Freire não é o diálogo romântico
entre oprimidos e opressores, mas o diálogo entre os oprimidos para a superação
de sua condição de oprimidos. Esse diálogo supõe e se completa, ao mesmo tempo,
na organização de classe, na luta comum contra o opressor, portanto, no
conflito.
Não podemos esperar que uma escola seja “comunitária” numa sociedade de
classes. Não podemos, esquecer que a escola também faz parte da sociedade. Ela
não é uma ilha de pureza no interior da qual as contradições e os antagonismos
de classe não penetram. Numa sociedade de classes toda educação é classista. E,
na ordem classista, educar, no único sentido aceitável, significa conscientizar
e lutar contra esta ordem, subvertê- la. Portanto, uma tarefa que revela muito
mais o conflito interior à ordem classista do que a busca de um diálogo que
instaure a comunhão de pessoas ou de classes.
Até que ponto o humanismo sustentado pela pedagogia tradicional, que
valoriza excessivamente o diálogo, não é uma maneira de esconder a luta de
classes, as disparidades sócio-econômicas, o antagonismo, os interesses escusos
da classe dominante? A tradição humanista da nossa educação parece justificar
tal hipótese. Nossa educação é sustentada por esses dois tipos de humanismo
que, embora se combatam entre si, são ambos conservadores: o humanismo
idealista, de um lado, lutando por uma educação pietista cujo ideal
educativo conduziria ao obscurantismo da Idade Média, freqüentemente encabeçado
pela escola particular e religiosa; por outro lado, o humanismo tecnológico,
reduzindo toda educação a um arsenal de metodologias e de instrumentos de
aprendizagem, despolitizando a grande massa da população, mais
freqüentemente professado pelas escolas oficiais e burocráticas. Um se perde na
contemplação dos ideais de uma sociedade “humana”, “acima” da luta de classes;
outro elimina todo ideal, substituindo- o pela ciência e pela técnica.
É dentro desse quadro que vejo a leitura desta obra, publicada já há
alguns anos em espanhol, como um subsídio valioso para a compreensão da
realidade educacional latino- americana, dentro de uma “sociedade fechada”, a
compreensão do papel do trabalhador social, do profissional engajado,
compromissado com um projeto de uma sociedade diferente, isto é, uma “sociedade
aberta”.
Depois de Paulo Freire ninguém mais pode ignorar que a educação é sempre
um ato político. Aqueles que tentam argumentar em contrário, afirmando que o
educador não pode “fazer política”, estão defendendo uma certa política, a
política da despolitização. Pelo contrário, se a educação, notadamente a
brasileira, sempre ignorou a política, a política nunca ignorou a educação. Não
estamos politizando a educação. Ela sempre foi política. Ela sempre esteve a
serviço das classes dominantes. Este é um princípio de que parte Paulo Freire,
princípio subjacente a cada página do que aqui escreveu.
Hoje, a volta dele representa um momento importante na história da
educação no Brasil. Com ele surge a possibilidade de reanimar o debate em torno
dos problemas educacionais brasileiros, debate este sufocado no período de
obscurantismo imposto pela oligarquia governamental não menos obscurantista e
tecnocrática. Com a volta de Paulo Freire, continuador de Fernando de Azevedo,
Lourenço Filho, Anísio Teixeira, a educação brasileira ganha um novo alento,
adquire maior lucidez, faz- nos lembrar que o Brasil tem uma história
educacional importante.
Campinas, 7 de agosto de 1979.
O Compromisso
do Profissional com a Sociedade
A questão do compromisso do profissional com a sociedade nos coloca
alguns pontos que devem ser analisados. Algumas reflexões das quais não podemos
fugir, necessárias para o esclarecimento do tema.
Em primeiro lugar, a expressão “o compromisso do profissional com a
sociedade” nos apresenta o conceito do compromisso definido pelo complemento
“do profissional”, ao qual segue o termo “com a sociedade”. Somente a presença
do complemento na frase indica que não se trata do compromisso de qualquer um,
mas do profissional. A expressão final, por sua vez, define o pólo para o qual
o compromisso se orienta e no qual o ato comprometido só aparentemente
terminaria, pois na verdade não termina, como trataremos de ver mais adiante.
As palavras que constituem a frase a ser analisada não estão ali
simplesmente jogadas, postas arbitrariamente. Diríamos que se encontram,
inclusive, “comprometidas” entre si e implicam, na estrutura de suas relações,
uma determinada posição, a de quem as expressou.
O compromisso seria uma palavra oca, uma abstração, se não envolvesse a
decisão lúcida e profunda de quem o assume. Se não se desse no plano do
concreto.
Se prosseguimos na análise da frase proposta, sentimos a necessidade de
uma penetração cada vez maior no conceito do compromisso, com a qual podemos
apreender aquilo que faz com que um ato se constitua em compromisso.
Mas, no momento em que esta necessidade nos é imposta, cada vez mais
claramente, como uma exigência prévia à análise do compromisso definido – o do
profissional com a sociedade –, uma reflexão anterior se faz necessária. É a
que se concentra em torno da pergunta: quem pode comprometer- se?
Contudo, como pode
parecer, esta pergunta não se formula no sentido da identificação de quem,
entre alguns sujeitos hipotéticos – A, B ou C –, é o protagonista de um ato de
compromisso, numa situação dada. É uma pergunta que se antecipa a qualquer
situação de compromisso. Indaga sobre a ontologia do ser sujeito do
compromisso. A resposta a esta indagação nos faz entender o ato comprometido,
que começa a desvelar-se diante da nossa curiosidade.
De fato, ao nos aproximarmos da natureza do ser que é capaz de se
comprometer, estaremos nos aproximando da essência do ato comprometido.
A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido
está em ser capaz de agir e refletir.
É preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber- se nele. Saber
que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência deste
estar, é capaz, sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicionada.
Quer dizer, é capaz de intencionar sua consciência para a própria forma de
estar sendo, que condiciona sua consciência de estar.
Se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo,
associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu
estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhe são impostos
pelo próprio mundo, do que resulta que este ser não é capaz de compromisso. É
um ser imerso no mundo, no seu estar, adaptado a ele e sem ter dele
consciência. Sua imersão na realidade, da qual não pode sair, nem “distanciar-
se” para admirá- la e, assim,
transformá- la, faz dele um
ser “fora” do tempo ou “sob” o tempo ou, ainda, num tempo que não é seu. O
tempo para tal ser “seria” um perpétuo presente, um eterno hoje.
A - histórico, um ser como este não pode comprometer- se; em lugar de
relacionar- se com o mundo, o ser imerso nele somente está em contato com ele.
Seus contatos não chegam a transformar o mundo, pois deles não resultam
produtos significativos, capazes de (inclusive, voltando- se sobre ele) marcá-
los.
Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de “distanciar-se”
dele para ficar com ele; capaz de admirá - lo para, objetivando-o,
transformá-lo e, transformando- o, saber- se transformado pela sua própria
criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico,
somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer- se.
Além disso, somente este ser é já em si um
compro misso. Este ser é o homem.
Mas, se este ser é o
homem que, além de poder comprometer- se, já é um compromisso, o que é o
compromisso?
Uma vez mais teremos de
voltar ao próprio homem, em busca de uma resposta. Porém, não a um homem
abstrato, mas ao homem concreto, que existe numa situação concreta.
Afirmamos anteriormente que a primeira condição para que um ser pudesse
exercer um ato comprometido era a sua capacidade de atuar e refletir. É
exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de
acordo com finalidades propostas pelo homem, à qual está associada sua
capacidade de refletir, que o faz um ser da práxis.
Se ação e reflexão, como constituintes inseparáveis da práxis, são a
maneira humana de existir, isto não significa, contudo, que não estão
condicionadas, como se fossem absolutas, pela realidade em que está o homem.
Assim, como não há homem sem mundo, nem mundo sem homem, não pode haver
reflexão e ação fora da relação homem – realidade. Esta relação homem –
realidade, homem – mundo, ao contrário do contato animal com o mundo, como já
afirmamos, implica a transformação do mundo, cujo produto, por sua vez,
condiciona ambas, ação e reflexão. É, portanto, através de sua experiência
nestas relações que o homem desenvolve sua ação-reflexão, come também pode
tê-las atrofiadas. Conforme se estabeleçam estas relações, o homem pode ou não
ter condições objetivas para o pleno exercício da maneira humana de existir.
Contudo, o fundamental é que esta realidade, proibitiva ou não do pensar
e do atuar autênticos, é criação dos homens. Daí ela não pode, por ser
histórica tal como os homens que a criam, transformar- se por si só. Os homens
que a criam são os mesmos que podem prosseguir transformando-a.
Pode- se pensar, diante
desta afirmação, que estamos numa espécie de beco sem saída. Por que se a
realidade, criada pelos homens, dificulta- lhes objetivamente seu atuar e seu
pensar autênticos, como podem, então, transformá - la para que possam pensar e
atuar verdadeiramente? Se a realidade condiciona seu pensar e atuar não-
autênticos, como podem pensar corretamente o pensar e o atuar incorretos? É
que, no jogo interativo do atuar- pensar o mundo, se, num momento da
experiência histórica dos homens, os obstáculos ao seu autêntico atuar e pensar
não são visualizados, em outros, estes obstáculos passam a ser percebidos para,
finalmente, os homens ganharem com eles sua razão. Os homens alcançam a razão
dos obstáculos na medida em que sua aç ão é impedida. É atuando ou não podendo
atuar que se lhes aclaram os obstáculos à ação, a qual não se dicotomiza da
reflexão. E como é próprio da existência humana a atuação-reflexão, quando se
impede um
homem comprometido de
atuar, os homens se sentem frustrados e por isso procuram superar a situação de
frustração1 .
Impedidos de atuar, de
refletir, os homens encontram- se profundamente feridos em si mesmos, como
seres do compromisso. Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a
humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. Este
compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade
histórica, não pode realizar- se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma
de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos.
D compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a
realidade, de cujas "águas” os homens verdadeiramente comprometidos ficam
“molhados”, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experienciá
- lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens
já não se dizem neutros. A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico,
frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso.
Este medo quase sempre resulta de um “compromisso” contra os homens, contra sua
humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão “comprometidos” consigo
mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais
pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade
impossível.
O verdadeiro compromisso
é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso
solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos
em “coisas”.
Comprometer- se com a
desumanização é assumi- la e, inexoravelmente, desumanizar- se também.
Esta é a razão pela qual
o verdadeiro compromisso, que é sempre solidário, não pode reduzir- se jamais a
gestos de falsa generosidade, nem tampouco ser um ato unilateral, no qual quem
se compromete é o sujeito ativo do trabalho comprometido e aquele com quem se
compromete a incidência de seu compromisso. Isto seria anular a essência do
compromisso, que, sendo encontro dinâmico de homens solidários, ao alcançar
aqueles com os quais alguém se compromete, volta destes para ele, abraçando a
todos num único gesto amoroso.
Pois bem, se nos
interessa analisar o compromisso do profissional com a sociedade, teremos que
reconhecer que ele, antes de ser profissional, é homem. Deve ser comprometido
por si mesmo.
Como homem, que não pode estar fora de um contexto hist órico- social em
cujas inter- relações constrói seu eu, é um ser autenticamente comprometido,
falsamente “comprometido" ou impedido de se comprometer verdadeiramente2 .
No caso do profissional, é necessário juntar ao compromisso genérico,
sem dúvida conc reto, que lhe é próprio como homem, o seu compromisso de
profissional.
Se de seu compromisso como homem, como já vimos, não pode fugir, fora
deste compromisso verdadeiro com o mundo e com os homens, que é solidariedade
com eles para a incessante procura

1
Neste sentido, ver E. Fromm, sobretudo O coração do homem, excelente livro, no
qual ele discute claramente a frustração do não-atuar e suas conseqüências.
2
“Impedido de comprometer-se verdadeiramente” significa, para nós, a situação na
qua l as grandes maiorias encontram-se manipuladas por minorias, através de
ordens. Estas grandes maiorias têm a impressão de que se comprometem, quando,
na verdade, são induzidas em seu “compromisso”. Escolhem entre as opções (no
melhor dos casos) que as minorias lhes indicam, quase sempre manhosamente, pela
propaganda. Existe toda uma bibliografia sobre este assunto. Sugerimos,
contudo, a obra de Fromm, já citada, e La élite dei Poder, de Wright Mills,
Fondo de Cultura Económica, México.
da humanização, seu
compromisso como profissional, além de tudo isto, é uma dívida que assumiu ao
fazer- se profissional.
Seu compromisso como
profissional, sem dúvida, pode dicotomizar- se de seu compromisso original de
homem. O compromisso, como um quefazer radical e totalizado, repele as
racionalizações. Não posso nas 2as feiras assumir compromisso como homem, para
nas 3as feiras assumi- lo como profissional. Uma vez que “profissional” é
atributo de homem, não posso, quando exerço um quefazer atributivo, negar o
sentido profundo do quefazer substantivo e original. Quanto mais me capacito
como profissional, quanto mais sistematizo minhas experiências, quanto mais me
utilizo do patrimônio cultural, que é patrimônio de todos e ao qual todos devem
servir, mais aumenta minha responsabilidade com os homens. Não posso, por isso
mesmo, burocratizar meu compromisso de profissional, servindo, numa inversão
dolosa de valores, mais aos meios que ao fim do homem. Não posso me deixar
seduzir pelas tentações míticas, entre elas a da minha escravidão às técnicas,
que, sendo elaboradas pelos homens, são suas escravas e não suas senhoras.
Não devo julgar- me, como profissional,
“habitante” de um mundo estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores
dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos
“ignorantes e incapazes”. Habitantes de um gueto, de onde saio messianicamente
para salvar os “perdidos”, que estão fora. Se procedo assim, não me comprometo
verdadeiramente como profissional nem como homem. Simplesmente me alieno.
Todavia, existe algo que
deve ser destacado. Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo,
mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade –, inserção nela, ele implica
indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só é válido
quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é conseqüente quando
está fundado cientificamente. Envolta, portanto, no compromisso do
profissional, seja ele quem for, está a exigência de seu constante aperfeiçoamento,
de superação do especialismo, que não é o mesmo que especialidade. O
profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua
forma de esta sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão
ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos.
Não é possível um
compromisso verdadeiro com a realidade, e com os homens concretos que nela e
com ela estão, se desta realidade e destes homens se tem uma consciência
ingênua. Não é possível um compromisso autêntico se, àquele que se julga
comprometido, a realidade se apresenta como algo dado, estático e imutável. Se
este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques. Se não
a vê e não a capta como uma totalidade, cujas partes se encontram em permanente
interação. Daí sua ação não poder incidir sobre as partes isoladas, pensando
que assim transforma a realidade, mas sobre a totalidade. É transformando a
totalidade que se transformam as partes e não o contrário. No primeiro caso,
sua ação, que estaria baseada numa visão ingênua, meramente “focalista” da
realidade, não poderia constituir um compromisso.
Um profissional, por
exemplo, para quem a Reforma Agrária é apenas um instrumento jurídico que
normaliza uma sociedade em transformação, sem conseguir apreendê- la em sua
complexidade, em sua globalidade, não pode em termos concretos comprometer- se
com ela, ainda que ideologicamente a aceite.
A questão é que a Reforma
Agrária, como um processo global, não é algo que, não existindo anteriormente,
passa a existir completa e acabadamente, com a instauração de uma estrutura
nova. A Reforma Agrária, por ser um processo, é algo dinâmico. Dá- se no
domínio humano. As relações homem - realidade, que se verificavam na estrutura
anterior, necessariamente deixaram sua marca profunda na forma de estar sendo
do camponês. Mudada a velha estrutura, através da Reforma, se inevitável é que,
cedo ou tarde, a estrutura instaurada condicione novas formas de pensar e de
atuar, resultantes das novas relações homem – realidade, isto não
significa que essa mudança se dê instantaneamente.
O compromisso, portanto, de um profissional da
Reforma Agrária que a veja sob esta visão criticada, não pode ser verdadeiro,
não pode ser o compromisso do profissional, em cuja ação de caráter técnico se
esquece do homem ou se o minimiza, pensando, ingenuamente, que existe o dilema
humanismo – tecnologia. E, respondendo ar desafio do falso dilema 3, opta pela técnica, considerando que a perspectiva humanista é uma
forma de retardar as soluções mais urgentes. O erro desta concepção é tão
nefasto como o erro da sua contrária – a falsa concepção do humanismo –, que vê
na tecnologia a razão dos males do homem moderno. E o erro básico de ambas, que
não podem oferecer a seus adeptos nenhuma forma real de compromisso, está em
que, perdendo elas a dimensão da totalidade, não percebem o óbvio: que
humanismo e tecnologia não se excluem. Não percebem que o primeiro implica a
segunda e vice- versa. Se o meu compromisso é realmente com o homem concreto,
com a causa de sua humanização, de sua libertação, não posso por isso mesmo
prescindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais me vou instrumentando
para melhor lutar por esta causa.
Por isso também não posso
reduzir o homem a um simples objeto da técnica, a um autômato manipulável.
Quase sempre, téc nicos de boa vontade, embora ingênuos, deixam- se
levar pela tentação tecnicista (mitificação da técnica) e, em nome do que
chamam “necessidade de não perder tempo”, tentam, verticalmente, substituir os
procedimentos empíricos do povo (camponeses, por exemplo) por sua técnica.
Partem do pressuposto
verdadeiro “de que é, não só necessário, mas urgente, aumentar a produção
agrícola”. Uma das “exigências para consegui- la está na mudança tecnológica
que deve verificar- se”. Outro pressuposto válido.
No entanto, ao desconhecer que tanto sua técnica como os procedimentos
empíricos dos camponeses são manifestações culturais e, deste ponto de vista,
ambas válidas, cada qual em sua medida, e que, por isso, não podem ser
mecanicamente substituídos, enganam-se e já não podem comprometer- se.
Terminam, então, por cair
nesta irônica contradição: “para não perder tempo” o que fazem é perdê-lo.
Deformados pela
acriticidade, não são capazes de ver o homem na sua totalidade, no seu
quefazer-ação- reflexão, que sempre se dá no mundo e sobre ele. Pelo contrário,
será mais fácil, para conseguir seus objetivos, ver o homem como uma “lata”
vazia que vão enchendo com seus “depósitos” técnicos. Mas ao desenvolver desta
forma sua ação, que tem sua incidência neste “homem lata”, podemos
melancolicamente perguntar: “onde está seu compromisso verdadeiro com o homem,
com sua humanização?”

3 O autor não entende por humanismo, neste como em outros
estudos seus, as belas artes, a formação clássica, aristocrática, a erudição,
nem tampouco um ideal abstrato de bom homem. O humanismo é um compromisso
radical com o homem concreto. Compromisso que se orienta no sentid o de
transformação de qualquer situação objetiva na qual o homem concreto esteja
sendo impedido de ser mais.
Todavia em nossos países há sem dúvida uma sombra que ameaça
permanentemente o compromisso verdadeiro. Ameaça que se concretiza na
autenticidade do compromisso. Estamos nos referindo à alienação (ou alheamento)
cultural que sofrem nossas sociedades4 .
Com o centro de decisão econômica e cultural, em grande parte fora delas
(portanto, sociedades de economia periférica, dependente, exportadora de matérias-
primas e importadoras não somente de produtos manufaturados, mas também de
idéias, de técnicas, de modelos), são sociedades “seres para outro”.
Assim, o primeiro grande obstáculo que se apresenta nestas sociedades ao
compromisso autêntico encontra- se na falta de autenticidade de seu próprio ser
dual. Estas sociedades são e não são elas próprias.
Na medida em que, em grande parte, para solucionar seus problemas,
importam técnicas e tecnologias, sem a devida “redução sociológica” destas a
suas condiç ões ob jetivas (não necessariamente idênticas às das sociedades
metropolitanas, onde se desenvolvem estas tecnologias importadas), não podem
proporcionar as condições para o compromisso autêntico.
Não há técnicas neutras
que possam ser transplantadas de um contexto a outro. A alienação do
profissional não lhe permite perceber esta obviedade.
Seu compromisso se desfaz na medida em que o instrumento para sua ação é
um instrumento estranho, às vezes antagônico, à sua cultura.5
O alienado, seja profissional ou não, pouco importa, não distingue o ano
do calendário do ano histórico. Não percebe que existe uma não-
contemporaneidade do coetâneo.
Todas estas manifestações da alienação e outras mais, cuja análise
detalhada não nos cabe aqui fazer, explicam a inibiç ão da criatividade no
período da alienação. Esta, geralmente, produz uma timidez, uma insegurança, um
medo de correr o risco da aventura de criar, sem o qual não há criação. No
lugar deste risco que deve ser corrido (a existência humana é risco) e que tamb
ém caracteriza a coragem do compromisso, a alienação estimula o formalismo, que
funciona como uma espécie de cinto de segurança.
Daí o homem alienado,
inseguro e frustrado, ficar mais na forma que no conteúdo; ver as coisas mais
na superfície que em seu interior.

4
De algum tempo para cá, as sociedades latino-americanas começam a pôr-se à
prova, historicamente. Algumas mais que outras. Começam a tentar uma volta
sobre si mesmas, o que as leva a se auto - objetivarem, e, assim,
descobrirem-se alienadas. Se esta descoberta não significa ainda a desalienação
- admiti-lo seria assumir uma postura idealista – é, contudo, motivadora para
que a sociedade inicie a procura de sua concretização.
5 Esta é a razão pela qual defendemos (para bolsistas
nacionais que vão estudar em cursos de formação ou aperfeiçoa-mento em centros
estrangeiros de outro nível econômico e tecnológico) um curso prévio e profundo
sobre seu país, sobre sua realidade histórica, econômica, social e cultural,
sobre as condições concretas de seu atuar, etc. Muitos dos jovens
latino-americanos, ao voltarem a seus países, sentem-se como estrangeiros
frustrados ou reforçam o número dos transplantes de experiências de outro
espaço e de outro tempo histórico. São mais compromissos inautênticos.
Seu “pensamento” não tem força instrumental porque nasce de seu contexto
para voltar a ele. Constitui- se na nostalgia de mundos alheios e distantes.
Seu “pensamento”, finalmente, não tem força, nem para o seu mundo, porque dele
não nasceu, nem para o outro, o mundo imaginário da sua nostalgia.
Desta forma, como comprometer- se?
Entretanto, no momento em
que a sociedade se volta sobre si mesma e se inscreve na difícil busca de sua
autenticidade, começa a dar evidentes sinais de preocupação pelo seu projeto
histórico. Quanto mais cresce esta preocupação, mais desfavorável se torna o
clima para o compromisso.
Estamos convencidos de
que o momento histórico da América Latina exige de seus profissionais uma séria
reflexão sobre sua realidade, que se transforma rapidamente, e da qual resulte
sua inserção nela. Inserção esta que, sendo crítica, é compromisso verdadeiro.
Compromisso com os destinos do país. Compromisso com seu povo. Com o homem
concreto. Compromisso com o ser mais deste homem.
Se, numa sociedade
preponderantemente alienada, o profissional, pela natureza mesma da sociedade
estruturada hierarquicamente, é um privilegiado, numa sociedade que se está
abrindo o profissional é um comprometido ou deve sê-lo.
Fugir da concretização
deste compromisso é não só negar- se a si mesmo como negar o projeto nacional.
A Educação e o
Processo de Mudança Social
1. INTRODUÇÃO
Não é possível fazer uma reflexão sobre o que
é a educação sem refletir sobre o pró prio homem.
Por isso, é preciso fazer
um estudo filosófico- antropológico. Comecemos por pensar sobre nós mesmos e
tratemos de encontrar, na natureza do homem, algo que possa constituir o núcleo
fundamental onde se sustente o processo de educação.
Qual seria este núcleo captável a partir de
nossa própria experiência existencial?
Este núcleo seria o inacabamento ou a
inconclusão do homem.
O cão e a árvore também são inacabados, mas o homem se sabe inacabado e
por isso se educa. Não haveria educação se o homem fosse um ser acabado. O
homem pergunta-se: quem sou? de onde venho? onde posso estar? O homem pode
refletir sobre si mesmo e colocar- se num determinado momento, numa certa
realidade: é um ser na busca constante de ser mais e, como pode fazer esta auto-
reflexão, pode descobrir-se como um ser inacabado, que está em constante busca.
Eis aqui a raiz da educação.
A educação é uma resposta da finitude da infinitude. A educação é
possível para o homem, porque este é inacabado e sabe- se inacabado. Isto leva-
o à sua perfeição. A educação, portanto, implica uma busca realizada por um
sujeito que é o homem. O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não
pode ser o objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém.
Por outro lado, a busca deve ser algo e deve traduzir- se em ser mais: é
uma busca permanente de “si mesmo” (eu não posso pretender que meu filho seja
mais era minha busca e não na dele).
Sem dúvida, ninguém pode buscar na exclusividade, individualmente. Esta
busca solitária poderia traduzir- se em um ter mais, que é uma forma de ser
menos. Esta busca deve ser feita com outros seres que também procuram ser mais
e em comunhão com outras ”consciências, caso contrário se faria de umas
consciências, objetos de outras. Seria “coisificar” as consciências.
Jaspers disse: “Eu sou na
medida em que os outros também são.”
O homem não é uma ilha. É
comunicação. Logo, há uma estreita relação entre comunhão e busca.
2. SABER-IGNORÂNCIA
A educação tem caráter
permanente. Não há seres educados e não educados. Estamos todos nos educando.
Existem graus de educação, mas estes não são absolutos.
O homem, por ser
inacabado, incompleto, não sabe de maneira absoluta. Somente Deus sabe de
maneira absoluta.
A sabedoria parte da ignorância. Não há ignorantes absolutos. Se nu m
grupo de camponeses conversarmos sobre colheitas, devemos ficar atentos para a
possibilidade de eles saberem muito mais do que nós.
Se eles sabem selar um cavalo e sabem quando vai chover, se sabem
semear, etc..., não podem ser ignorantes (durante a Idade Média, saber selar um
cavalo representava alto nível técnico), o que lhes falta é um saber
sistematizado.
O saber se faz através de uma superação constante. O saber superado já é
uma ignorância. Todo saber humano tem em si o testemunho do novo saber que já
anuncia. Todo saber traz consigo sua própria superação. Portanto, não há saber
nem ignorância absoluta: há somente uma relativização do saber ou da
ignorância.
Por isso, não podemos nos colocar na posição do ser superior que ensina
um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que comunic a um
saber relativo a outros que possuem outro saber relativo. (É preciso saber
reconhecer quando os educandos sabem mais e fazer com que eles também saibam
com humildade.)
3. AMOR-DESAMOR
O amor é uma tarefa do sujeito. É falso dizer que o amor não espera
retribuições. O amor é uma intercomunic ação íntima de duas consciências que se
respeitam. Cada um tem o outro, coma sujeito de seu amor. Não se trata de
apropriar-se do outro.
Nesta sociedade há uma ânsia de impor- se aos demais numa espécie de
chantagem de amor. Isto é uma distorção do amor. Quem ama o faz amando os
defeitos e as qualidades do ser amado.
Ama- se na medida em que
se busca comunicação, integração a partir da comunicação com os demais.
Não há educação sem amor. O amor implica luta contra o egoísmo. Quem não
é capaz de amar os seres inacabados não pode educar. Não há educação imposta,
como não há amor imposto. Quem não ama não compreende o próximo, não o
respeita.
Não há educação do medo.
Nada se pode temer da educação quando se ama.
4. ESPERANÇA-DESESPERANÇA
Com base no inacabamento, nasce o problema da esperança e da
desesperança. Podemos fazer deles o objeto de nossa reflexão. Eu espero na
medida em que começo a busca, pois não seria possível buscar sem esperança.
Uma educação sem esperança não é educação. Quem não tem esperança na
educação dos camponeses deverá procurar trabalho noutro lugar.
5. O HOMEM – UM SER DE RELAÇÕES
O homem está no mundo e
com o mundo. Se apenas estivesse no mundo não haveria transcendência nem se
objetivaria a si mesmo. Mas como pode objetivar- se, pode também distinguir
entre um eu e um não- eu.
Isto o torna um ser capaz de relacionar- se; de sair de si; de projetar-
se nos outros; de transcender. Pode distinguir órbitas existenciais distintas
de si mesmo.
Estas re lações não se
dão apenas com os outros, mas se dão no mundo, com o mundo e pelo mundo (nisto
se apoiaria o problema da religião).
O animal não é um ser de relações, mas de
contatos. Está no mundo e não com o mundo.
6. CARACTERÍSTICAS
A primeira característica
desta relação é a de refletir sobre este mesmo ato. Existe uma reflexão do
homem face à realidade. O homem tende a captar uma realidade, fazendo-a objeto
de seus conhecimentos. Assume a postura de um sujeito cognoscente de um objeto
cognoscível. Isto é próprio de todos os homens e não privilégio de alguns (por
isso a consciência reflexiva deve ser estimulada, conseguir que o educando
reflita sobre sua própria realidade).
Quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o
desafio dessa realidade e procurar soluções. Assim, pode transformá - la e com
seu trabalho pode criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias.
O homem enche de cultura
os espaços geográficos e históricos. Cultura é tudo o que é criado pelo homem.
Tanto uma poesia como uma frase de saudação. A cultura consiste em recriar e
não em repetir. O homem pode fazê- lo porque tem uma consciência capaz de
captar o mundo e transformá - lo. Isto nos leva a uma segunda característica da
relação: a conseqüência, resultante da criação e recriação que assemelha o
homem a Deus. O homem não é, pois, um homem para a adaptação. A educação não é
um processo de adaptação do indivíduo à sociedade. O homem deve transformar a
realidade para ser mais (a propaganda política ou comercial fazem do homem um
objeto).
O homem se identifica com
sua própria ação: objetiva o tempo, temporaliza- se, faz- se homem-história.
O animal está sob o tempo. Para ele não há ontem nem amanhã. Está sob
uma eternidade esmagadora. Está encharcado pelo tempo e por isso não tem tempo.
Para Deus também não existe tempo; porque está sobre ele. O homem ao
contrário está no tempo e abre uma janela no tempo: dimensiona-se, tem
consciência de um ontem e de um amanhã.
O homem primitivo viveu
sob o tempo, e quando teve c onsciência do tempo se historicizou.
Deus vive no presente e
para ele o meu futuro é presente. Por isso não podemos dizer que Deus prevê,
mas que vê tudo no seu presente.
As relações do homem são também temporais, transcendentes. O homem pode
transcender sua imanência e estabelecer relação com os seres infinitos. Mas
esta relação não pode ser uma domesticação, submissão ou resignação diante do
ser infinito.
As relações ou contatos
dos animais são reflexos. Apesar de a psicologia revelar certa inteligência
(como a de crianças de 3 anos) em alguns animais, esta inteligência se
restringe ao mecânico e ao reflexo.
Em segundo lugar, as relações dos animais são inconseqüentes, já que
estes não têm liberdade para criar ou não criar. As abelhas, por exemplo, não
podem fazer um mel especial para consumidores mais exigentes. Estão
determinadas pelo instinto.
Uma educação que pretendesse adaptar o homem estaria matando suas
possibilidades de ação, transformando-o em abelha. A educação deve estimular a
opção e afirmar o homem como homem. Adaptar é acomodar, não transformar.
O homem integra - se e não se acomoda. Existe,
contudo, uma adaptação ativa.
Quanto mais dirigidos são os homens pela propaganda ideológica, política
ou comercial, tanto mais são objetos e massas.
Quanto mais o homem é rebelde e indócil, tanto mais é criador, apesar de
em nossa sociedade se dizer que o rebelde é um ser inadaptado.
Os contatos além disso não são temporais,
porque os animais não podem fazer sua própria história.
Os contatos são intranscendentes, porque os
animais estão submersos em sua imanência.
Em resumo:
As relações são: Os contatos são:
Reflexivas Reflexos
Conseqüentes Inconseqüentes
Transcendentes Intranscendentes
Temporais Intemporais
7. O ÍMPETO CRIADOR DO HOMEM
Em todo homem existe um
ímpeto criador. O ímpeto de criar nasce da inconclusão do homem. A educação é
mais autêntica quanto mais desenvolve este ímpeto ontológico de criar. A
educação deve ser desinibidora e não restritiva. É necessário darmos
oportunidade para que os educandos sejam eles mesmos.
Caso contrário
domesticamos, o que significa a negação da educação. Um educador que restringe
os educandos a um plano pessoal impede- os de criar. Muitos acham que o aluno
deve repetir o que o professor diz na classe. Isto significa tomar o sujeito
como instrumento.
O desenvolvimento de uma
consciência crítica que permite ao homem transformar a realidade se faz cada
vez mais urgente. Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão
respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográfic os e
vão fazendo história pela sua própria atividade criadora.
8. CONCEITO DE SOCIEDADE EM TRANSIÇÃO
Uma determinada época histórica é constituída por determinados valores,
com formas de ser ou de comportar-se que buscam plenitude.
Enquanto estas concepções se envolvem ou são
envolvidas pelos homens, que procura a plenitude, a sociedade está em constante
mudança. Se os fatores rompem o equilíbrio, os valores começam a decair;
esgotam- se, não correspondem aos novos anseios da sociedade. Mas como esta não
morre, os novos valores começam a buscar a plenitude. A este período, chamamos
transição. Toda transição é mudança, mas não vice- versa (atualmente estamos
numa época de transição).
Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um
ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo
que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de
saber o que fomos e o que somos, para saber o que seremos.
9. CARACTERÍSTICAS DE UMA SOCIEDADE FECHADA
A sociedade fechada latino- americana foi uma sociedade colonial. Em
algumas formas básicas de seu comportamento observamos que, geralmente, o ponto
de decisão econômica desta sociedade está fora dela. Isto signific a que este
ponto está dentro de outra sociedade. Esta outra é a sociedade matriz: Espanha
ou Portugal em nossa realidade latino- americana. Esta sociedade ma triz é a
que tem opções; em troca, as demais sociedades somente recebem ordens. Assim é
possível falar de “sociedade-sujeito” e de “sociedade- objeto”. Esta última
opera necessariamente como um satélite comandado pelo seu ponto de decisão: é
uma sociedade periférica e não reflexiva.
O ponto de decisão ou sociedade matriz fortifica- se e procura na outra
sociedade a matéria - prima e a transforma em produtos manufaturados, que vende
às mesmas sociedades- objetos. O custo, a importação, a exportação, o preço,
etc., são determinados pela sociedade- sujeito. Não cabe à sociedade dominada
decidir. Por isso não há nela mercado interno; sua economia cresce para fora, o
que significa não crescer.
O mercado é externo à sociedade-objeto e tem características cíclicas:
madeira, açúcar, ferro, café, suscessivamente. Esta sociedade é predatória, não
tem povo: tem massa. Não é uma entidade participante.
Nestas sociedades se instala uma elite que governa conforme as ordens da
sociedade diretriz. Esta elite impõe- se às massas populares. Esta imposição
faz com que ela esteja sobre o povo e não com o povo. As elites
prescrevem as determinações às massas. Estas massas estão sob o processo
histórico. Sua participação na história é indireta. Não deixam marcas como
sujeitos, mas como objetos.
A própria organização destas sociedades se estrutura
de forma rígida e autoritária. Não há mobilidade vertical ascendente: um filho
de sapateiro dificilmente pode chegar a ser professor universitário. Tampouco
há mobilidade descendente: o filho de um professor universitário não pode
chegar a ser sapateiro, pelos preconceitos de seu pai. De modo que cada um
reproduz seu status. Este é ganho geralmente por herança e não por valor
ou capacidade.
A sociedade fechada se caracteriza pela conservação do status ou
privilégio e por desenvolver todo um sistema educacional para manter este status.
Estas sociedades não são tecnológicas, são servis. Há uma dicotomia entre o
trabalho manual e o intelectual. Nestas sociedades nenhum pai gostaria que seus
filhos fossem mecânicos se pudessem ser médicos, mesmo que tivessem vocação de
mecânicos.
Consideram o trabalho manual degradante; os intelectuais são dignos e os
que trabalham com as mãos são Indignos. Por isso as escolas técnicas se enchem
de filhos das classes populares e não das elites.
Também se caracterizam
pelo analfabetismo e pelo desinteresse pela educação básica dos adultos.
10. SOCIEDADE ALIENADA
Quando o ser humano pretende imitar a outrem, já não é ele mesmo. Assim
também a imitação servil de outras culturas produz uma sociedade alienada ou
sociedade-objeto. Quanto mais alguém quer ser outro, tanto menos ele é ele
mesmo.
A sociedade alienada não
tem consciência de seu próprio exigir. Um profissional alienado é um ser
inautêntico. Seu pensar não está comprometido consigo mesmo, não é responsável.
O ser alienado não olha para a realidade com critério pessoal mas com olhos
alheios. Por isso vive uma realidade imaginária e não a sua própria realidade
objetiva. Vive através da visão de outro país. Vive-se Rússia ou Estados
Unidos, mas não se vive Chile, Peru, Guatemala ou Argentina.
O ser alienado não procura um mundo autêntico. Isto provoca uma
nostalgia: deseja outro país e lamenta ter nascido no seu. Tem vergonha da sua
realidade. Vive em outro país e trata de imitá- la e se crê culto quanto menos
nativo é. Diante de um estrangeiro tratará de esconder as populações marginais e
mostrará bairros residenciais, porque pensa que as cidades mais cultas são as
que têm edifícios mais altos. Como o pensar alie- nado não é autêntico, também
não se traduz numa ação Concreta.
É preciso partir de nossas possibilidades para sermos nós mesmos. O erro
não está na imitação, mas na passividade com que se recebe a imitação ou na
falta de análise ou de autocrítica.
Julga- se que os bolivianos ou panamenhos são preguiçosos, porque são
bolivianos ou panamenhos. Por isso procura- se ser menos boliviano ou
panamenho.
Acredita- se que ser grande é imitar os valores de outras nações. Sem
dúvida, a grandeza se expressa através da própria vocação nativa.
Outro exemplo de
alienação é a preferência pelos técnicos estrangeiros em detrimento dos nacionais.
A sociedade alienada não
se conhece a si mesma; é imatura, tem comportamento exemplarista, trata de
conhecer a realidade por diagnósticos estrangeiros.
Os dirigentes solucionam
os problemas com fórmulas que deram resultado no estrangeiro. Fazem importação
de problemas e soluções. Não conhecem a realidade nativa.
Antes de admitir soluções
estrangeiras, teria de se perguntar quais eram as condições e características
que motivaram esses problemas. Porque o ano de 1966 da Rússia ou dos Estados
Unidos não é o mesmo 1966 do Chile ou da Argentina. Somos contemporâneos no
tempo, mas não na técnica.
Além do mais, os técnicos estrangeiros chegam com soluções fabulosas,
sem um julgamento prévio, que não correspondem à nossa idiossincrasia.
As soluções importadas devem ser reduzidas sociologicamente, isto é,
estudadas e integradas num contexto nativo. Devem ser criticadas e adaptadas;
neste caso, a importação reinventada ou recriada. Isto já é desalienação, o que
não significa senão autovaloração.
Geralmente, as elites acusam o povo de fraqueza ou incapacidade e por
isso suas soluções não dão resultado. Assim, as atitudes dos dirigentes oscilam
entre um otimismo ingênuo ou um pessimismo ou desespero. É ingenuidade pensar
que a simples importação de soluções salvará o povo. Isso se passa entre os
candidatos que, por não conhecerem a fundo os problemas do poder, fazem mil
promessas e ao chegar ao poder encontram mil obstáculos que, às vezes,
os fazem cair no desânimo. Não se trata de desonestidade, mas de ingenuidade.
11. UMA SOCIEDADE EM TRANSIÇÃO
A sociedade fechada, quando sofre pressão de determinados fatores
externos, se espedaça mas não se abre; uma sociedade está se abrindo quando
começa o pro cesso de desalienação com o surgimento de novos valores. Assim,
por exemplo, a idéia da participação popular no poder. Nesta sociedade em
transição se está numa posição progressista ou reacionária; não se pode estar
com os braços cruzados. É preciso procurar uma nova escala de valores. O velho
e o novo têm valor na medida em que são válidos. Ou se dirige a sociedade para
ontem ou para o amanhã que se anuncia hoje. As atitudes reacionárias são as que
não satisfazem o processo e os valores requeridos pela sociedade de hoje.
Existe uma série de fenômenos soc iológicos que têm ligação com o papel
do educador. Nesta etapa da sociedade existem, primeiramente, as massas
populares espectadoras passivas. Quando a sociedade se incorpora nelas, começa
um processo chamado democratização fundamental. É um crescente ímpeto para
participar. As massas populares começam a se procurar e a procurar seu processo
histórico. Com a ruptura da sociedade, as massas começam a emergir e esta
emersão se traduz numa exigência das massas por participar: é a sua presença no
processo.
As massas descobrem na educação um canal para um novo status e
começam a exigir mais escolas. Começam a ter uma apetência que não tinham.
Existe uma cor- respondência entre a manifestação das massas e a reivindicação.
É o que chamamos educação das massas.
As massas passam a exigir voz e voto no processo político da sociedade.
Percebem que outros têm mais facilidade que eles e descobrem que a educação
lhes abre uma perspectiva. Às vezes emergem em posição ingênua e de rebelião e
não revolucionária ao se defrontarem com os obstáculos. Começam a exigir e a
criar problemas para as elites. Estas agem torpemente, esmagando as massas e
acusando- as de comunismo. As massas que rem participar mais na sociedade. As
elites acham que isto é um absurdo e criam instituições de assistência social
para domesticá- las. Não prestam serviços, atuam paternalisticamente, o que é
uma forma de colonialismo. Procura- se tratá- las como crianças para que
continuem sendo crianças.
Uma sociedade justa dá oportunidade às massas para que tenham opções e
não a opção que a elite tem, mas a própria opção das massas. A consciência
criadora e comunicativa é democrática.
As convicções devem ser
profundas, porém nunca impostas aos demais; através do diálogo se tratará de
convencer com amor; o contrário seria sectarismo. O sectarismo não é crítica,
não ama, não dialoga, não comunica, não faz comunicados. No processo histórico,
os sectários comportam- se como inimigos; consideram- se donos da história. O
sectarismo pretende conquistar o poder com as massas, mas estas depois não
participam do poder. Para que haja revolução das massas é necessário que estas
participem do poder.
12. A “CONSCIÊNCIA BANCÁRIA” DA EDUCAÇÃO
As sociedades latino- americanas começam a se
inscrever neste processo de abertura, umas mais que outras, mas a educação
ainda permanece vertical. O professor ainda é um ser superior que ensina a
ignorantes. Isto forma uma consciência bancária. O educando recebe passivamente
os conhecimentos, tornando- se um depósito do educador. Educa- se para arquivar
o que se deposita. Mas o curioso é que o arquivado é o próprio homem, que perde
assim seu poder de criar, se faz
menos homem, é uma peça.
O destino do homem deve ser criar e transformar o mundo, sendo o sujeito de sua
ação.
A consciência bancária “pensa que quanto mais
se dá mais se sabe”. Mas a experiência revela que com este mesmo sistema só se
formam indivíduos medíocres, porque não há estímulo para a criação.
Por outro lado, quem aparece como criador é um inadaptável e deve
nivelar- se aos medíocres. O professor arquiva conhecimentos porque não os
concebe como busca e não- busca, porque não é desafiado pelos seus alunos. Em
nossas escolas se enfatiza muito a consciência ingênua.
13. A CONSCIÊNCIA E SEUS ESTADOS
A consciência se reflete
e vai para o mundo que conhece: é o processo de adaptação. A consciência é
temporalizada. O homem é consciente e, na medida em que conhece, tende a se
comprometer com a própria realidade.
O primeiro estado da
consciência é a intransitividade (tomou- se este termo da noção gramatical de
verbo in- transitivo: aquele que não deixa passar sua ação a outro). Existe
neste estado uma espécie de quase compromisso com a realidade. A consciência
intransitiva, contudo, não é consciência fechada. Resulta de um estreitamento
no poder de captação da consciência. É uma escuridão a ver ou ouvir os desafios
que estão mais além da órbita vegetativa do homem. Quanto mais se distancia da
captação da realidade, mais se aproxima da captação mágica ou supersticiosa da
realidade.
A intransitividade produz
uma consciência mágica. As causas que se atribuem aos desafios escapam à
crítica e se tornam superstições.
Se uma comunidade sofre
uma mudança, econômica por exemplo, a consciência se promove e se transforma em
transitiva. Num primeiro momento esta consciência é ingênua. Em grande parte é
mágica. Este passo é automático, mas o passo para a consciência crítica não é.
Somente se dá com um processo educativo de conscientização. Este passo exige um
trabalho de promoção e critização. Se não se faz este processo educativo só se
intensifica o desenvolvimento industrial ou tecnológico e a consciência sofrerá
um abalo e será uma consciência fanática. Este fanatismo é próprio do homem
massificado.
Na consciência ingênua há
uma busca de compromisso; na crítica há um compromisso e, na fanática, uma
entrega irracional.
A consciência
intransitiva responde a um desafio com ações mágicas porque a compreensão é
mágica. Geral- mente em todos nós existe algo de consciência mágica: o
importante é superá - la.
CARACTERISTICAS DA CONSCIÊNCIA INGÊNUA
1. Revela uma certa
simplicidade, tendente a um simplismo, na interpretação dos problemas, isto é,
encara um desafio de maneira simplista ou com simplicidade. Não se aprofunda na
casualidade do próprio fato. Suas conclusões são apressadas, superficiais.
2. Há também uma tendência a considerar que o passado foi melhor. Por
exemplo: os pais que se queixam da conduta de seus filhos, comparando-a ao que
faziam quando jovens.
3. Tende a aceitar formas
gregárias ou massificadoras de comportamento. Esta tendência pode levar a uma consciência
fanática.
4. Subestima o homem simples.
5. É impermeável à
investigação. Satisfaz- se com as experiências. Toda concepção científica para
ela é um jogo de palavras. Suas
explicações são mágicas.
6. É frágil na discussão dos
problemas. O ingênuo parte do princípio de que sabe tudo. Pretende ganhar a
discussão com argumentações frágeis. É polêmico, não pretende esclarecer. Sua
discussão é feita mais de emocionalidades que de criticidades: não procura a
verdade; trata de impô- la e procurar meios históricos para convencer com suas
idéias. Curioso ver como os ouvintes se deixam levar pela manha, pelos gestos e
pelo palavreado. Trata de
brigar mais, para ganhar mais.
7. Tem forte conteúdo passional. Pode cair no
fanatismo ou sectarismo.
8. Apresenta fortes compreensões mágicas.
9. Diz que a realidade é estática e não mutável.
CARACTERÍSTICA DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA
1.
Anseio de profundidade na análise de problemas. Não se satisfaz com as
aparências. Pode- se reconhecer desprovida de meios para a análise do problema.
2. Reconhece que a realidade
é mutável.
3. Substitui situações ou
explicações mágicas por princípios autênticos de causalidade.
4. Procura verificar ou
testar as descobertas. Está sempre disposta às revisões.
5.
Ao se deparar com um fato, faz o possível para livrar- se de
preconceitos. Não somente na captação, mas também na análise e na resposta.
6.
Repele posições quietistas. É intensamente inquieta. Torna- se mais
crítica quarteto mais reconhece em sua quietude a inquietude, e vice-versa.
Sabe que é na medida que é e não pelo que
parece. O essencial para
parecer algo é ser algo; é a base da autenticidade.
7. Repele toda transferência
de responsabilidade e de autoridade e aceita a delegação das mesmas.
8. É indagadora, investiga,
força, choca.
9. Ama o diálogo, nutre- se
dele.
10. Face ao novo, não repele
o velho por ser velho, nem aceita o novo por ser novo, mas aceita-os
na medida em que são
válidos.
O Papel do
Trabalhador Social no Processo de Mudança*
Parece- nos indiscutível
que nossa primeira preocupação, em se tratando de discutir “o papel do
trabalhador social no processo de mudança”, deva ser a de refletir sobre esta
própria frase.
A principal vantagem desse procedimento é que a frase proposta revelar-
se-á diante de nós no seu sentido profundo. A análise crítica da frase nos
possibilitará perceber a relação de seus termos, na formação de um pensamento
estruturado, que envolve um tema significativo.
Não será possível – diga-se desde já – a discussão do tema contido na
frase proposta se não se tiver dele uma compreensão comum, mesmo partindo de
diferentes pontos de vista.
Esta análise crítica, que nos leva a uma apreensão mais profunda do
significado da frase, supera a visão ingênua, que, sendo simplista, nos deixa
na periferia de tudo o que tratamos.
Para o ponto de vista
crítico, que aqui defendemos, o ato de olhar implica noutro: o de ad- mirar (**). Admiramos, e, ao penetrarmos no que foi admirado, o
olhamos de dentro e daí de dentro aquilo que nos faz ver.
Na ingenuidade, que é uma
forma “desarmada” de enfrentamento da realidade, apenas olhamos e, porque não
ad- miramos, não podemos adentrar o que é olhado, não vendo o que está sendo
olhado. Por isso, é necessário que admiremos a frase proposta para, olhando- a
de dentro, reconhecê- la como algo que jamais poderá ser reduzido ou rebaixado
a um simples clichê.
A frase em discussão não é um conjunto de meros sons com rótulo
estático, “uma frase feita”. Como dissemos, envolve um tema significativo. Ela
é, em si, um problema, um desafio.
Se apreciarmos a frase como um clichê, ficando na sua superfície,
provavelmente não faremos outra coisa que discutir sobre outros clichês, que
nos foram “depositados” ou, em outras palavras, sobre conceitos temáticos que
nos foram propostos como clichês.
Assim, um trabalho de análise crítica do texto proposto, que nos permita
a compreensão de seu contexto total, no qual se encontra o tema desafiador, vai
nos possibilitar outro trabalho fundamental: a separação do contexto nas suas
partes constitutivas.
Esta separação do contexto total em suas partes nos permite retornar a
ele, de onde partimos, pela operação de ad- mirar, alcançando, desta maneira,
uma compreensão mais vertical e também dinâmica de sua significação.
Se, depois da admiração do texto, que nos permitiu a compreensão do
contexto total, procedemos à sua separação, constatamos através desta interação
entre suas partes que, por isso mesmo, se nos apresentam como “co- responsáveis
pela significação do texto”.

* Parte deste texto foi traduzido e adaptado pelo
próprio autor e publicado no livro Ação cultural para a liberdade e outros
escritos, da Editora Paz e Terra (nota dos tradutores).
** Chamamos a atenção do leitor para a relação entre as
palavras “mirar” (olhar) e “ad-mirar”, no espanhol (nota dos,tradutores).
Ad- mirar, olhar por
dentro, separar para voltar a olhar o todo- ad- mirado, que é um ir para o
todo, um voltar para suas partes, o que significa separá- las, são operações
que só se dividem pela necessidade que o espírito tem de abstrair pa ra
alcançar o concreto. No - fundo são operações que se implicam dialeticamente.
Então, ao admirar por dentro a frase que contém um tema desafiador, ao
separá - la em seus elementos, descobrimos que o termo papel acha- se
modificado por uma expressão restritiva, que limita sua “extensão”: do trabalhador
social. Nesta, por outro lado, há um qualificativo, social, que incide
sobre a “compreensão” do termo trabalhador. 1
Esta subunidade da estrutura social, papel do trabalhador social,
liga- se à segunda, o processo de mudança, que representa, conforme
a compreensão da frase, “onde” o papel se cumpre através do conectivo
em.
Contudo, há algo a considerar depois desta análise. E que através dela
fica claro que o papel do trabalhador social se dá no processo de mudança. Esta
é sem dúvida a inteligência da frase em estudo.
Esta não será, contudo, a mesma conclusão à qual chegaremos quando
analisarmos não mais a própria frase, mas o quefazer do trabalhador social. Ao
fazê- lo descobriremos um equívoco na frase proposta, pois o papel do
trabalhador social não se dá no processo de mu-dança em si, mas num domínio
mais amplo. Domínio do qual a mudança é uma das dimensões.
Naturalmente, este
domínio específico no qual atua o trabalhador social é a estrutura social.
Por isso é que é preciso tomá- la na sua complexidade. Se não a
entendemos em seu dinamismo e em sua estabilidade, não teremos dela uma visão
crítica.
Efetivamente, a mudança e
a estabilidade, o dinamismo e o estático, constituem a estrutura social.
Não há nenhuma estrutura
que seja exclusivamente estática, como não há uma absolutamente dinâmica.
A estrutura social não poderia ser somente mutável, porque, se não
houvesse o oposto da mudança, sequer a conheceríamos. Em troca, não poderia ser
também só estática, pois se assim fosse já não seria humana, histórica, e, ao
não ser histórica, não seria estrutura social.
Não há permanência da mudança fora do estático, nem deste fora da
mudança. O único que permanece na estrutura social, realmente, é o jogo
dialético da mudança – estabilidade. Desta forma, a essência do ser da
estrutura social não é a mudança nem o estático, tomados isoladamente, mas a
“duração” da contradição entre ambos.2

1 A extensão de um termo é o número de indivíduos aos
quais se aplica o termo. No caso do termo papel, sua extensão é o conjunto de
quefazeres que se pode chamar de papel. A compreensão, por sua vez, é a soma de
qualidades que dão a significação do termo. Quanto maior é a compreensão de um
termo, menor é sua extensão ou vice-versa. Entre os termos homem e cientista,
este tem uma compreensão maior e uma ex-tensão menor. Todo cientista é homem
(genericamente falando), contudo, nem todo homem é cientista.
2 “Duração” é um conceito bergoniano, sinônimo de tempo
real: Bergson o opõe ao de tempo artificial ou quantitativo dos matemáticos e
dos físicos.
Considera a duração, como um processo, o aspecto mais importante da vida
humana.
De fato, na estrutura
social, não há estabilidade, nem mudança da mudança. O que há é a estabilidade
e a mudança de formas dadas. Por isso se observam aspectos de uma mesma
estrutura, visivelmente mutáveis, contraditórios que, alcançados pela “demora”
e pela “resistência” culturais, mantêm- se resistentes à transformação.
Mas se toda a estrutura social, que é histórica, tem como expressão de
sua forma de ser a “duração” da dialética mudança – estabilidade, é necessário
que se tenha dela uma visão crítica. Quem são? São “em si” algo independente da
realidade que comandam? Simples aparências?
Realmente, mudança e estabilidade não são um “em si”, algo separado ou
independente da estrutura; não são um engano da percepção.
Mudança e estabilidade resultam ambas da ação, do trabalho que o homem
exerce sobre o mundo. Como um ser de práxis, o homem, ao responder aos desafios
que partem do mundo, cria seu mundo: o mundo histórico-cultural.
O mundo de acontecimentos, de valores, de idéias, de instituições. Mundo
da linguagem, dos sinais, dos significados, dos símbolos.
Mundo da opinião e mundo do saber. Mundo da ciência, da religião, das
artes, mundo das relações de produção. Mundo finalmente humano.
Todo este mundo histórico-cultural, produto da práxis humana, se volta
sobre o homem, condicionando- o. Criado por ele, o homem não pode, sem dúvida,
fugir dele. Não pode fugir do condicionamento de sua própria produção.
Como dissemos antes, não há estabilidade da estabilidade, nem mudança da
mudança, mas estabilidade e mudança de algo.
Assim, dentro deste universo criado pelo homem, a mudança e a
estabilidade da sua própria criação aparecem como tendências que se
contradizem.
Esta é a razão pela qual não há mundo humano isento desta contradição.
Por isso, não se pode dizer do mundo animal que ele está sendo: o mundo
humano só é porque está sendo; e só está sendo na medida
em que se dialetizam a mudança e o estático.
Enquanto a mudança implica, em si mesma, uma constante ruptura, ora
lenta, ora brusca, da inércia, a estabilidade encarna a tendência desta pela
cristalização da criação. Enquanto a estrutura social se renova através da
mudança de suas formas, da mudança de suas instituições econômicas, políticas,
sociais, culturais, a estabilidade representa a tendência à normalização da
estrutura.3

Ao aplicar seu conceito de “duração”, para
caracterizar a contradição estabilidade-mudança como um processo que se dá
permanentemente no tempo vivido pelos homens, não estamos aceitando seu
intuicionismo na formação da realidade.
3 A cristalização de hoje é a mudança que se operou
ontem numa outra cristalização. Por isso é que nada de novo nasce de si mesmo,
mas sim do velho que antes foi novo. Por isso também tudo o que é novo, ao
tomar forma, faz seu “testa- mento” ao novo que nascerá dele, quando esgotar e
ficar velho.
Desta forma, não se pode estudar a mudança sem estudar a estabilidade;
estudar uma é estudar a outra. Assim também, tê- las como objeto da reflexão é
submeter à estrutura social a essa mesma reflexão; como refletir sobre esta é
refletir sobre aquelas.
Falar pois do papel do trabalhador social implica na análise da mudança
e da estabilidade como expressões da forma de ser da estrutura social.
Estrutura social que se lhe oferece como campo de seu quefazer.
Deste modo, o trabalhador social que atua numa realidade, a qual,
mudando, permanece para mudar nova- mente, precisa saber que, como homem,
somente pode entender ou explicar a si mesmo como um ser em relação com esta
realidade; que seu quefazer nesta realidade se dá com outros homens, tão
condicionados como ele pela realidade dialeticamente permanente e mutável e
que, finalmente, precisa conhecer a realidade na qual atua com os outros
homens.
Este conhecimento, sem
dúvida, não pode reduzir-se ao nível de pura opinião ( doxa) sobre a
realidade. Faz- se necessário que a área da simples doxa alcance o logos
(saber) e assim canalize para a percepção do ontos (essência da
realidade).
Este movimento da pura doxa ao logos não se faz, contudo,
com um esforço estritamente intelectualista, mas na indivisibilidade da
reflexão e da ação da práxis humana.
Na ação que provoca uma reflexão que se volta a ela, o trabalhador
social irá detectando o caráter preponderante da mudança ou estabilidade, na
realidade social na qual se encontra. Irá percebendo as forças que na realidade
social estão com a mudança e aquelas que estão com a permanência.
As primeiras, olhando para frente, no curso da história, que também é
futuridade que deve ser feita, têm uma atitude progressista; as segundas,
olhando para trás, pretendem parar o tempo e assumem uma posição anti- mudança.
É necessário, porém, que o trabalhador social se preocupe com algo já
enfatizado nestas considerações: que a estrutura social é obra dos homens e
que, se assim for, a sua transformação será também obra dos homens. Isto
significa que a sua tarefa fundamental é a de serem sujeitos e não objetos de
transformação. Tarefa que lhes exige, durante sua ação sobre a realidade, um
aprofunda- mento da sua tomada de consciência da realidade, objeto de atas
contraditórios daqueles que pretendem mantê- la como está e dos que pretendem
transformá - la.
Por isso, o trabalhador social não pode ser um homem neutro frente ao
mundo, um homem neutro frente à desumanização ou humanização, frente à
permanência do que já não representa os caminhos do humano ou à mudança destes
caminhos.
O trabalhador social,
como homem, tem que fazer sua opção. Ou adere à mudança que ocorre no sentido
da verdadeira humanização do homem, de seu ser mais, ou fica a favor da
permanência.
Isto não significa, contudo, que deva, em seu trabalho pedagógico, impor
sua opção aos demais. Se atua desta forma, apesar de afirmar sua opção pela
libertação do homem e pela sua humanização, está trabalhando de maneira
contraditória, isto é, manipulando; adapta- se somente à ação domesticadora do
homem que, em lugar de libertá- lo, o prende.
Deste modo, a opção feita pelo trabalhador social irá determinar tanto o
seu papel como seus métodos e suas técnicas de ação. É uma ingenuidade pensar
num papel abstrato, num conjunto de métodos e técnicas neutras para uma ação
que se dá entre homens, numa realidade que não é neutra. Isto só seria possível
se fosse possível um absurdo: que o trabalhador social não fosse um homem
submetido como os demais aos mesmos condicionamentos da estrutura social, que
exige
dele, como dos demais, uma opção frente às contradições constitutivas da
estrutura. Assim, se a opção do trabalhador social é pela antimudança, sua ação
e seus métodos se orientarão no sentido de frear as transformações. Em lugar de
desenvolver um trabalho, através do qual a realidade objetiva, a estrutura
social vá se desvelando a ele e aos homens com que trabalha num esforço crítico
comum, se preocupará por mitificar a realidade. Em lugar de ater- se a esta
situação problemática, que desafia a ele e aos homens com" que deveria
estar em comunicação, tenderá, pelo contrário, às soluções de caráter
assistencialista. Em lugar de sentir- se, como trabalhador social, um homem a
serviço da libertação, da humanização, vocação fundamental do homem, temendo a
libertação na qual vê uma ameaça ao que considera sua paz, se encaminha no
sentido da paralização. Encaminhar-se no sentido da paralização não é outra
coisa senão pretender, com ações e reações, “normalizar” a estrutura social
através da ênfase na estabilidade, no seu jogo com a mudança.4
O assistente social que
faz esta opção pode (quase sempre tenta) disfarçá- la, fingindo aderir à
mudança, mas ficando, sem dúvida, ou com certeza, nas meias mudanças, que é uma
forma de não mudar.
Um dos sinais da opção pela antimudança é a inquietude acrítica do
trabalhador social diante das conseqüências da mudança; é um receio quase
mágico à novidade, que é para ele sempre uma interrogação, cuja resposta parece
ameaçar seu status quo. Por isso que em métodos de ação não há lugar a
comunicação, para a colaboração, mas sim para a manipulação ostentiva ou
disfarçada.
O trabalhador social que opta pela antimudança não pode realmente
interessar- se pelo desenvolvimento de uma percepção crítica da realidade por
parte dos indivíduos. Não pode interessar-se pelo exercício de reflexão dos
indivíduos sobre a sua ação, sobre a própria percepção que possam ter da
realidade. Não lhe interessa a revisão da percepção condicionada pela estrutura
social em que se encontram.
No momento em que os indivíduos, atuando e refletindo, são capazes de
perceber o condicionamento de sua percepção pela estrutura em que se encontram,
sua percepção muda, embora isto não signifique, ainda, a mu- dança da
estrutura. Mas a mudança da percepção da realidade, que antes era vista como
algo imutável, significa para os indivíduos vê- la como realmente é: uma
realidade histórico-cultural, humana, criada pelos homens e que pode ser
transformada por eles.
A percepção ingênua da
realidade, da qual resultava uma postura fatalista – condicionada pela própria
realidade –, cede seu lugar a uma percepção capaz de se ver.
E se o homem é capaz de perceber- se, enquanto percebe uma realidade que
lhe parecia “em si” inexorável, é capaz de objetivá- la, descobrindo sua
presença criadora e potencialmente transformadora desta mesma realidade. O
fatalismo diante da realidade, característico da percepção distorcida, cede seu
lugar à esperança. Uma esperança crítica que move os homens para a transformação.
Evidentemente, este é o objetivo do trabalhador social que opta pela
mudança. Por isso que seu papel é outro e que seus métodos de ação não podem
confundir--se com aqueles já mencionados, característicos da opção pela
antimudança.

4
Ainda que nosso pensamento nos pareça claro neste último parágrafo,
sublinhamos, contudo, que a normalização à qual no s estamos referindo – daí
colocarmos entre aspas o verbo "normalizar” – não é a de quem, pretendendo
a mudança, necessita frear os que não a querem, mas a de quem, repelindo a
mudança, luta por normalizar o status quo.
O trabalhador social que
opta pela mudança não teme a liberdade, não prescreve, não manipula, não foge
da comunicação, pelo contrário, a procura e vive. Todo seu esforço, de caráter
humanista, centraliza- se no sentido da desmitificação do mundo, da
desmitificação da realidade. Vê nos homens com quem trabalha – jamais
sobre quem ou contra quem – pessoas e não “coisas”, sujeitos e não
objetos. E se na estrutura social concreta, objetiva, os homens são
considerados simples objetos, sua opção inicial o impele para a tentativa de
superação da estrutura, para que possa também operar- se a superação do estado
de objeto em que estão, para se tornarem sujeitos.
O trabalhador social que
opta pela mudança não vê nesta uma ameaça. Adere à mudança da estrutura social
porque reconhece esta obviedade: que não pode ser trabalhador social se não for
homem, se não for pessoa, e que a condição para ser pessoa é que os demais
também o sejam. Ele está convencido de que se a declaração de que o homem é
pessoa e como pessoa é livre não estiver associada a um esforço apaixonado e
corajoso de trans- formação da realidade objetiva, na qual os homens se acham
coisificados, então, esta é uma afirmação que carece de sentido.
Humilde no seu trabalho,
não pode aceitar, sem uma justa crítica, o conteúdo ingênuo da “frase feita” e
tão generalizada segundo a qual ele é o “agente da mudança”.
Em primeiro lugar, se ele
fosse o “agente da mudança”, não seria agente, da mudança da mudança, mas
agente da mudança da estrutura social.
Sua ação, como agente da
mudança, teria na estrutura social seu objeto. A estrutura social certamente
não existe sem os homens que, tanto como ele, estão nela. Assim, reconhecer- se como o “agente da mudança”
atribui a si a exclusividade da ação transformadora que, sem dúvida, numa
concepção humanista, cabe também aos demais homens realizar. Se sua opção é
pela humanização, não pode então aceitar que seja o “agente da mudança”, mas um
de seus agentes.
A mudança não é trabalho exclusivo de alguns
homens, mas dos homens que a escolhem. O trabalhador social tem que lembrar a
estes homens que são tão sujeitos como ele do processo da transformação. E se
nas circunstâncias – determinadas – já mencionadas neste estudo, em que a
estrutura social vem dificultando a transformação dos homens em sujeitos, seu
papel não é o de reforçar o estado de objeto em que se encontram, achando que
podem assim ser sujeitos, mas problematizar- lhes este estado.
Outro aspecto fundamental que não pode passar
despercebido do trabalhador social é que a estrutura social, que deve ser
mudada, é uma totalidade. O objetivo da ação da mudança é a superação de uma
totalidade por outra, onde a nova não continue apresentando a contradição
estabilidade- mudança que, como dissemos, constitui a “duração” da estrutura
social, e também o histórico-cultural.
Se a
estrutura social é uma totalidade, significa a existência em si de partes que,
em interação, a constituem.
Uma das questões fundamentais que assim mesmo se
coloca para o trabalhador social que opta pela mudança é a da validez ou não
das mudanças parciais ou da mudança das partes, antes da mudança da totalidade.
Que se deve fazer: mudar as partes e assim
alcançar a totalidade, ou mudar esta, para assim mudar aquelas que são seus
componentes? 5
Afirmamos neste estudo que não há mudança da
mudança, nem estabilidade da estabilidade, mas mudança e estabilidade, de algo.
A
estabilidade e a mudança de uma estrutura e numa estrutura não podem ser vistas
a um nível simplesmente mecânico, como alguns pensam, no qual os homem fossem
simples objetos da mudança ou da estabilidade, que se fizeram com forças
inumanas ou sobre-humanas, sob as quais os homens deveriam ficar dóceis e
conformados.
Pelo fato de que não há estrutura social que não
seja humana (e histórica) a estabilidade e a mudança de e em uma estrutura
implicam a presença dos homens.
Estes por sua vez dividem- se entre os que
desejam ou não a mudança ou a estabilidade.
Seria uma
ilusão ingênua pensar que não se organizassem em instituições, organismos,
grupos de caráter ideológico, para a defesa de suas opções, criando, em função
destas, sua estratégia e suas táticas de ação.
O problema
maior que se coloca àqueles que por questão de viabilidade histórica não têm
outro caminho que o da mudança gradual das partes, com a qual pretendem
alcançar a mudança da totalidade, consiste em: ao mudar uma das dimensões da
estrutura, as respostas a esta mudança não tardam. São respostas de caráter
estrutural e respostas de caráter ideológico. De um lado, são as demais
dimensões da realidade que, ao se conservarem como estão, criam obstáculos ao
processo de transformação da dimensão sobre a qual está incidindo a ação
transformadora; de outro lado, são as forças contrárias à mudança que tendem a
se fortalecer diante da ameaça concreta da mudança de uma das dimensões em
transformação.
Seria
outra ingenuidade pensar que as forças contrárias à mudança não percebem que a
mudança de uma parte promove a mudança de outra, até que chega a mudança da
totalidade, como seria ingenuidade também não contar com a reação, sempre mais
forte, a estas transformações parciais.
Esta é a
razão pela qual uma estrutura social que vive este momento histórico tende a
viver também, e necessariamente, o aprofundamento do antagonismo entre os que
querem e os que não querem a mudança.
E na medida em que este organismo cresce, se
instaura um clima de “irracionalidade”, que gera novos mitos auxiliares para a
manutenção do status quo.
5
Descartamos, nesta discussão, uma distorsão da percepção das partes, por sua
absoluta ingenuidade. Referimo - nos à percepção das partes como absolutos em
si, não tendo nada que ver umas com as outras na constituição da totalidade.
A
realidade, nesta percepção, que gera uma concepção também falsa da ação, não
chega a constituir uma estrutura no sentido próprio da palavra. Se presentifica
focalistamente ao sujeito desta percepção. Desta maneira a ação que parte da
concepção gerada nesta falsa percepção já nasce inoperante. Daí que, em lugar
de se constituir em ação transformadora, fica nas soluções puramente
assistencialistas.
O papel
do trabalhador social que opta pela mudança, num momento histórico como este,
não é propriamente o de criar mitos contrários, mas o de problematizar a
realida de aos homens, proporcionar a desmitificação da realidade mitificada.
Aos
mitos, que são os elementos básicos da ação manipuladora dos indivíduos, deve
responder não com a manipulação da manipulação que realizam os que estão contra
a mudança. Isto não é possível pela simples razão de que a manipulação é
instrumento da desumanização – consciente ou não, pouco importa –, enquanto a
tarefa de mudar, de quem está com a mudança, só se justifica em sua finalidade
humanista. É impossível servir a esta finalidade com instrumentos e meios que
servem à outra.
Esta é a
razão pela qual o trabalhador social humanista não pode transformar sua “palavra”
em ativismo nem em palavreado, pois uma e outra nada transformam realmente.
Pelo contrário, será tanto mais humanista quanto mais verdadeiro for seu
trabalho, quanto mais reais forem sua ação e sua reflexão com a ação e a
reflexão dos homens com quem tem que estar em comunhão, colaboração, em
convivência.
Observemos outro aspecto, que se apresenta como
outro ponto crucial na discussão da mudança de uma estrutura social e do qual o
trabalhador social deve estar ciente.
Se é
ingênua uma visão focalista da realidade, que a reduz a partes que nada têm a
ver entre si na formação da totalidade, não menos ingênuo é ter da estrutura
social uma visão focalista de fora. Isto é, uma visão que a absolutize. Assim,
uma estrutura social como um todo ' encontra- se em interação com outras
estruturas sociais.
Estas
inter- relações podem dar- se ora em sociedades- sujeitos com sociedades- suje
itos, ora em sociedades- sujeitos com sociedades- objetos. O primeiro tipo
caracteriza as relações entre sociedades “seres para si”; o segundo, as
relações antagônicas entre sociedades “seres para si” e sociedades “seres para
outro”.
Do ponto
de vista filosófico, um ser que ontologicamente é “para si” se “transforma” em
“ser para outro” quando, perdendo o direito de decidir, não opta e segue as
prescrições de outro ser. Suas relações com este outro são as relações que
Hegel chama de “consciência servil para a consciência senhorial”.6
A
sociedade cujo centro de decisão não se encontra em seu ser, mas no ser de
outra, se comporta em relação a esta como um “ser para outro”.
A ciência
política, a sociologia, a economia, e não somente a filosofia, têm, nestas
relações, objeto de suas análises específicas, dentro do quadro geral que
constitui o que chamam de dependência.
Embora a
verdadeira transformação de uma sociedade- objeto tenha de ser feita por seus
homens, por ela mesma, e não pela sociedade- sujeito da qual depende,
objetivamente não é possível negar o forte condiciona- mento ao qual está
submetida neste esforço de sua transformação.
Esta é a razão pela qual nem sempre é viável a
quem realmente opta pelas transformações fazê- las como gostaria e no momento
em que gostaria. Além do desejo de fazê- las, há um viável ou um inviável hist
órico do fazer. 7

6
Hegel, Fenomenologia del Espíritu,
Fondo de Cultura Econômica, México, p. 66.
7 Nenhum
inviável histórico o é hoje. Amanhã não necessariamente o será.
Qualquer
que seja o momento histórico em que esteja a sociedade, seja o do viável ou do
inviável histórico, o papel do trabalhador social que optou pela mudança não
pode ser outro senão o de atuar e refletir com os indivíduos com quem trabalha
para conscientizar- se junto com eles das reais dificuldades da sua sociedade.
Isto
implica a necessidade constante do trabalhador social de ampliar cada vez mais
seus conhecimentos, não só do ponto de vista de seus métodos e técnicas de
ação, mas também dos limites objetivos com os quais se enfrenta no seu
quefazer.
Outro ponto que também exige do trabalhador
social uma reflexão crítica e que se encontra no centro destas considerações é
o que tem relação com a “mudança cultural”. Mudança cultural, da qual tanto se
fala. Educação e mudança cultural, reforma agrária e mudança cultural,
desenvolvimento e mudança cultural são algumas das expressões em que mudança
cultural aparece, ora como um “associado conseqüente”, ora como “um associado
eficiente” do que fazer implícito nos termos a ela referidos: educação, reforma
agrária, desenvolvimento, etc.
O que é
mudança cultural? Antes de responder a esta pergunta, já estamos diante de
outra. Que é cultural? Responder a esta pergunta implica pensar critica- mente
a estrutura social para tentar descobrir a forma pela qual se constitui.
A estrutura social precisamente por ser social é
humana, e se não fosse humana seria uma simples “estrutura-suporte”, como é
para o animal que, “como um ser em si”, não é capaz de “significá- la
animalmente”.
O homem, pelo contrário, transformando com seu
trabalho o que seria seu suporte se não pudesse transformá- lo, cria sua
estrutura, que se faz social e na qual se constitui o “eu social”.8
Nas permanentes relações homem- realidade,
homem-- estrutura, realidade- homem, estrutura - homem origina-se a dimensão do
cultural que em sentido amplo, antropo- lógico-descritivo, é tudo o que o homem
cria e recria.
Cultural,
no sentido que aqui nos interessa, é tanto um instrumento primitivo de caça, de
guerra, como o é a linguagem ou a obra de Picasso.
Todos os
produtos que resultam da atividade do homem, todo o conjunto de suas obras,
materiais ou espirituais, por sere m produtos humanos que se desprendem do
homem, voltam- se para ele e o marcam, impondo- lhe formas de ser e de se
comportar também culturais.
Sob este
aspecto, evidentemente, a maneira de andar, de falar, de cumprimentar, de se
vestir, os gostos são cultura is. Cultural também é a visão que tem ou estão
tendo os homens da sua própria cultura, da sua realidade.9
Assim, as
expressões educação e mudança cultural, reforma agrária e mudança cultural,
desenvolvimento e mudança cultural não têm a mesma significação nas estruturas
sociais que estão em momentos históricos distintos.

8
Sobre o mundo humano e o suporte animal:
A propósito del tema generador, Paulo Freire.
9 “A
percepção social é um produto, um derivado da estrutura das relações humanas”.
Robert K. Merton, Teoria y Estructura Sociales, Fondo de Cultura Económica,
México, 2.ª edição, 1964, p. 117.
A mudança
cultural, num sentido amplo, será ou deixará de ser um “associado conseqüente”
ou “eficiente” do quefazer conforme a estrutura social se encontre,
concretamente ou não, em transformação.
Contudo, o
fato de que uma estrutura social que se transforma totalmente provoque a
mudança cultural como um “associado conseqüente” da transformação estrutural
não significa que a nova estrutura não necessite de um trabalho dirigido para a
mudança cultural. E isto porque o que se havia consubstanciado na velha
estrutura continua na nova, até que esta, através da experiência histórica dos
homens, “proporcione” formas de ser correspondentes não mais à estrutura
anterior, mas à nova. 1
0
No caso
contrário, em que a estrutura social ainda não se transformou e na qual se
enfrentam os que querem e os que não querem a mudança, a mudança estrutural de
qualquer quefazer só tem uma dimensão realmente importante em que possa
aparecer como “associado eficiente” do quefazer.
Esta é a
dimensão na qual se procura mudar a percepção que se tem da realidade, trabalho
que tem de prosseguir, como afirmamos, mesmo quando a estrutura esteja
transformada na sua totalidade. Neste momento, pelo que já foi dito, com
facilidades que antes não havia.
A mudança da percepção da realidade, que não pode
dar- se a nível intelectualista, mas na ação e na reflexão em momentos
históricos especiais, além de ser a única possibilidade de ser tentada,
torna-se, como “associado eficiente”, instrumento para ação da mudança.
Desta
forma, a realidade objetiva, ao condicionar a percepção que dela têm os
indivíduos, condiciona também a forma de enfrentá-la, suas perspectivas, suas
aspirações, suas expectativas. Condiciona também os vários níveis de percepção
que, por sua vez, explicam as formas de ação dos indivíduos.
Até o momento em que uma realidade for vista como
algo imutável, superior às forças de resistência dos indivíduos que assim a
vêem, a tendência destes será adotar uma postura fatalista e sem esperança.
Ainda mais e por isso mesmo, sua tendência é procurar fora da própria realidade
a explicação para a sua impossibilidade de atuar. 1 1
A percepção mágica da realidade, por ela
condicionada, provoca uma ação também mágica diante dela, at ravés da qual o
home m tenta defender- se do incerto.1 2

10
Isto nos parece um aspecto que deve ser criticamente estimulado em todas as
dimensões do trabalho da Corporacion de la Reforma Agraria nas bases. A nosso
ver, as atividades de base, quaisquer que sejam, as de assistência técnica em
seus múltiplos aspectos, como as sanitárias, são meios para a autêntica
promoção rural. Promoção na qual se encontra implícita a mudança cultural, que
provoca a mudança das atitudes, da valorização, etc. De forma que os técnicos
que trabalham numa base não podem exercer sua técnica por ela mesma – o que
tende à mitificação da técnica – mas, ao fazer dela um instrumento de promoção
humana, fazem com que a técnica tenha sentido.
11
Em torno das "Situações limite e o viável histórico”, tema correspondente
ao estudo destas considerações, ver Paulo Freire, A Propósito del tema
generador.
12
“Partindo destas observações cheias de significado (o autor se refere a
observações realizadas por Malinowski) formula sua teoria de que a crença
mágica servia para diminuir a incerteza nas atividades de ordem prática do
homem, para fortalecer sua confiança, para reduzir sua ansiedade e para abrir
vias de escape em situações aparentemente sem saída. A magia representa uma
técnica suplementar para conseguir certos objetivos práticos.”
Poder-se- ia dizer que a mudança da percepção só
seria possível com a mudança da estrutura, por causa do condicionamento que
esta exerce sobre aquela.
Tal afirmação, tomada de um ponto de vista
acriticamente rigoroso, pode levar a interpretações mecanicistas das relações
percepção – mundo.
Por outro lado, para evitar qualquer confusão
entre a nossa posição e uma atitude idealista, é necessário esclarecer o que
entendemos por mudança de percepção.
Reconhecemos – e já o afirmamos – que só podemos
entender o homem no mundo.
Sabemos
que a verdade do mundo não se encontra só no “homem interior”, pois este só
existe porque pode ser dicotomizado do mundo em e com o qual se
fala.
A mudança de percepção da realidade pode dar- se
“antes” da sua transformação, se se excluir do termo “antes” o significado de
dimensão estática do tempo, com que se pode apelidar a consciência ingênua.
A significação de “antes”, aqui, não é a do
sentido comum, nem a do sentido gramatical. O “antes”, aqui, não significa um
momento anterior, separado de outro por uma fronteira rígida. O antes, pelo
contrário, toma parte no processo, participa da estrutura social, envolvendo os
homens, seja como um passado que foi presente, seja como um anterior-presente à
estrutura.
Desta
forma, a percepção distorcida da realidade, neste “antes” da mudança
estrutural, pode ser mudada, na medida em que o “hoje”, no qual se está
verificando o antagonismo entre mudança e estabilidade, já é em si um desafio
que a põe à prova.
Quanto mais agudo este antagonismo, mais se
revela a realidade que condiciona tal percepção e isto é suficiente para que
nela se verifique a mudança.
Assim sendo, aproveitando este clima
característico do “anterior- presente”, cabe ao trabalhador social,
problematizando para o homem o que se opõe ao seu “hoje- anterior- presente” da
mudança estrutural, tentar a mudança de sua percepção da realidade.
Por isso repetimos que esta mudança de percepção
não é outra coisa senão a substituição de uma percepção distorcida da realidade
por uma percepção crítica da mesma.
Esta mudança de percepção, que se dá na
problematização de uma realidade concreta, no entrechoque de suas contradições,
implica um novo enfrentamento do homem com sua realidade. Implica admirá-la em
sua totalidade: vê- la de “dentro” e, desse “interior”, separá- la em suas
partes e voltar a admirá - la, ganhando assim uma visão mais crítica e profunda
da sua situação na realidade que não condiciona. Implica uma “apropriação” do
contexto; uma inserção nele; um não ficar “aderido” a ele; um não estar quase
“sob” o tempo, mas no tempo. Implica reconhecer- se homem. Homem que deve
atuar, pensar, crescer, transformar e não adaptar- se fatalisticamente a uma
realidade desumanizante.

O autor chama a atenção ainda sobre o
fato de que Malinowski introduziu na teoria da magia, através de suas
observações, novos elementos, tais como as relações entre a magia e o acaso, a
magia e o perigo e a magia e o incontrolável. Robert K. Merton, Teoria e
Estructura Sociales, Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 118.
Implica, finalmente, o ímpeto de mudar para ser
mais.
A mudança da percepção distorcida do mundo pela
conscientização é algo mais que a tomada de consciência, que pode inclusive ser
ingênua.
Tentar a
conscientização dos indivíduos com quem se trabalha, enquanto com eles também
se conscientiza, este e não outro nos parece ser o papel do trabalhador
social que optou pela mudança.
Alfabetização de
Adultos e Conscientização
1. INSTRUMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO
Nenhuma ação educativa pode prescindir de uma
reflexão sobre o homem e de uma análise sobre suas condições culturais. Não há
educação fora das sociedades humanas e não há homens isolados. O homem é um ser
de raízes espaço- temporais. De forma que ele é, na expressão feliz de Marcel,
um ser “situado e temporalizado”. A instrumentação da educação – algo mais que
a simples preparação de quadros técnicos para responder às necessidades de
desenvolvimento de uma área – depende da harmonia que se consiga entre a
vocação ontológica deste “ser situado e temporalizado” e as condições especiais
desta temporalidade e desta situacionalidade.
Se a vocação ontológica do homem é a de ser
sujeito e não objeto, só poderá desenvolvê-la na medida em que, refletindo
sobre suas condições espaço-temporais, introduz- se nelas, de maneira crítica.
Quanto mais for levado a refletir sobre sua situacionalidade, sobre seu
enraizamento espaço-temporal, mais “emergerá” dela conscientemente “carregado”
de compromisso com sua realidade, da qual, porque é sujeito, não deve ser
simples espectador, mas deve intervir cada vez mais.
Por isso
mesmo a educação, para não instrumentar tendo como objeto um sujeito – ser
concreto, que não somente está no mundo, mas também está com ele –, deve
estabelecer uma relação dialética com o contexto da sociedade à qual se
destina, quando se integra neste ambiente que, por sua vez, dá garantias
especiais ao homem através de seu enraizamento nele. Superposta a ele,
fica “alienada” e, por isso, inoperante.
Tal
enfoque significa necessariamente uma superação do falso dilema “human ismo -
tecnologia”. Numa era cada vez mais tecnológica como a nossa, será menos
instrumental uma educação que despreze a preparação técnica do homem, como a
que, dominada pela ansiedade de especialização, esqueça- se de sua humanização.
A
primeira condição mencionada faria perder a batalha do desenvolvimento; a
segunda poderia levar o homem ao anonimato da massificação de onde, para sair,
necessitaria da reflexão mais de uma vez, especialmente da reflexão sobre a sua
própria condição de massificado.
2. O HOMEM COMO UM SER DE RELAÇÕES
Este ser
“temporalizado e situado”, ontologicamente inacabado – sujeito por vocação,
objeto por distorção –, descobre que não só está na realidade, mas também que
está com ela. Realidade que é objetiva, independente dele, possível de ser
reconhecida e com a qual se relaciona.
Estas relações, que o homem trava nesta e
com esta realidade, apresentam uma ordem tal de conotações que as distinguem
dos meros contatos da esfera animal; por isso mesmo, o conceito de
relações da esfera puramente humana guarda em si conotações de pluralidade,
de criticidade, de conseqüência e de temporalidade.
Há uma pluralidade
nas relações do homem com o mundo, na medida em que o homem responde aos
desafios deste mesmo mundo, na sua ampla variedade; na medida em que não se
esgota num tipo padronizado de resposta.
Pluralidade
não só com relação aos diferentes desafios que lhe faz o ambiente, mas também
com relação ao próprio desafio.
No jogo
constante de suas respostas, muda seu modo de responder. Organiza- se, escolhe
a melhor resposta. Atua nas relações do homem com o mundo; existe uma
pluralidade na própria singularidade. A captação que faz dos dados objetivos de
sua realidade é essencialmente crítica e não puramente reflexa, como sucede nas
esferas dos contatos.
Além
disso, o homem e somente o homem é capaz de transcender, de discernir, de
separar órbitas existenciais diferentes, de distinguir “ser” do “não ser”; de
travar relações incorpóreas. Na capacidade de discernir estará a raiz da
consciência de sua temporalidade, obtida precisamente quando atravessando o
tempo, de certa forma até então unidimensional, alcança o ontem, reconhece o
hoje e descobre o amanhã.
Na hist
ória de sua cultura, o tempo e a dimensão do tempo foram um dos primeiros
discernimentos do homem.1 O “excesso” de tempo sob o qual vivia o homem
iletrado comprometia sua própria temporalidade, à qual se chega com o
discernimento a que nos referimos. E com a consciência desta temporalidade, a
de sua historicidade. Não há historicidade no gato por sua incapacidade de
discernir e transcender, tragado no tempo unidimensional – um hoje eterno – do
qual não tem consciência.
Todas essas características das relações que o
homem trava com e na sua realidade fazem dessas relações algo conseqüente.
Na verdade não se esgota na mera passividade. Criando e recriando,
integrando-se nas condições de seu contexto, respondendo aos desafios, auto-
objetivando- se, discernindo, o homem vai se lançando no domínio que lhe é
exclusivo, o da história e da cultura.2
A sua
integração o enraíza e lhe dá consciência de sua temporalidade. Se não
houvesse essa integração, que é uma característica das relações do homem e que
se aperfeiçoa na medida em que esse se faz crítico, seria apenas um ser
acomodado e, então, nem a história nem a cultura – seus domínios – teriam
sentido. Faltaria a eles a marca da liberdade. E é porque se integra na medida
em que se relaciona, e não somente se julga e se acomoda, que o homem cria,
recria e decide.
Por sua
vez, os contatos da esfera animal implicam, ao contrário das relações,
respostas singulares, reflexas e inconseqüentes. Disto resulta uma acomodação,
não uma integração.
Observa-
se por aí que o homem vai dinamizando o seu mundo a partir destas relações com
ele e nele; vai criando, recriando; decidindo. Acrescenta algo ao mundo do qual
ele mesmo é criador. Vai temporalizando os espaços geográficas. Faz cultura. E
é o jogo criador destas relações do homem com o mundo o que não permite, a não
ser em termos relativos, a imobilidade das sociedades nem das culturas.
3. O HOMEM E A SUA ÉPOCA
Na medida
em que o homem cria, recria e decide, vão se formando as épocas históricas. E é
também criando, recriando e decidindo como deve participar nessas épocas. É por
isso que obtém melhor resultado toda vez que, integrando- se no espírito delas,
se apropria de seus temas e reconhece suas tarefas concretas.
Ponha-se
ênfase, desde já, na necessidade permanente de uma atitude crítica, a única com
a qual o homem poderá apreender os temas e tarefas de sua época para ir se
integrando nela. Uma época,

1
Khaler Erich, História universal del
hombre.
2
Idem.
por outro lado, realiza-se na proporção em que
seus temas forem captados e suas tarefas resolvidas.3 E se supera na medida em que os temas e as tarefas não correspondem a
novas ansiedades emergentes.
Uma época
da história apresentará uma série de aspirações, de desejos, de valores, em
busca de sua realização. Formas de ser, de comportar- se, atitudes mais ou
menos generalizadas, das quais somente os visionários que se antecipam têm
dúvidas e frente às quais sugerem novas fórmulas.
A passagem de uma época para outra caracteriza-
se por fortes contradições que se aprofundam, dia a dia, entre valores
emergentes em busca de afirmações, de realizações, e valores do ontem em busca
de preservação.
4. A TRANSIÇÃO
Quando isto ocorre, verifica-se o que chamamos
transição. Observa- se um aspecto fortemente dramático que vai atingir as
mudanças de que se nutre a sociedade. Porque é dramático, é fortemente
desafiador. E a transição se torna então um tempo de opções. Nutrindo- se de
mudanças, a transição é mais que as mudanças. Implica realmente na marcha que
faz a sociedade na procura de novos temas, de novas tarefas ou, mais
precisamente, de sua objetivação. As mudanças se produzem numa mesma unidade de
tempo, sem afetá- la profundamente. É que se verificam dentro do jogo normal,
resultante da própria busca de plenitude que fazem estes temas.
Quando, por fim, estes temas começam a esvaziar e
a perder sua significação, emergindo novos temas, a sociedade começa a passar
para outra época. Nestas fases, mais do que nunca, se faz indispensável à
integração. Mais do que nunca se faz indispensável o desenvolvimento de uma
mente crítica4 , com a qual o homem possa se defender dos
perigos dos irracionalismos, encaminhamentos distorcidos da emoção,
característica dessas fases de transição.
5. BRASIL, UMA SOCIEDADE EM TRANSIÇÃO
O Brasil vivia exatamente a transição de uma
época para outra. A passagem de uma sociedade “fechada” para uma sociedade
“aberta”. Era uma sociedade se abrindo. A trans ição era precisamente o elo
entre uma época que se desvanecia e outra que se formava. Por isso é que tinha
algo de prolongação e algo de penetração. De prolongação daquela sociedade que
se desvanecia e na qual se projetava querendo se preservar. De penetra ção na
nova sociedade anunciada e que, através dela, se incorpora na velha. Esta
sociedade brasileira estava sujeita, por isso mesmo, a retrocessos na sua
transição, na medida em que as forças que encaram aquela sociedade, na vigência
de seus poderes, conseguissem sobrepor- se, de uma forma ou de outra, à
formação da nova sociedade. Sociedade nova que se oporia necessariamente à
vigência de previlégios, quaisquer que fossem suas origens, contrários aos
interesses do homem brasileiro.

3
Frayer Han, Teoría de la época actual.
4
Importante a leitura de Barbu Zevedai.
6. DEMOCRATIZAÇÃO FUNDAMENTAL
Entrando a
sociedade brasileira em transição, havia se instalado entre nós o fenômeno que
Mannheim chama de “democratização fundamental”, que implica uma crescente
participação do povo em seu processo histórico.
O povo se
encontrava na fase anterior de isolamento da nossa sociedade, imerso no
processo. Com a ruptura da sociedade e sua entrada em transição, emerge.
Imerso era apenas espectador do processo; emergindo, descruza os braços,
renuncia a ser simples espectador e exige participação. Já não se satisfaz em
assistir; quer participar; quer decidir. Não tendo um passado de experiências
decisivas, dialogais, o povo emerge, inteiramente “ingênuo” e desorganizado. E
quanto mais pretende participar, ainda que ingenuamente, mais se agrupam as
forças reacionárias que se sentem ameaçadas em seus princípios.
Cada vez
mais sentíamos, de um lado, a necessidade de uma educação que não descuidasse
da vocação ontológica do homem, a de ser sujeito, e, por outro, de não
descuidar das condições peculiares de nossa sociedade em transição,
intensamente mutável e contraditória. Educação que tratasse de ajudar o homem
brasileiro em sua emersão e o inserisse criticamente no seu processo histórico.
Educação que por isso mesmo libertasse pela conscientização.5 Não aquela educação que domestica e acomoda. Educação, afinal, que
promovesse a “ingenuidade”, característica da emersão, em criticidade, com a
qual o homem opta e decide.
Por isso,
esta educação ao significar um esforço para chegar ao homem- sujeito
enfrentava, como ameaça, os setores privilegiados. Para o irracionalismo
sectário, a humanização representava um perigo.
7. MAIS UMA VEZ O HOMEM E O MUNDO
Partíamos
dizendo que a posição normal do homem, como já afirmamos no começo deste
capítulo, não era só a de estar na realidade, mas de estar com ela.
A de travar relações permanentes com ela, cujo resultado é a criação
concretizada no domínio cultura l.
Posto diante do mundo, o homem estabelece uma
relação sujeito – objeto da qual nasce o conhecimento, que ele expressa por uma
linguagem. Esta relação é feita também pelo analfabeto, o homem comum. A
diferença entre a relação que ele trava neste campo e a nossa é que sua captação
do dado objetivo se faz pela via preponderantemente sensível. A nossa, por via
preponderante-mente reflexiva. Deste modo surge da primeira captação uma
compreensão preponderantemente “mágica”6 da realidade. Da segunda, uma compreensão preponderante- mente
crítica.
Como a
toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação, a uma
compreensão preponderante-mente mágica corresponderá também uma ação mágica.

5
Desenvolvimento da tomada de
consciência.
6 A
compreensão “mágica” resulta de uma certa obliteração que não permite uma
visualização translúcida do desafio, cujas conotações são assim confundidas.
Esta compreensão é característica de um tipo de consciência que chamamos
"intransitiva”. A intransitivação da consciência, por sua vez, implica num
total enclausuramento do homem em si mesmo, soterrado, se assim se pode dizer,
por um tempo e um espaço
todo-poderosos.
8. A ORGANIZAÇÃO REFLEXIVA DO PENSAMENTO
O que
teríamos que fazer, então, seria, como diz Paul Legrand, ajudar o homem a
organizar reflexivamente o pensamento. Colocar, como diz Legrand, um novo termo
entre o compreender e o atuar: o pensar. Fazê- la sentir que é capaz de superar
a via dominante- mente reflexa.
Se isto
acontecesse, estaríamos levando- o a substituir a captação mágica por uma
captação cada vez mais crítica e, assim, ajudando- o a assumir formas de ação
também críticas, identificadas com o clima de transição. Respondendo às
exigências de democratização fundamental, inserindo- se no processo histórico,
ele renunciará ao papel de simples objeto e exigirá ser o que é por vocação:
sujeito.
9. COMO FAZÊ-LO?
As respostas parecem estar:
a) Num método ativo, dialogo, crítico e criticista.
b) Na modificação do conteúdo programático da
educação.
c) No uso de técnicas, como a de redução e a de
codificação.
Somente um método ativo, dialogal e participante
poderia fazê-lo.
E que é o diálogo?7 É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e
gera criticidade (Jaspers). Nutre - se de amor, de humanidade, de esperança, de
fé, de confiança. Por isso, somente o diálogo comunica. E quando os dois pólos
do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no próximo, se fazem
críticos na procura de algo e se produz uma relação de “empatia” entre ambos.
Só ali há comunicação. “O diálogo é, portanto, o caminho indispensável”, diz
Jaspers, “não somente nas questões vitais para nossa ordem política, mas em
todos os sentidos da nossa existência.
Somente
pela virtude da fé, contudo, o diálogo tem estímulo e significação: pela fé no
homem e em suas possibilidades, pela fé na pessoa que pode chegar à união de
todos; pela fé de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais chegam a
ser eles mesmos”.
A – -- – – -B – – B- Comunicação
Relação de “empatia” na procura de algo:
Amoroso
Humilde
Crítico
Esperançoso
Confiante
Criador

7
Diálogo – Horizontal – Relação Eu – Tu – dois sujeitos.
É no
dialogo que nos opomos ao antidialogo tão entrenhado em nossa formação
histórico-cultural, tão presente e, ao mesmo tempo, tão antagônico ao clima da
transição. O antidialogo, que implica uma relação de A sobre B, é o oposto a
tudo isso. É desamoroso. Não é humilde. Não é esperançoso; arrogante;
autosuficiente. Quebra-se aquele relação de “empatia” entre seus pólos, que
caracteriza o dialogo. Por tudo isso o antidialogo não comunica. Faz comunicados.
Precisávamos
de um a pedagogia da comunicação com a qual pudéssemos vencer o desamor do
antidialogo. Lamentavelmente, por uma série de razoe, esta postura – a do
antidialógo – vem sendo a mais comum na América Latina. Educação que mata o
poder criador não só do educando mas também dói educador,na medida em que este
se transforma em alguém que impõe ou, na melhor das hipóteses, num doador de
“formulas” e “comunicados”, recebidos passivamente pelos seus alunos.
Não cria aquele que impõe, nem aqueles que
recebem; ambos se atrofiam e a educação já não é educação.
10. NOVO CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Mas quem
dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa. Esta alguma coisa deveria ser o
novo conteúdo programático da educação que defendíamos. E nos pareceu que a
primeira dimensão deste novo conteúdo, com que ajudaríamos o analfabeto, antes
ainda de iniciar sua alfabetização, para conseguir a destruição da sua
compreensão “mágica” e a construção duma compreensão crescentemente crítica,
seria a do conceito antropológico de cultura, isto é, a distinção entre estes
dois mundos: o da natureza e o da cultura; o papel ativo do homem na sua
realidade e com a sua realidade; o sentido de mediação que tem a natureza para
as relações e a comunicação dos homens; a cultura como o acréscimo que o homem
faz ao mundo que não criou; a cultura como resultado de seu trabalho, de seu
esforço criador e recria- dor; a dimensão humanista da cultura; a cultura como
aquisição sistemática da experiência humana, como uma incorporação, por isso
crítica e criadora, uma justa-posição de informações e descrições “doadas”; a
democratização da cultura, que é uma dimensão da democratização fundamental,
frente à problemática da aprendizagem da escrita e da leitura, seria, pois,
como uma chave com a qual o analfabeto inicia sua introdução no mundo da
comunicação escrita. Como ser no mundo e com o mundo. Em seu papel de sujeito e
não de mero e permanente objeto.
Para tal
introdução, ao mesmo tempo gnosiológica e antropológica, elaboramos, depois da
“redução” do conceito de cultura, onze situações “codificadas”, capazes de
motivar os grupos e levá- los, por meio de sua descodificação, a estas
compreensões.
Esta
primeira situação desperta a curiosidade do analfabeto e o leva a distinguir o
mundo da natureza do mundo da cultura. Apresenta- se um homem do povo, diante
do mundo. Em torno dele, seres de natureza e objetos de cultura. É
impressionante ver como se travam os debates e com que curiosidade os
analfabetos vão respondendo as questões contidas na situação.
Cada
situação apresenta um dado número de informações para serem descodificadas
pelos grupos de analfabetos com o auxílio do coordenador de debates. Na medida
em que se intensifica o diálogo em torno das situações codificantes – com “n”
informações – e os participantes respondem diferentemente a elas, porque os
desafiam, se produz um círculo, que será tanto mais dinâmico quanto mais a
informação corresponda à realidade existencial dos grupos.
Muitos deles, durante os debates sobre as
situações, afirmam felizes e autoconfiantes que “nada de novo lhes está sendo
demonstrado, mas que lhes estavam refrescando a memória”. “Faço sapatos – disse
certa vez um deles – e descubro agora que tenho o mesmo valor do doutor que faz
livros”;
“amanhã –
afirmou outro, ao discutir o conceito de cultura – vou entrar no meu trabalho
com a cabeça erguida”. Era um simples var- redor de ruas que descobriu o valor
de sua pessoa e a dignidade de seu trabalho. Afirmava- se.8
Reconhecidos,
através da primeira situação, os dois mundos – o da natureza e o da cultura – e
o papel do homem nestes dois mundos, outras situações vão se sucedendo, em que
ora se fixam, ora se ampliam as áreas de compreensão do domínio cultural. A
conclusão dos debates gira em torno da dimensão humana e fica claro que esta
conquista, numa cultura letrada, já não se faz por via oral como nas iletradas,
em que falta a sinalização gráfica. Vencendo este primeiro passo, inicia-se o
debate sobre a democratização da cultura com o qual se abrem as perspectivas
para o começo da alfabetização.
11. A ALFABETIZAÇÃO COMO UM ATO CRIADOR
Todo o debate que se coloca é altamente crítico e
motivador. O analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e
a escrever. Prepara- se para ser o agente desta aprendizagem. E consegue
fazê-la na medida em que a alfabetização é mais que o simples domínio mecânico
de técnicas para escrever e ler. Com efeito, ela é o domínio dessas técnicas em
termos conscientes. É entender o que se lê e escrever o que se entende. É
comunicar- se graficamente. É uma incorporação. Implica não em uma memorização
mecânica das sentenças, das palavras, das sílabas, desvinculadas de um universo
existencial – coisas mortas ou semimortas –, mas uma atitude de criação e
recriação. Implica uma autoformação da qual pode resultar uma postura atuante
do homem sobre seu contexto.9 Isto faz com que o papel do educador seja
fundamentalmente dialogar com o analfabeto sobre situações concretas,
oferecendo-lhe simplesmente os meios com os quais possa se alfabetizar.
Por isso a
alfabetização não pode se fazer de cima para baixo, nem de fora para dentro,
como uma doação ou uma expos ição, mas de dentro para fora, pelo próprio
analfabeto, somente ajustado pelo educador. Esta é a razão peia qual procuramos
um método que fosse capaz de se fazer instrumento também do educando e não só
do educador e que identificasse, como claramente observou um jovem sociólogo
brasileiro 1 0 , o conteúdo da aprendizagem com o processo da
aprendizagem. Por essa mesma razão não acreditamos nas cartilhas que pretendem
fazer uma montagem de sinalização gráfica como uma doação e que reduzem o
analfabeto mais à condição de abjeto de alfabetização do que de sujeito da
mesma.

8
Manifestações desta natureza feitas por homens comuns levaram os que defendem
um mundo dividido por privilégios inconfessáveis e sem amor a vislumbrar em
nosso esforço de humanização do homem “uma subversão” da ordem. Não souberam ou
não quizeram perceber que, ao afirmar sua descoberta do valor que tinha fazendo
sapatos, como o doutor fazendo livros, aquele sapateiro não pretendia superar o
doutor, substituindo-o no seu trabalho. Estava certo, por outro lado, que o
doutor não o substituiria no seu. Está certo agora que ele, sapateiro, e o
outro, doutor, ambos têm uma dignidade no trabalho, um tem tanto valor como o
outro, considerando-se que os dois são autênticos em seus trabalhos
específicos.
9 Somente
assim a alfabetização de adultos tem significado para o desenvolvimento: na
medida em que faz do próprio esforço de progresso objeto da reflexão do
analfabeto.
10
Celso Beisiegel, trabalho inédito.
Tínhamos de achar, por outro lado, na “redução”
das palavras chamadas geradoras 1 1 ,
“fundamentos para a aprendizagem de uma língua silábica como a nossa”. Não
pensávamos na necessidade de 50, 80 ou mais palavras geradoras. Isto seria,
como efetivamente é, uma perda de tempo. Quinze ou dezoito nos pareciam
suficientes para o processo de alfabetização pela conscientização.
12. LEVANTAMENTO DO UNIVERSO VOCABULAR
Uma
pesquisa inicial feita nas áreas que vão ser trabalhadas nos oferece as
palavras geradoras, que nunca devem sair de nossa biblioteca. Elas são
constituídas pelos vocábulos mais carregados de certa emoção, pelas palavras
típicas do povo. Trata- se de vocábulos ligados à sua experiência existencial,
da qual a experiência profissional faz parte.
Esta
investigação dá resultados muito ricos para a equipe de educadores, não só pelas
relações que trava, mas pela exuberância da linguagem do povo, às vezes
insuspeita.
As
entrevistas revelam desejos, frustrações, desilusões, esperanças, desejos de
participação e, freqüentemente, certos momentos altamente estéticos da
linguagem popular.
Nos
levantamentos vocabulares que tínhamos nos arquivos do Departamento de Extensão
Cultural da Universidade do Recife, da qual éramos diretor, feitos nas áreas
rurais do Brasil, não são raros estes exemplos: “Janeiro de Angicos” – disse um
homem deste sertão do Rio Grande do Norte, Nordeste brasileiro – “é um mês de
se viver, porque Janeiro é cabra danado.”
“Quero aprender a ler e a escrever”, disse um
analfabeto do Recife, “para deixar de ser sombra dos outros.” E ainda um homem
de Florianópolis, revelando a emersão do povo, característica da transição
brasileira: “o povo tem resposta.” Outro, em tom sentimental: “não tenho ‘dó’
de ser pobre, mas de não saber ler.” “Eu tenho a escola do mundo”, disse um
analfabeto de um Estado do sul do Brasil, o que motivou o professor Joinard de
Brito1 2 a perguntar num ensaio seu: “Haveria algo mais
para propor a um homem tão adulto que afirma: eu tenho a escola do mundo?”
“Quero aprender a ler e a escrever para mudar o mundo”, foi a afirmação de um
analfabeto paulista, para quem, acertadamente, conhecer é interferir na
realidade conhecida. “O povo pôs um parafuso na cabeça”, afirmou outro, numa
linguagem um tanto esotérica. Ao perguntar- lhe que parafuso era esse,
respondeu, revelando uma vez mais a emersão popular da transição brasileira: “é
o que o senhor doutor explica, ao falar comigo, povo.”
Inúmeras
afirmações deste tipo exigiam realmente um tratamente universitário em sua
interpretação, tratamento que estivesse a cargo de especialistas e do qual
resultasse um instrumento eficiente para ação do educador de adultos.
13. SELEÇÃO DE PALAVRAS GERADORAS
Com o
material recolhido na pesquisa, chega- se à fase de seleção de palavras
geradoras, que é feita com os critérios:

11
São aquelas que, decompostas em seus elementos silábicos, proporcionam pela
combinação desses elementos o nascimento de novas palavras.
12
Joinard Muniz de Brito, Educação de adultos e unificação de cultura, Estudos
Universitários, Revista de Cultura, Universidade do Recife, 2/4/63.
a) de riqueza fonética;
b) de dificuldades fonéticas (as palavras
selecionadas devem responder às dificuldades fonéticas da língua, colocadas
numa seqüência que vai gradativamente de dificuldades menores para dificuldades
maiores);
c) do
aspecto pragmático da palavra, que implica um maior entrosamento da palavra
numa determinada realidade, social, cultural e política.
“Hoje – disse o professor Jarbas Maciel – nós ve
mos que estes critérios estão contidos no critério semiótica; a melhor palavra
geradora é aquela que reúne em si maior ‘percentagem’ de critérios: sintático
(possibilidade ou riqueza fonética, grau de dificuldade fonética complexa, de
‘manipulabilidade’ dos conjuntos de sinais de sílabas, etc.); semântico (maior
ou menor ‘intensidade’ do vínculo entre a palavra e o ser que designa, maior ou
menor adequação entre a palavra e o ser designado); e pragmático (maior ou
menor carga de conscientização que a palavra traz potencialmente ou o conjunto de
relações sócio-culturais que a palavra cria nas pessoas ou grupos que a
utilizam).” 1 3
14. CRIAÇÃO DE SITUAÇÕES SOCIOLÓGICAS
Selecionadas
as palavras geradoras, criam-se situações (pintadas ou fotografadas) nas quais
são colocadas as palavras geradoras em ordem crescente de dificuldades
fonéticas. Estas situações funcionam como elementos desafiadores dos grupos e
constituem, no seu conjunto, uma “programação compacta”, são situações-
problemas codificadas, unidades “gestálticas” de aprendizagem, que guardam em
si informações que serão descodificadas pelos grupos com a colaboração do
coordenador.
O debate
em torno delas irá levando os grupos – como se fez para chegar ao conceito
antropológico de -cultura – a se conscientizarem para que, ao mesmo tempo, se
alfabetizem. Constituem situações locais que abrem perspectivas para a análise
dos problemas regionais e nacionais. Uma palavra geradora tanto pode englobar
toda uma situação como se referir simplesmente a um dos sujeitos da situação
15. FICHAS AUXILIARES
Uma vez
preparado todo o material para o Círculo de Cultura 1 4, elaboram- se as fichas auxiliares para o
trabalho dos coordenadores de debates. Estas fichas devem constituir simples
sugestões para os educadores, nunca uma prescrição rígida para ser obedecida.

13 Jarbas
Maciel, A fundamentação teórica do sistema de Paulo Freire de educação de
adultos, Estudos Universitários, Revista de Cultura, N.º IV,
Universidade do Recife, 1963.
14 Substituímos
a escola noturna, tradicional para adultos, que tinha conotação passiva em
contradição com o clima intensamente dinâmico da transição brasileira, pelo
Círculo de Cultura; o professor, quase
sempre
doador, pelo coordenador de debate; o aluno, pelo participante do grupo; a
classe, pelo diálogo.
16. AMPLIADO
Posta uma
situação problema diante do grupo, inicia - se a sua análise ou a
descodificação com o auxílio do coordenador. Somente quando o grupo termina a
análise, dentro de um prazo razoável, o educador se volta à visualização da
palavra geradora. Trata- se, pois, de visualização e não de memorização
puramente mecânica.
Uma vez
visualizada a palavra, estabelecido o vínculo semântico entre ela e o objeto a
que se refere (representado na situação), passa o educando a outra projeção, a
outra cartela ou a outro fotograma
– no caso de diapositivo – no qual aparece
escrita a palavra, sem o objeto que ela representa.
Logo surge
a palavra separada em suas sílabas, que o analfabeto geralmente chama
“pedaços”. Reconhecidos os “pedaços” na etapa da análise, passa- se à
visualização das “famílias fonéticas” que compõem a palavra geradora.
Estas
famílias, que são estudadas isoladamente, passam depois a ser representadas em
conjunto. Foram chamadas pela professora Aurenice Cardoso15 “Ficha da descoberta”. Efetivamente, através dela, fazendo síntese, o
homem descobre o mecanismo da formação vocabular de uma língua silábica como a
nossa, que se estrutura por combinações fonéticas.
Apropriando-
se criticamente e não mecanicamente – o que não seria uma apropriação – deste
mecanismo, o adulto inicia a formação rápida do seu próprio sistema de sinais
gráficos. Começa então, cada vez com maior facilidade e no primeiro dia em que
luta para alfabetizar-- se, a criar palavras com as combinares fonéticas que
lhe oferece a decomposição de uma palavra trissilábica.
Tornemos por exemplo a palavra "tijolo” como
a palavra geradora, colocada numa “situação” de trabalho de construção.
Discutida a situação em seus possíveis aspectos, faz- se a vinculação semântica
entre a palavra e o objeto que designa. Visualizada a palavra dentro da
situação, será apresentada imediatamente:
TIJOLO
Visualizados
os “pedaços” – e sem depender de uma ortodoxia analítico- sintética – começa-se
o reconhecimento das famílias fonéticas. A partir da primeira sílaba TI, ajuda-
se o grupo a conhecer toda a família fonética resultante da combinação da
consoante inicial com as demais vogais.
Em seguida, o grupo conhece a segunda família
através da visualização de JO, para chegar finalmente ao conhecimento da
terceira. Quando se projeta a família fonética, o grupo obviamente reconhece
somente a sílaba da palavra visualizada: ta- te-ti-to-tu; ja- je- ji- jo- ju e
la-le- li-lo- lu. Reconhecido o Ti, o grupo é levado a compará- la com as
outras sílabas, o que o faz descobrir que, começando- se igualmente, terminam
diferentemente.
Desta
maneira, nem todas podem chamar- se Ti. Idêntico procedimento se segue para as
sílabas Jo e Lo e suas família s. Depois do conhecimento de cada família,
efetuam- se exercícios de leitura para a fixação das novas sílabas.
O momento mais importante tem quando se
apresentam as três famílias juntas.

15
Aurenice Cardoso, Conscientização e alfabetização – Uma visão prática do
sistema Paulo Freire de educação de adultos, Estudos Universitários, Revista
de Cultura, N.º IV, Universidade do Recife, 1963.
Ta- Te-Ti- To-Tu
Ja- Je-Ji- Jo-Ju Ficha da descoberta
La- Le-Li- Lo- Lu
Depois da
leitura na horizontal e outra na vertical, em que se descobrem os sons vocais,
o grupo começa – note-se que não o coordenador – a realizar a síntese oral. Um
a um todos vão “fazendo” palavras com as possíveis combinações à sua
disposição. “Tatu”, “luta”, “lajota”, “tito”, “loja”, “jato”, “lote”, “tela”, e
não faltam os que, aproveitando uma vogal de uma das sílabas, a associem a
outra, a que juntam uma terceira, formando outra palavra. Exemplo: tira m o “i”
de “li”, acrescentam o “le” e somam “te”: “leite”.
Existem outros, como o analfabeto de Brasília,
que, para emoção de todos os presentes, inclusive a do então ministro de
educação, Paulo de Tarso, disse: “Tu já lês.” E isto foi na primeira noite em
que começava a alfabetização.
Terminados
os exercícios orais, nos quais não houve só conhecimentos, nessa mesma noite
passa a escrever.
No dia seguinte, traz de
casa, como tarefa, tantos vocábulos quanto pôde criar com as sílabas
aprendidas. Não importa que traga vocábulos que não estejam terminados. O que
importa, no dia em que começa a pisar este novo terreno, é a descoberta do mecanismo
das combinações fonéticas. A revisão dos vocábulos criados deve ser feita pelo
grupo com o auxílio do educador, e não por este com a assistência daquele.
17. A CAPACITAÇÃO DOS COORDENADORES
A grande
dificuldade que surge e que exige um alto sentido da responsabilidade, se
baseia na preparação dos quadros de coordenadores e supervisores. Não porque
haja dificuldades na aprendizagem puramente técnica do procedimento. A
dificuldade está na própria criação de uma nova atitude, ao mesmo tempo tão
velha no educador.
Referimo
- nos ao diálogo. Trata-se de uma atitude dialogal à qual os coordenadores
devem converter- se para que façam realmente educação e não domesticação.
Precisamente porque, sendo o diálogo uma relação eu – tu, é necessariamente uma
relação de dois sujeitos. Toda vez que se converte o “tu” desta relação em mero
objeto, ter- se- á pervertido e já não se estará educando, mas deformando.
18. RESULTADOS PRÁTICOS
Entre um mês e meio e dois meses, com círculos de
cultura funcionando de segunda a sexta-feira (cerca de uma hora e meia)
deixávamos grupos de 25 a 30 homens lendo e escrevendo. Com nove meses de
trabalho na frente do Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, no
Ministério de Educação ao qual chegamos pelo ministro Paulo de Tarso e
autorizados pelo ministro Júlio Sanbaguy, conseguimos com nossa equipe da
Universidade do Recife preparar quadros em quase todas as capitais brasileiras.
Ao mesmo
tempo em que preparávamos esses quadros, iam- se formando círculos
experimentais, com os quais se ampliava o número de coordenadores para a
extensão da campanha. A isto foi se somando o esforço de outras equipes, como a
de São Paulo, Brasília, Porto Alegre, etc.
A estas alturas, deveríamos ter, funcionando no
Brasil, mais de 20.000 círculos de cultura na etapa de alfabetização, pois
tínhamos traçadas as etapas posteriores com que aprofundaríamos os
conhecimentos dos recém-- alfabetizados.
E tudo isto com um custo irrisório: um projetor
polonês que chegava ao Brasil pelo preço de Cr$ 7. 800,00 (o Governo havia
importado 35.000 destes projetores que operavam com 220, 110 e 6 volts) ; um
filme que, antes de ser fabricado por nós, nos custava aproximadamente Cr$
4.000,00; um quadro negro e a parede de uma casa ou da sede de um clube, onde
instalávamos o círculo de cultura.
Entramos em contato também com D. José Távora,
Bispo de Aracaju, Sergipe (Nordeste do Brasil), um dos líderes do Movimento de
Educação de Base – MEB – que desenvolvia um intenso e proveitoso esforço no
campo da educação de adultos através da escola radiofônica. Esperávamos, assim,
aproveitando toda uma rede já montada de escolas, dinamizá- las mais, aplicando
seus resultados.